Além de mim
By Flora Alves
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Além de mim - Flora Alves
autora
1- O início do início
As cabeças dos jovens foram feitas para bater de encontro a paredes. Quase todas conseguem sobreviver
– Carlos Heitor Cony.
Aos meus 16 anos, descobri ter leucemia. Eu sei que vocês devem estar pensando que essa vai ser apenas mais uma história triste que no fim a garota morre, mas não se preocupem, eu não vou morrer! Decidi que, de todas as coisas, a mais importante agora é desenterrar meu velho baú, retirar todas as coisas de dentro e começar a preenchê-lo novamente, fazendo de mim uma pessoa melhor e, de minha vida, uma estrada incrível que foi trilhada. E, dessa vez, ao enchê-lo, tomar cuidado para não colocar o que me faz mal, porque o que me faz mal não me convém mais.
Claro que fiquei extremamente triste, mas preferi pensar que foi um teste de Deus e que, daquele momento em diante, eu viveria cada segundo da minha vida intensamente. Muita coisa mudou, claro, minha mãe que é uma revolucionária nata e aspirante a escritora, em seus 34 anos ficou ainda mais melosa comigo. Ela realmente achou que era um modo de unir mais nossa família, e meu pai, um roqueiro que trabalha como guitarrista e tem uma banda, começou todos os dias me mandar flores, o que só me fez perceber que na verdade eles tinham pena de mim.
Sei que é estranho uma pessoa estar tranquila assim quando, provavelmente, está à beira da morte, mas é a minha vida, se não fosse, não seria tão estranho assim. Na verdade, a vida começou depois que descobri a doença, e você entenderá o porquê.
Bom, a primeira vez que fui à escola depois de todos descobrirem sobre minha doença foi um verdadeiro inferno, todos me tratavam de uma maneira que me dava repugnância. Até aqueles que sempre tiveram medo (ou ódio), agora tinham pena, mas eu, como sempre, aproveitei aquela situação, já que todos estavam a minha disposição mais que o normal, eu ia usufruir um pouco disso.
Desde que nasci, fui extremamente mimada por todos à minha volta, e eu acreditava que era feliz daquela maneira, vivendo uma vida superficial e frágil... Todos me perguntavam se estava tudo bem, e estava! Mas, se não estivesse, não tinha importância, estávamos ocupados demais para nos importar uns com os outros. Eles eram até bons atores, fingindo que se importavam com toda aquela merda
.
Acredito que nos sentimos seguros dentro de nós, vemos luz, esperança, mas não percebemos que, vivendo dessa maneira e nos preocupando apenas com nós mesmos, estamos em meio à escuridão, solidão, tristeza, não podemos evitar. Talvez se tudo acabar, se a morte chegar, eu queira lutar para não esquecer o que havia dentro de mim, quem havia dentro de mim. Não terei outros momentos para lembrar, então não perderei os que vivi. Mas, se não acabar, se eu viver, se eu continuar aqui, não me importarei em esquecer tudo, não deixarei o passado me atormentar, viverei o agora e viverei o futuro, mas uma coisa é certa: deixando o passado para trás, deixarei também a pessoa horrível que eu era; é um novo começo, é uma nova vida, aqui estou, renascendo das cinzas.
Na volta da escola, peguei uma carona com Vera. Mais para frente, vocês vão saber a importância dela na minha história. Entrei em casa e fui direto para meu quarto, eu me sentia cansada, então me deitei. Quando acordei, olhei no relógio de parede, era por volta das duas e meia da tarde, dali a alguns minutos eu teria que ir à minha primeira seção ao médico, para falar sobre a doença
Levantei-me e tomei um banho. Ainda de toalha, sentei-me em frente à penteadeira e soltei meus compridos e rosados cabelos, eles, caídos em meus ombros, despenteados, ainda choravam a água do banho. Sequei-os, penteei-os e os amarrei com um elástico.
Ao lado da minha casa, morava um lindo garoto, que exibia seus cabelos morenos, suas tatuagens e um grande e esverdeado olho, um olho que fascinava a qualquer um. Apesar de sermos vizinhos há tanto tempo, nós não conversávamos muito, pois ele era meio na dele. A janela do seu quarto permanecia sempre aberta, fizesse chuva, sol, o que fosse, então eu sempre podia observá-lo (disfarçadamente).
Naquela tarde, estava com uma camisa preta de linho e, por cima, uma jaqueta de couro, calça jeans e tênis. Em pleno 2015, em Santa Clara, na Califórnia, não era difícil fazer amigos, mas para ele parecia o maior desafio da sua vida, estava sempre sozinho, manhãs sozinho, tardes sozinho e noites sozinho, sempre com a sua janela aberta, sentado em frente ao computador, em sua vida nada social.
Lembro a primeira e única vez que conversamos, tínhamos por volta dos seis a sete anos. Ele jogava bola com os vizinhos na rua, todo final de semana. Naquela época, parecia ter amigos ou pelo menos colegas.
Uma vez a bola caiu dentro da minha casa, quebrando uma janela. Em troca de um livro grande e grosso que eu sempre bisbilhotava pela janela do meu quarto, eu o protegi, dizendo aos meus pais que, sem querer, eu havia quebrado a janela, jogando bola, e devolvi sua bola. Não foi um negócio difícil até porque ele morria de medo do meu pai, então, eu sabia que me daria qualquer coisa para que eu levasse a culpa em seu lugar. Depois disso, nunca mais nos falamos.
Quando chegamos em casa, depois da consulta, já era por volta das seis da tarde, Bob Mischoven estava sentado na calçada em frente a minha casa. Decidi em pensamento que iria até ele e não sairia de perto até ter uma conversa de verdade com aquele garoto misterioso.
Quando desci do carro, caminhei lentamente, minhas pernas estavam bambas. Sentei-me ao seu lado e esperei que ele puxasse assunto mas, ao invés de ouvir sua voz, ouvi minha mãe parada ao meu lado me perguntando:
– Não vai entrar, querida?
– Não agora.
Ela lançou um olhar curioso e finalizou:
– Está bem, não espere escurecer – hesitou um pouco até que falou: – Boa tarde, Sr. Mischoven.
– Boa tarde, senhora – respondeu Bob, percebendo a angústia da minha mãe.
– Fiquei sabendo do seu câncer, eu sinto muito – disse ele.
Sorri de lado e abaixei a cabeça, eu não sabia o que falar.
– Como você está? – balbuciei.
Como você está?
... Esse era o máximo que eu podia fazer?
– A questão é: como você está – falou ele, apontando para mim, dando ênfase à palavra você
.
Zanguei-me com a resposta dele, nem sei por que, mas eu havia perguntado primeiro. Da boca pra fora falei:
– Mudando de assunto, me diz qual é a sua? Sempre tão calado e rabugento, te vejo sempre fugindo de casa, você e eu crescemos um ao lado do outro mas...
Sem me deixar terminar de falar, ele respondeu grosseiro:
– Eu cresci te observando, observei como você é uma garota superficial, como você liga para o que os outros vão pensar... – fez uma pequena pausa para recuperar o fôlego e continuou: – Vendo como você vive uma vidinha de aparência e status, esse meu modo rabugento e só uma forma de evitar ser alguém como você e não falemos mais nisso.
– Você não precisa ser grosso e, se acha que realmente ligo para o que os outros pensam, eu vou logo lhe dizendo que está muito enganado, até porque não estou nem aí pra você, se é isso que pensa de mim... Esse só foi um dia ruim e agora está pior – falei firme e saí.
Mais tarde, escutei um barulho na minha janela, fui até ela e a abri. Quando olhei para baixo, Bob estava lá.
– O que você quer? – perguntei.
– Desça aqui!
Hesitei por alguns minutos, mas decidi que era melhor dar-lhe uma chance de pedir desculpas, então desci. A noite estava fria, o céu nublado, e o vento soprava forte. Os cabelos de Bob balançavam delicadamente e, quando apareci na porta, abriu um sorriso tão largo que, ainda que ele estivesse de costas, daria para ver seus dentes. Agasalhei-me com o cobertor e desci os degraus até ele.
– Me desculpe por mais cedo... – ele disse.
– Não se preocupe, já passou – respondi séria.
– Eu não devia ter dito aquilo, foi o calor do momento – ele se explicou, e eu não respondi, apenas o encarei, então ele continuou: – Venha aqui, vou te mostrar uma coisa.
– Por que você me mostraria uma coisa
? Nem amigos somos...