Direitos Humanos Lgbti: História, Conquistas e Desafios
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Direitos Humanos Lgbti - Sandro Gorski Silva
sumário
INTRODUÇÃO
1
OS DIREITOS HUMANOS E A DIVERSIDADE SEXUAL
1.1. O PROCESSO DE RESSIGNIFICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: DE DIREITOS INATOS E UNIVERSAIS A PROCESSOS DE LUTA EM BUSCA DE UMA VIDA DIGNA
1.2. A LUTA PELA DIGNIDADE DA POPULAÇÃO LGBTI
2
A PROTEÇÃO À DIVERSIDADE SEXUAL NA ORDEM JURÍDICA INTERNACIONAL
2.1. OS DIREITOS LGBTI NO SISTEMA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS
2.2. A TEMÁTICA LGBTI NOS SISTEMAS REGIONAIS EUROPEU E INTERAMERICANO
2.2.1. O Sistema Europeu e os Direitos LGBTI
2.2.2. O Sistema Interamericano e a Diversidade Sexual
3
A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DA POPULAÇÃO LGBTI NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA
3.1. O PAPEL DOS DIREITOS HUMANOS E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
3.2. A ORDEM JURÍDICA INTERNA E O TEMA DA DIVERSIDADE SEXUAL
4
OS DESAFIOS À PLENA IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS LGBTI
4.1. A AFIRMAÇÃO DO DIREITO À DIVERSIDADE SEXUAL COMO DIREITOS HUMANOS
4.2. A GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA E SEUS EFEITOS PARA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
4.3. A SECULARIDADE ESTATAL E OS FUNDAMENTALISMOS RELIGIOSOS
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
As duas primeiras décadas deste século XXI estão marcadas por dois grandes fenômenos no ocidente. De um lado, há o recrudescimento do conservadorismo, fundado numa leitura rígida e obtusa da bíblia que acaba por gerar a exclusão de todo comportamento tido como não sagrado. De outro, ganha força o clamor social pela volta de regimes ditatoriais, ao forjar-se a ideia de única saída possível à crise democrática
, aplicando um golpe de amnésia certeiro em todo o mal causado pelas ditaduras aos cidadãos de diversos países do globo.
Esses movimentos são responsáveis por impedir o avanço de temas socialmente sensíveis como, por exemplo, a igualdade entre homens e mulheres, a legalização do aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a aceitação da chamada transidentidade. Ao lado desse fenômeno, crescem as medidas de implementação do retrocesso, como é o caso da decisão da Corte Suprema das Bermudas, que autorizou a volta da proibição do casamento homossexual, conferindo ao país o pioneirismo ao engatar a marcha à ré nessa temática em 2017.¹
A sexualidade dita fora do padrão
ainda é objeto de grande discussão e sofre intensa perseguição mundo afora. Em setenta e um dos mais de cento e noventa países pertencentes à Organização das Nações Unidas (ONU), as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo ainda são tipificadas como crime. Em oito nações, a legislação prevê pena de morte para o delito que é, entretanto, oficialmente implementada em apenas cinco delas, a saber: Arábia Saudita, Iêmen, Irã, Mauritânia e Sudão.²
No Brasil, a diversidade sexual segue sendo fundamento para discriminação e exclusão social. Pesquisa realizada pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República³ apurou que, só no ano de 2012, o número de denúncias de violência homofóbica cresceu 166,09% em relação ao ano anterior.
Esses dados revelam que o contexto de estigmatização da orientação sexual e da vivência de gênero ainda persiste na atualidade em diversas sociedades mundo afora, ainda que documentos internacionais garantam, de forma universal, que os indivíduos são seres iguais em direitos e deveres, sem quaisquer distinções.
Embora as cláusulas de garantia da isonomia e proibição da discriminação tenham se tornado norma cogente de observância obrigatória no plano internacional e se transformado em princípio constitucional em vários Estados, o que se testemunha na prática ainda é um forte processo de exclusão e verdadeiros obstáculos ao exercício de direitos civis e políticos no cotidiano local de determinados países.
Por essa razão, faz-se necessário investigar o motivo pelo qual princípios básicos e gerais dos direitos humanos não alcançam temas como o da diversidade sexual e identidade de gênero. Bem verdade que, no século passado, as chamadas minorias sexuais
conquistaram relativo espaço político e, em alguns países, foram paulatinamente incluídas no tecido social.
Notadamente, contribuiu para essa inclusão a revolução sexual promovida no final da década de 1940, que foi responsável por desmistificar o comportamento homossexual, afastando a concepção que lhe imprimia a condição de doença. Em seguida, a lógica do capital passou a considerar esse público para fins de comércio, destinando-lhes produtos e serviços. Na sequência, no final do século XX, iniciou-se o processo de reconhecimento jurídico em diversos sistemas mundo afora e também perante as cortes internacionais e os tribunais brasileiros.
Todavia essa inclusão não tem se revelado suficiente à implementação da igualdade como processo. Os desafios enfrentados por essa comunidade demandam outros esforços, para além do acolhimento jurídico, à medida que a legislação não dá conta de resolver os problemas que envolvem questões de injustiça e/ou desigualdade.
A presente obra pretende analisar, assim, quais são os obstáculos a serem superados para que a população formada por Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (LGBTI) possa viver com dignidade, sem ser discriminada, considerada desigual ou tenha direitos aniquilados por circunstância contingencial, que a tornou diferente do padrão ocasionalmente escolhido por uma classe específica, em determinado período histórico.
O ponto de partida da nossa análise é o estudo do conceito ocidental universalista de direitos humanos, que tem sido comumente apontado como a panaceia para todos os problemas sociais, políticos, econômicos e, por vezes, sustentam até intervenções militares. Sob a máxima dos direitos inatos, característica intrínseca de qualquer pessoa, os direitos humanos são conclamados também a resolver a questão que envolve a diversidade sexual.
De toda sorte, seriam os direitos humanos a única e possível resposta para solucionar a questão da discriminação baseada na orientação sexual? Essa é a questão que norteia o primeiro capítulo deste trabalho. Para respondê-la, fez-se necessário verificar se o conceito tradicional de direitos humanos é suficiente para concretizar a igualdade material e em que medida a arquitetura protetiva dos direitos humanos poderia contribuir na consolidação do processo de igualdade. Buscou-se, ainda, descortinar quais são os processos de luta que precedem as políticas de reconhecimento da comunidade LGBTI.
O segundo capítulo desta obra se dedica à análise do grau de confluência entre o direito à igualdade e à proibição de toda forma de discriminação e as políticas de reconhecimento da diversidade sexual na jurisprudência das cortes internacionais de direitos humanos. Quais foram as ações políticas que os sistemas internacional e regionais de proteção dos direitos humanos têm realizado, a fim de combater a discriminação baseada na orientação sexual e identidade de gênero? Dentre os sistemas regionais analisados, optou-se pelo estudo da arquitetura protetiva desenvolvida pelo Conselho da Europa e Organização dos Estados Americanos. Não se incluiu o sistema africano de proteção dos direitos humanos e dos povos, porquanto, ademais de ser o mais recente e, portanto, menos avançado quanto ao tema, ainda é carente de estudo, impondo à pesquisa científica obstáculos que impedem uma profunda análise da jurisprudência da corte.
No capítulo terceiro, o objeto de análise é a sociedade brasileira. Buscou-se avaliar qual é o papel dos direitos humanos ou dos chamados direitos fundamentais na ordem jurídica interna e de que forma o plano internacional interfere na consecução dos objetivos fundamentais do país. Ademais, estudou-se o status da nação no que diz respeito à proteção do direito à diversidade sexual, sobretudo após o reconhecimento da união homoafetiva realizado pelo Supremo Tribunal Federal em 2011. Teria a decisão sido suficiente para tornar plenamente efetivos os direitos dos coletivos sexuais? Essa é a pergunta que se pretende responder no capítulo em questão.
Por fim, o último capítulo aponta, de forma não exaustiva, alguns desafios que seriam centrais à implementação do direito à diversidade sexual, quais sejam: a) a falta de reconhecimento dos direitos LGBTI como direitos humanos; b) os efeitos nefastos do processo de globalização econômica descendente e; c) a emergência dos fundamentalismos religiosos. Pretendeu-se, em última análise, demonstrar que o enfretamento desses desafios em conjunto mostra-se essencial para atingir a plena efetividade dos direitos das minorias sexuais, à medida que as propostas jurídicas internas isoladamente consideradas não seriam suficientes à promoção da igualdade material dessa população.
Destarte, o fim precípuo desta obra é reavaliar algumas posições pátrias habituais quanto ao tema e verificar a possibilidade de categorias dogmático-jurídicas já tradicionalmente aceitas em países desenvolvidos – mas ainda desconhecidas ou, no mínimo, subestimadas na esfera do direito pátrio – serem por este recepcionadas. Novas teorias precisam ser formuladas, para dar lugar a novas propostas de ação com o objetivo de tornar efetivo o potencial emancipador dos direitos humanos LGBTI.
A intenção foi – e outra não poderia ser –, dada a abrangência do tema e a limitação física desta obra, fazer algumas considerações sobre a eficácia do direito à diversidade sexual e à vivência de gênero, a fim de contribuir com o aprofundamento do debate sobre a afirmação e implementação do direito à diversidade sob a perspectiva da manifestação da sexualidade humana. Se este trabalho tiver logrado provocar alguma reflexão, já se pode considerar alcançado o nosso objetivo.
1
OS DIREITOS HUMANOS E A DIVERSIDADE SEXUAL
O contexto global contemporâneo, sobretudo em consequência das políticas econômicas arquitetadas por poderes hegemônicos, tem projetado situações que parecem ir de encontro às finalidades do que comumente se concebe como direitos humanos. Não é por outra razão, que Joaquim Herrera Flores afirma que os direitos humanos se converteram no principal desafio do século XXI.⁴
A despeito das questões econômicas, fatores sociais e políticos atuais também têm contribuído para tornar o indivíduo supérfluo e sem lugar no mundo comum. Nesse contexto, faz-se necessário analisar se ainda é possível concluir que o fundamento para titularidade e exercício dos direitos humanos é tão somente a condição humana, como propõe a tradição ocidental modernista.
Bem verdade que, ao longo da história, a gramática dos direitos humanos refletiu o reconhecimento das potencialidades humanas, o respeito ao outro e a prevenção do sofrimento. Foram direitos evocados como uma forma de emancipação do ser humano contra toda forma de discriminação, exploração e opressão que objetivava atomizar o indivíduo.
No entanto, como justificar na atualidade o fato de um grande número de pessoas não ter sequer a chance de exercer tão básico e importante rol de direitos? Qual é a contribuição da concepção jusnaturalista⁵ desses direitos para a proteção da dignidade humana? E, no que toca ao tema central desta obra, no que pode a arquitetura protetiva dos direitos humanos, toda fundamentada na ética cristã e no conceito universal de direitos inatos, contribuir para a promoção dos direitos da população LGBTI⁶? Essas são algumas das questões que norteiam a primeira parte deste capítulo.
Na segunda parte, encontrar-se-á uma análise de aspectos históricos da sexualidade humana a fim de desvendar as relações de poder e os conflitos éticos que continuam confrontando o comportamento em questão. Partindo do axioma antropológico sobre as variações sexuais, segundo o qual elas são fundamentalmente culturais, pretende-se expor os argumentos que permitirão compreender o atual contexto de exclusão e discriminação baseadas na orientação sexual e vivência de gênero.
1.1. O PROCESSO DE RESSIGNIFICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: DE DIREITOS INATOS E UNIVERSAIS A PROCESSOS DE LUTA EM BUSCA DE UMA VIDA DIGNA
A discussão sobre o fundamento e a natureza dos direitos humanos ainda permanece intenso no pensamento contemporâneo. Questiona-se se são direitos naturais e inatos, direitos positivos, direitos históricos ou, ainda, direitos derivados de um sistema moral. Embora a controvérsia sobre o fundamento dos direitos humanos não seja o objeto final desta obra, percebeu-se que uma pequena digressão sobre o que impulsionou a ideia de direitos humanos era necessária para descortinar as relações de poder que nos orientaram ao longo da história e os processos que deflagraram a exclusão dos coletivos sexuais da proteção jurídica. É a partir dessa perspectiva que se estudará, a seguir, o chamado processo de ressignificação dos direitos humanos.
De início, verifica-se que o reconhecimento de uma parcela de direitos subjetivos atribuídos ao indivíduo é um fenômeno observado desde a antiguidade. Para Celso Lafer, o direito subjetivo é figura jurídica afim dos direitos humanos.⁷ Se for possível caracterizar os direitos humanos a partir dessa perspectiva, poder-se-ia afirmar que as primeiras manifestações do que hoje denominamos de direitos humanos e direitos fundamentais⁸ exsurgiram ainda no mundo antigo, como se verifica no Direito Romano e nas inúmeras civilizações ancestrais.⁹
Historicamente, os direitos humanos ganharam sentido no período axial (séculos VII a II a. C.), a partir do nascimento da racionalidade calcada na centralidade do sujeito – fato responsável por imprimir ao indivíduo a qualidade de fundamento supremo de todas as ações humanas – e do processo de estruturação das religiões, que abriu espaço para o nascimento de vínculos de aproximação e compreensão recíprocos entre os diversos povos.¹⁰ O cristianismo, em especial, ao retomar e aprofundar os ensinamentos grego e judaico, consolidou a ideia de que cada pessoa é sagrada e possui um valor único e absoluto no plano espiritual, traduzindo uma unidade do gênero humano e a sua aliança com Deus. Por essa razão, a ética cristã passou a ser considerada um dos elementos formadores da arquitetura que tornou possível o tema dos direitos humanos.¹¹
De toda forma, é na modernidade que se consolida a ideia de direitos e, por conseguinte, a noção de direitos humanos. Nesse período a expressão direitos humanos
passou a se referir à natureza, ao movimento do humanismo e a sua forma jurídica, fruto de uma breve união entre a filosofia política e o direito, representada pelos textos de Hobbes, Locke e Rousseau.
É a partir da era moderna, portanto, que o ideário universal de direitos inatos à condição humana deixa de ser ideia filosófica para se transformar em instituição política, em verdadeiro sistema de proteção da dignidade humana, positivado por meio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa, da Declaração de Independência e da Declaração de Direitos norte-americanas, todas datadas do fim do século XVIII.¹² Os direitos humanos, então, passam a ser vistos como verdade evidente, dispensando tanto a violência quanto a persuasão e o argumento.¹³
O desenvolvimento das teorias contratualistas consolidou, assim, a preocupação em estabelecer limites ao abuso de poder do todo em relação ao indivíduo, o que deu origem a esse novo regime político e introduziu uma limitação da res publica à observância de direitos ditos preexistentes, que nem mesmo o próprio Estado poderia transpor. O indivíduo, isoladamente considerado, passou a se contrapor à sociedade, que, pela primeira vez na história, deixou de ser superior aos sujeitos que a constitui. Desde então, consolidou-se a