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Direito e direitos humanos: abordagem histórico-filosófica e conceitual
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Direito e direitos humanos: abordagem histórico-filosófica e conceitual

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Desvelou-se, pelo percurso histórico-filosófico deste ensaio, que a efetividade dos Direitos Humanos se torna comprometida em razão de os mesmos serem concebidos em meio a compreensões arcaicas de Direito. Isto é, a concepção metafísica e dualística da antiguidade, também dominante no período medieval, continua presente em atuais teorias, que não acompanham os grandes avanços provindos da interação social e do vertiginoso desenvolvimento científico. Por isso, o presente estudo se reveste da modesta pretensão de contribuir para se repensar o reprodutivismo das velhas premissas filosóficas que ainda baseiam os Direitos Humanos nas ciências sociais aplicadas.
LanguagePortuguês
Release dateJan 1, 2014
ISBN9788581923970
Direito e direitos humanos: abordagem histórico-filosófica e conceitual

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    Direito e direitos humanos - Flávia de Ávila

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO SOCIOLOGIA DO DIREITO

    À memória da minha querida mãe Marlene e da minha avó Júlia, ao meu dedicado pai, Vicente, à minha adorada irmã Elisa e às minhas sobrinhas Luísa e Laura, pela felicidade e pelo orgulho de pertencer a esta família especial. A estes e a todos os demais que contribuíram para o êxito dessa desafiadora e complexa jornada, os mais sinceros e penhorados agradecimentos, em especial aos professores Bruno Wanderley Junior e Antônio Cota Marçal. 

    PREFÁCIO

    Com satisfação aceitei o convite para apresentar o livro Direito e Direitos Humanos: abordagem histórico-filosófica e conceitual, de autoria da Profª Dra. Flávia de Ávila. O presente texto é a parte introdutória de sua tese de Doutorado na área de concentração em Direito Público, na linha de pesquisa Direitos Humanos, processo de integração e constitucionalização do Direito Internacional, intitulada Efetividade das Sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil: uma abordagem histórico-filosófica do conceito de Direitos Humanos. A referida tese foi desenvolvida e defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito da PUC/MG, sob a orientação do Professor Dr. Bruno Wanderley Junior e sob minha coorientação.

    Trata-se de um texto produzido a partir do estudo de fontes preferencialmente primárias e da controversa situação relativa ao cumprimento, pelo Brasil, das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em especial, são levados em consideração os respectivos contextos culturais, em que teorizações e práticas sociopolíticas acerca do Direito, da Filosofia do Direito e dos Direitos Humanos foram sendo desenvolvidas, substituídas ou criticamente revistas e institucionalizadas. A autora buscou manter-se aberta ao movimento da reflexão teórica, e fiel aos elementos factuais e históricos. E o fez, seja identificando e explicitando elementos teológicos e ideológicos presentes nos conteúdos conceituais do Direito, seja abrindo espaço para a mediação entre teoria e prática, na medida em que valorizou a interdisciplinaridade e pontuou criticamente retrocessos e inovações decorrentes do exercício da interação intersubjetiva. Nesta perspectiva, Flávia de Ávila se valeu inicialmente da reflexão hegeliana sobre a Filosofia e sua História. Enquanto exercício intersubjetivo da racionalidade, a Filosofia, desde os primeiros filósofos gregos, tem trabalhado conceitos como justiça, bem, felicidade, humanidade, finitude, transcendência, finalidade, causalidade, natureza, convenção e muitos outros conteúdos conceituais ainda recorrentes nas discussões contemporâneas acerca do Direito e dos Direitos Humanos. A autora assumiu, igualmente, o Neopragmatismo como referencial teórico na parte da pesquisa agora publicada. Ou seja, colocou-se sob a perspectiva da vida em sociedade concebida como um processo em constante desenvolvimento, em que e através do qual as práticas sociais são refletidas e as instituições redirecionadas à medida que os agentes racionais interativamente criam valores e definem fins para si mesmos.

    Por Neopragmatismo entenda-se, de um lado, a compreensão da prática racional como guiada por uma normatividade na maioria das vezes implícita e, de outro lado, a concepção de crenças e representações subjetivas ou intersubjetivamente compartilhadas como mediadas por símbolos, sinais, comprometimentos e inferências. Assume-se que destes elementos metodológicos e epistemológicos podem resultar falhas na percepção e na construção cognitiva da realidade, consideradas por isso a percepção e a construção da realidade como permanentemente passíveis de correção. Nem fundamentalismo transcendental e nem naturalismo solipsista norteiam, portanto, a leitura crítica da Filosofia do Direito e dos Direitos Humanos por Flávia de Ávila. A autora se manteve coerente com a máxima pragmatista de que o agente racional deve levar em consideração os resultados de relevância prática por ele atribuídos ao conteúdo conceitual de suas crenças e representações. Assim, ao explicitar na tese os conteúdos estudados, só foram admitidas como significativas e relevantes àquelas hipóteses e ações cujos possíveis resultados práticos pudessem ser experimental e intersubjetivamente reconstruídos e ou verificados e, sendo o caso, também corrigidas, modificadas ou abandonadas às hipóteses iniciais.

    Situando os respectivos contextos em que os conceitos analisados foram formulados, Flávia apresenta, em cada autor ou corrente de pensamento analisados, os elementos centrais concernentes ao Direito e a sua justificação racional, da Antiguidade à Contemporaneidade, valendo-se predominantemente dos próprios autores em questão.

    O trabalho desenvolvido na tese se constitui em excelente contribuição ao estudo das bases filosóficas e culturais do Direito em geral, e ao estudo dos Direitos Humanos em especial. Com efeito, no tópico 2 são apresentadas e discutidas as primeiras tentativas gregas de teorização racional do Direito, as concepções do Direito Natural da Antiguidade greco-romana, o Direito Natural de cunho teológico da Idade Média, o Direito Natural racional da Modernidade Europeia e o direito como processo racional de construção sociocultural intersubjetiva na Contemporaneidade. No tópico 3 são contempladas quatro dimensões do conceito de Direitos Humanos e suas correlações política e ou filosófica, a saber: como liberdade prometida no Capitalismo e como igualdade utópica no Socialismo, como direitos iguais para todos no Universalismo e como direitos culturalmente diferenciados no Relativismo, como resistência à dominação colonial na formatação ainda em curso do Constitucionalismo Latino-americano e, finalmente, os Direitos Humanos nas perspectivas do Pragmatismo e do Neopragmatismo. A seguir, serão destacados brevemente alguns elementos dos tópicos sobre o Direito Internacional e sua constituição e sobre os Direitos Humanos.

    Embora ainda não usado o termo ‘internacional’, é, no entanto, a relação entre povos ou grupos sociopolíticos distintos que estava em jogo quando se tratava de guerra contra inimigos, mesmo quando estes eram vistos como subordinados a um superior poder central. Esta dimensão pode ser vista, por exemplo, nas tentativas de justificação da guerra por Agostinho, Graciano e Tomás de Aquino. Da mesma ordem, embora em um contexto de disputa entre poder religioso e poder temporal, eram as relações em que se situavam as pretensões de Bonifácio VIII e sua contestação por Marsílio de Pádua, Guilherme de Ockham e inclusive pelo imperador Luis IV, da Baviera. Sabe-se pela História que semelhante estado de guerra ocorreu não apenas entre o pretendido poder central e um ou mais de seus supostos poderes subordinados, como também entre os poderes subordinados. A diferenciação entre identidades nacionais tornou-se cada vez mais nítida, primeiramente na Europa, assim que as diferentes identidades religiosas se consolidaram e, com a constituição dos Estados nacionais europeus, assumiram uma conformação de autonomia política em face do Papado. Em um segundo momento, bem mais próximo de uma efetiva ‘internacionalidade’ e abrangendo agora etnias, povos e continentes diferentes, a internacionalização das relações inter-humanas se tornou mais candente com a colonização europeia das Américas. Francisco de Vitoria, Francisco Suárez, Domingo de Soto e Bartolomeu de las Casas se viram confrontados com a cada vez mais complexa questão da guerra justa. Elemento de referência da discussão a este respeito foi ainda uma concepção de Direito Natural, levada então às questões como relações comerciais, à própria concepção do humano e de sua dignidade individual e pessoal. Mesmo aqui, tratando-se da própria pessoa humana, pode-se constatar que teoria e prática estiveram desalinhadas e frequentemente em contradição. Suárez, no entanto, ao distinguir o Direito dos Povos ou Jus gentium do Direito Natural e concebê-lo como direito comum a todos os indivíduos humanos reunidos em sociedade por força de convenções e práticas consolidadas, fez da vontade dos sujeitos humanos a constituidora do próprio Estado e de suas instituições. Em sua autonomia relativa, o Estado assim instituído refletiria, nas relações com os demais Estados, a interdependência e a solidariedade recíproca vigente entre os indivíduos, relações estas constitutivas do indivíduo humano e necessárias à sua realização e felicidade. Tinha início a constituição do Direito Internacional, continuada, entre outros, por Alberico Gentili, Hugo Grotius, Samuel Pufendorf, Emmerich de Vattel, Bynkershoek e ainda em curso, como é próprio de qualquer produto do exercício da racionalidade compartilhada.

    Com relação aos Direitos humanos, já se encontram na filosofia grega, especialmente no Estoicismo, a ideia e a defesa da igualdade de todos os humanos. Foi também sustentada a existência de um Direito Natural igualmente aplicável a todos os humanos. O cristianismo, por sua vez, ensinou que todos os homens foram criados por Deus e à sua imagem, embora tal crença não tenha se traduzido concretamente nas relações internas à Igreja e nem no âmbito sociopolítico sob sua influência, até inícios da Modernidade. Não obstante a Magna Charta de 1215, o De Hominis Dignitate de Pico della Mirandola (1486), é ao Iluminismo que coube explicitar o que se designa hoje por direitos humanos. John Locke (1637-1704) foi o primeiro a sustentar que os direitos à vida, à liberdade e à propriedade são direitos inatos do homem. A revolução inglesa do século XVII e o Bill of Rights de 1689, o Bill of Rights da Virgínia de 1776 e a Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen de 1789 são também frutos do Iluminismo. Mais uma vez se está diante de um processo, que se iniciou voltado para o indivíduo e sua dignidade pessoal, expandiu-se para o Estado, a seguir para o âmbito internacional e cuja evolução prossegue em curso. Fatores como a revolução industrial, a urbanização, a universalização da educação, os avanços tecnológicos na disseminação da informação, bem como as novas relações socioeconômicas e políticas em nível global, criaram condições para que o agente humano, enquanto sujeito e titular de direitos, não apenas emergisse como autor do Estado e das normas que o regem, como também fizeram com que o Estado passasse a ser o garantidor desses direitos, se tornasse instrumento para a realização pessoal dos titulares de direitos e não um fim em si mesmo. Este processo está apresentado e analisado na tese de Flávia de Ávila com riqueza de detalhes, inclusive com relação ao Brasil e ex-colônias espanholas na América.

    Concluindo, é oportuno relembrar dois conceitos centrais da abordagem neopragmatista da interação humana, o endosso e o comprometimento. Endosso, ou aprovação, é expressão de concordância com uma ação, com o conteúdo de uma declaração ou documento ou com alguém, é aprovar ou dar apoio a alguém ou a uma causa, por exemplo. Já o comprometimento é obrigar-se a determinada ação ou comportamento, em razão de um acordo, de afinidade, de um objetivo a ser alcançado ou de uma aprovação. Assim é que de um endosso resulta ou se infere um comprometimento. A propósito dos Direitos Humanos e das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, tema da tese da autora desse livro e exemplo interessante sobre esta questão, pode-se afirmar que, se o Brasil assinou a Convenção Americana de Direitos Humanos sem restrições ou condicionamentos sobre o cumprimento de suas sentenças, o Brasil se comprometeu a cumprir as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. E não efetivar direitos, quando se tem obrigação de fazê-lo, é negá-los, uma vez que a efetivação de direitos e obrigações é o meio de realizar o justo.

    Belo Horizonte, 15 de janeiro de 2014.

    Antônio Cota Marçal

    Bacharel em Direito pela PUC-MG

    Doutor em Filosofia pela Universidade de Frankfurt am Main

    Professor nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da PUC-MG

    SUMÁRIO

    1. INTRODUÇÃO

    2. Dimensões histórico-filosóficas primordiais do conceito de direito

    2.1 Concepções primeiras de Ética, Justiça e Direito: a Antiguidade Ocidental

    2.2 O direito como concessão divina: visão teológica

    2.3 O direito como construção humana: Renascimento e Iluminismo

    2.4 O direito como produto da razão humana: Idealismo, Utilitarismo e Pragmatismo

    2.5 Conclusão do Capítulo

    3. Dimensões histórico-filosóficas CONTEMPORâneas do conceito de direitos humanos

    3.1 Direitos humanos como propaganda de liberdade ou utopia da igualdade:

    Capitalismo versus Socialismo

    3.2 Direitos humanos iguais para todos ou culturalmente diferenciados:

    Universalismo versus Relativismo

    3.3 Direitos humanos e resistência à dominação colonial: a promessa do Constitucionalismo Latino-Americano

    3.4 Direitos Humanos e Pragmatismo

    3.5 Conclusão do Capítulo

    4. CONCLUSÃO

    5. REFERÊNCIAS

    1. INTRODUÇÃO

    A temática deste livro implica duas questões aparentemente antagônicas, mas que, efetivamente, vêm coexistindo ao longo da história cultural ocidental, mormente europeia. Por um lado, frequentes tentativas de fundamentação das diferentes tipologias do Direito, ora em subsídios histórico-filosóficos genéricos, e ora buscando respaldo no âmbito da própria práxis social. Mas, por outro, nas teorias jurídico-filosóficas atuais, principalmente a respeito de Direitos Humanos, ainda ecoam o passado, sem, portanto, acompanhar os grandes avanços e correspondentes desafios ocorridos na evolução histórica da humanidade, inclusive as que advêm da interação social e do desenvolvimento científico teórico e empírico.

    Pretendeu-se, pois, que fosse realizado um mergulho na história da filosofia ocidental europeia, na perspectiva de captação, contextualização e explicitação das performances conceituais sobre as quais as aludidas teorias jurídico-filosóficas se moldaram e ainda se respaldam.

    E a fundamental finalidade dessa imersão consistiu e continua a consistir no modesto, porém explicito, desejo de propiciar aos demais estudiosos e pesquisadores, pelo presente e historicamente extenso rastreamento, um ensaio de básica concatenação histórico-filosófica das concepções que permearam as raízes e a evolução conceitual de Direito e de Direitos Humanos, através da ultra milenar trajetória que se estende da Antiguidade Ocidental até a segunda fase do Pragmatismo, vicejado no século XX, após o término da Segunda Guerra Mundial. Isso implicou estudos a respeito de História da Filosofia, bem como de elementos linguísticos e de análises conceituais do Direito no contexto da sociedade ocidental, para se detectar e reconstruir compreensões acerca de Direitos Humanos.

    Assim, este ensaio começa por explicitar uma concepção acerca do que se compreende por História da Filosofia, recorrendo a Hegel (1985, p. 321), que a define como o estudo de autores que, através da razão, buscaram questionar e compreender o ser, a essência e a natureza da realidade. Ou, em suas palavras, O patrimônio da razão autoconsciente que nos pertence não surgiu sem preparação, nem cresceu só do solo atual, mas é característica de tal patrimônio o ser herança e, mais propriamente, resultado do trabalho de todas as gerações precedentes do gênero humano.

    Desse modo, e por intermédio do pensamento de relevantes filósofos, procurou-se tanto averiguar, não só antigas tradições sociais, como também verificar elementos pragmáticos para o entendimento do agente humano enquanto sujeito dialógico, que se constitui e evolui a partir da inter-relação social. Inspirado por Hegel (1985, p. 329-332), todo o trabalho foi desenvolvido com o cuidado de não apenas se apresentar como um rol de opiniões, nem de se constituir prova de vaidade do conhecimento do passado e, menos ainda, de se limitar a sucessivas explicações sobre diversidades meramente teórico-filosóficas.

    Neste contexto, entende-se, pois, que a História da Filosofia estuda o pensamento filosófico daqueles que contribuíram com teorias e metodologias para a formação de conteúdos conceituais, ainda hoje constitutivos do Direito Internacional e dos Direitos Humanos. Tais conteúdos serão analisados levando-se em conta a relação e o desenvolvimento de teorias filosóficas e jurídicas de pensadores considerados relevantes.

    Portanto, no que se refere a essas análises, não houve, e nem há, a pretensão de negar ou excluir outras formas de entendimento da racionalidade humana, em geral, ou na área jurídica, de modo particular. Assim, e como indicam os grandes delineamentos dos dois extensos capítulos que compõem esta obra, o que efetivamente se perseguiu, para se chegar a este ensaio, foi a anteriormente referida procura da concatenação histórico-filosófica básica dos conceitos de Direito e Direitos Humanos (entrelaçado no Direito Internacional), mediante a permeação da História do Direito na própria História da Filosofia, no longo percurso da Antiguidade Ocidental à segunda fase do Pragmatismo pós segunda Guerra Mundial do séc. XX.

    Deste modo, o objetivo do primeiro capítulo, que de fato norteou a existência do segundo, foi o de buscar entendimento conceitual sobre Direito, ainda em contextos quase puramente histórico-filosóficos. E essa busca, direcionada para os Direitos Humanos no capítulo seguinte, se bifurcou de acordo com as duas seguintes, e principais, correntes de interpretação conceitual de Direitos Humanos. Primeira, a de algumas teorias mais tradicionais, que procuram explicar a fundamentação teórica dos Direitos Humanos, inclusive com base em proposições ideológicas de macro dimensionamentos, e, segunda, a concernente a novos pontos de vista teóricos que vêm se desenvolvendo, em recentes décadas, sobre processos de formação e efetivação dos conteúdos normativos desses direitos.

    É importante destacar que conceituar Direitos Humanos e lhes atribuir conteúdo tem-se constituído um desafio interdisciplinar, ao longo da contemporaneidade, em vista de que as implicadas dimensões éticas, filosóficas, políticas, sociais, culturais e históricas representam as diversas facetas que tais direitos assumem perante indivíduos e organizações societárias nacionais e internacionais. Contudo, e apesar de constantes tentativas, homogêneas ou compartimentalizadas, de imputação de teores significantes a um feixe de preceitos referentes a Direitos Humanos, para os quais se alegam verossimilhança (não veracidade) e presença de alteridade, atualmente ainda existem várias dúvidas não sanadas sobre estas teorias e suas implicações práticas. Isso se deve ao fato de que a maioria dos atuais pensadores se preocupa em privilegiar o estudo das maneiras de implementação de direitos, mas, nem sempre com o necessário cuidado metodológico de basear seus discursos em teorias fundamentadas.

    Como se pode ver, em termos filosóficos e ao longo dos séculos da história Ocidental, a ideia de DIREITOS foi gradualmente consolidada para se tornar uma questão estatal, com garantias de normas constitucionais. Consequentemente, por muito tempo a proteção de direitos de homens e mulheres foi concebida apenas dentro das fronteiras de cada Estado soberano. No entanto, quando as relações internacionais se intensificaram e se romperam as barreiras jurídicas que prendiam os Estados e a sociedade internacional ao conceito clássico de soberania, tornou-se possível a coexistência do sistema de proteção dos direitos fundamentais, inclusive pela mediação do sistema de proteção internacional dos Direitos Humanos.

    Aliás, contemporaneamente é inimaginável considerar a não importância dos Direitos Humanos para o desenvolvimento da dignidade da pessoa e das coletividades, bem como inegável é a sua relevância como instrumento tanto para a consolidação de valores compartilhados pela comunidade internacional quanto de inspiração daqueles que são positivados pela República Federativa do Brasil. Não é, portanto, desnecessário lembrar que os Direitos Humanos, em sua conceituação inicial, fazem parte dos pilares de sustentação da sociedade, principalmente porque são limitadores do exercício autoritário do poder, devendo as atuações estatais e internacionais primar pela sua garantia.

    Nessa perspectiva, a primeira concepção relacionada a Direitos Humanos é comumente sabida como associada aos direitos da humanidade, visando resguardar os valores mais preciosos da pessoa humana, enquanto constitutivos de sua própria dignidade. Contudo, em razão das grandes divergências teóricas, mesmo esta descrição prosaica tem sofrido críticas, pois há grande dificuldade em associar conteúdo material às nuances de linguagem utilizadas por tratados de Direitos Humanos, os quais tendem associar palavras a conceituações de significados apenas semânticos, portanto, sem concretas garantias e condições pragmáticas de efetivação na realidade. Nesses termos, os Direitos Humanos, ao invés de conterem em si disposições identificadas com a autodeterminação do indivíduo e dos grupos sociais, podem ser considerados modo de imposição de uma visão de regulação social frente aos demais, tornando substrato de discursos demagógicos e hipócritas.

    Deste modo, o reconhecimento por parte de entes da sociedade internacional de um rol de normas que se voltam à proteção dos indivíduos e dos grupos sociais, em nível universal, significa um desafio para o próprio Direito, em diversas situações ainda entendido como uma pseudociência arraigada a concepções dogmáticas e pouco reflexivas, que visam à pacificação social em prol de interesses particularizados.

    Por outra, o sistema de normas internacionais, ao acolher certa submissão, pelo menos teórica, à reflexão como representação da interação social mundial, se vê em crise, ou seja, entremeado por questionamentos sobre sua eficácia e, portanto, passível de sofrer substanciais mudanças. Assim, não se pode conceber mais o Direito como fruto de algo alheio aos anseios humanos, mas como sua consequência direta, portanto, por si, eivado de qualidades e imperfeições, virtudes e vícios, como o produto das tensões próprias da sociedade.

    Como dito anteriormente, resta esperar que todo o esforço de concretização deste ensaio, de fato, contribua para que a comunidade acadêmica e os leitores de uma maneira geral possam melhor refletir sobre o tema. O entendimento de Direitos Humanos, assim como o do próprio Direito, não se perfaz por verdades absolutas nem por intermédio de conceitos acabados, mas é fruto de processo construtivo e social, do qual todos nós fazemos parte.

    2. Dimensões histórico-filosóficas primordiais do conceito de direito

    No que diz respeito à organização deste capítulo, se busca, por meio dos tópicos que se seguem, investigar a dimensão histórico-filosófica dos focos básicos em estudo, principalmente os concernentes a conceituações de Direito, Direito Natural, Direito Internacional e Direitos Humanos. E esta empreitada percorre um longo caminho no decorrer da História, da Antiguidade Grega ao fim da primeira fase do Pragmatismo, pela deflagração da Segunda Guerra Mundial, em 1939, portanto já em pleno séc. XX.

    Este capítulo se delineia no sentido de prover ao leitor, à maneira de caminhada retrospectiva, visão de conjunto dos fatores mais relevantes, frutos de uma espécie de garimpagem histórico-filosófica das raízes conceituais do Direito, no intuito de se desvendar quais os conteúdos materiais de Direito vêm sendo herdados da História da Filosofia, ainda subjacentes ao que hoje se entende por Direitos Humanos. Deste modo, muito se falará em Direito, ou direitos, mas o desenvolvimento do estudo é ainda permeado por questões relativas à justiça, ao bem, dentre outros. A concepção de Direito Natural, por exemplo, que aparece muito na antiguidade, segue seus desdobramentos até os dias atuais. Para o entendimento destas questões, a História da Filosofia se fará indispensável.

    Em sua vertente especulativa, a História da Filosofia deve ser a ciência capaz de apreender, de maneira sistematizada, o desenvolvimento concreto do saber, com base em suas determinações e elementos. Não se pode olvidar, contudo, que os graus de desenvolvimento se diversificaram com o passar dos séculos, e que não é possível identificarem-se no passado as mesmas preocupações vivenciadas no presente. Hegel (1985, p. 349) enfatiza que [...] toda a filosofia, precisamente por ser expressão dum especial grau de desenvolvimento, pertence ao seu tempo e está circunscrita aos seus próprios limites. Desta forma, é importante lembrar que, cada vez, mais os agentes humanos procuram um conceito mais profundo de si e as filosofias antigas, em razão de seu contexto específico, não podem responder às necessidades de outro contexto. Em verdade, os antigos, a exemplo da Patrística, trabalhavam conteúdos conceituais de outra época e contexto, como céu e inferno, portanto, inadequados para se aplicar ao atual Direito. Entretanto, o acúmulo do conhecimento é indissociável do desenvolvimento, por meio da razão, de técnicas e teorias que buscam soluções para problemas próprios de cada época. Deste modo, a História da Filosofia pode demonstrar a maneira pela qual os conteúdos conceituais acerca do humano, construídos no passado, evoluíram através dos tempos e influenciam o presente.

    Hegel procurava demonstrar a existência de uma sociedade especulativamente construída, cujo objetivo seria a subsequente evolução dos conteúdos conceituais compartilhados pela humanidade, como resultado de esforço reflexivo contínuo, pelo qual a ideia e a prática voltam-se sobre si, e se retroalimentam. A história se mostra como o meio pelo qual se pode comprovar que são basicamente os mesmos conteúdos conceituais, embora transmutados pela recepção em outro tempo e contexto, que nutrem as asseverações sobre a realidade (HEGEL, 1985, p. 339). Desta forma, procurar-se-á captar, através da História da Filosofia, a identificação dos nexos constitutivos dos conteúdos conceituais em relação ao que se denominou de natureza humana. Estas asseverações, concernentes às potencialidades humanas, constituíram variáveis para o pensamento filosófico durante os últimos dois mil e quinhentos anos da história da humanidade e, hodiernamente, ainda são parte fundamental do Direito, em especial dos Direitos Humanos.

    A História da Filosofia se assenta sobre movimento não aleatório de estudo e aprofundamento de concepções do justo, do bom, de felicidade, de natureza e de humanidade, visto que a função da Filosofia é, primordialmente, a de promover o entendimento do agente humano, ao qual se atribui a faculdade da razão. É, ao mesmo tempo, instrumento e ambiente próprio para o estudo de ideias inquietantes, que desafiaram a mente de diversos filósofos e para as quais, pelos mais distintos meios, ainda se procura encontrar explicações: a finitude, a transcendência, a finalidade e a causalidade das ações humanas. Hamlym (1990, p. 5-8) sustenta que a História da Filosofia deve ser também Filosofia, não apenas uma história de ideias, pela qual se utiliza da perspectiva histórica para a avaliação do desenvolvimento do pensamento humano e se transmitem senso e justificativas do que é filosoficamente importante. Constitui-se em meio pelo qual se avalia o complexo e múltiplo mundo das questões filosóficas, além de, por si, e em sua vertente especulativa, ser fonte de considerações filosóficas, visto que o argumento filosófico permanece aberto em seu processo dialético de constituição.

    2.1 Concepções primeiras de Ética, Justiça e Direito: a Antiguidade Ocidental

    Apesar de a Filosofia possuir amplo espectro, Hamlym (1990, p. 7) afirma que é possível perceber continuidade de interesse e problemas a partir dos gregos, que deram origem à maior parte das indagações que permeiam a mente ocidental e as ações humanas ainda nos dias atuais. Neste sentido, é importante salientar que os próprios mecanismos encontrados pelos agentes humanos para comunicação e preservação dos conteúdos pensados, que são formados a partir dos símbolos linguísticos expressos e implícitos em comportamentos sociais, ajudam a explicar como o pensamento grego foi conservado. Sucessivas gerações de filósofos regularmente revisitaram as fontes gregas clássicas e buscaram, nas premissas gregas de explicação da racionalidade humana, a fundamentação para suas concepções de mundo.

    Desta forma, a ênfase de Châtelet (1973, p. 17-18) de que a filosofia fala grego reflete este desenvolvimento de pressupostos filosóficos a partir de pensadores da Grécia antiga, dado que a concepção grega do homem e do mundo fez com que o universo dos deuses desaparecesse paulatinamente. Ressalte-se, então , pelo estudo das obras de Homero feito por Snell (2009, p. 25), o entendimento sobre os deuses entre os gregos antigos era a de que pertenceriam à ordem natural do mundo, alheios, portanto, a limites políticos e a nacionalidades. Deste modo, indubitavelmente, esta vida superior dos deuses faria com que as ações humanas se desenvolvessem paralelas à sua vontade, o que conferiria, por si, sentido à existência terrena (p. 29). O estatuto de dependência dos humanos em relação a divindades, descrito por Homero, sofreu, na época clássica, substanciais modificações, pois o homem passou a ser considerado filosoficamente o cidadão-guerreiro, autor de suas próprias decisões e condutor dos processos definidores de seu destino.

    A língua grega clássica, que trabalhava com diferentes pessoas (1ª, 2ª e 3ª) e com gêneros distintos (masculino, feminino e neutro), tanto no singular quanto no plural, era bastante versátil e já proporcionava os instrumentos necessários para a construção de conceitos complexos. A versatilidade da língua e a variedade do vocabulário foram responsáveis pelo desenvolvimento de enunciados claros quanto à sua estrutura sintática, capazes de exprimir significados abrangentes. Por isso, estes símbolos linguísticos já disponibilizavam instrumentos que permitiam, por meio do estudo das relações entre os seres, exprimir e identificar o conteúdo material que serviria de substrato para o florescimento da filosofia.

    Segundo Abbagnano (1991, p. 23-24), teria sido a poesia grega a responsável por estas mudanças, visto que [...] a reflexão moral dos poetas elaborou na Grécia os conceitos fundamentais que deviam servir aos filósofos para a interpretação do mundo. Na própria Odisseia de Homero, por exemplo, vê-se pela primeira vez a preocupação em descrever uma lei definidora da justiça, cuja função principal seria a de dar unidade ao mundo humano, que tinha as figuras dos deuses como seus guardiães e garantes. Por meio desta lei, haveria determinação de ordem providencial às atribulações humanas, pois o justo prevaleceria em detrimento do injusto. Portanto, antes que a filosofia descobrisse e justificasse a unidade da lei por sob a multiplicidade dispersa dos fenômenos naturais, a poesia grega descobriu e justificou a unidade da lei por sob as vicissitudes aparentemente desordenadas e mutáveis da vida em sociedade (ABBAGNANO, 1991, p. 24). Deste modo, já circulavam entre os gregos símbolos linguísticos impregnados de conteúdo, que eram implícita ou explicitamente determinantes de normas sociais.

    Os códigos linguísticos da Antiguidade clássica grega, que foram preservados ao longo dos séculos, revelaram a rica experiência de sua sociedade, cujos primórdios filosóficos remontariam aos fins do séc. VII a. C e a Mileto, colônia grega na Ásia Menor, atual Turquia. Suas inquietações, contudo, não se centravam em desvendar a natureza social do homem, mas buscavam determinar a composição do universo e desvendar suas leis mestras, por meio da observação e reflexão sobre a composição primária das coisas e acerca dos opostos, que se aplicam aos estados da matéria. Os primeiros filósofos¹ se relacionavam especialmente com a physis, aquilo que era considerado a realidade primeira, originária e fundamental, aquela capaz de gerar e propagar a vida e explicar o crescimento e desenvolvimento das coisas.

    A partir dos pitagóricos², de Heráclito (535-475 a.C.)³, mas principalmente de Parmênides (510-440 a.C.), há evolução na concepção de realidade, apesar de ela ainda estar ligada diretamente a noções de cosmologia e natureza. A grande contribuição de Parmênides, que iria depois influenciar vários filósofos, como Aristóteles (1973b, p. 223) e Hegel (1995, p. 253-254), é a ideia de que o pensamento só expressa aquilo que é (Diels 28,2), que existe de alguma maneira e é por si, produto da racionalidade humana. Isto porque não se pode falar do que não é, do que não existe. Tudo, como fruto do intelecto humano, existe por esta razão, o que é capaz de constituir o homem como ser livre de todas as ideias e opiniões que lhe seriam alheias (Diels 28,6) (FREEMAN, K., 1948, p. 18-19). Desta forma, Hegel (1995, p. 254) considera este avanço de Parmênides, no que respeita ao que é idealmente observável como o ponto inicial da Filosofia propriamente.

    Anaxágoras de Clazomena (ca. 500-428 a.C.) e Demócrito de Abdera (ca. 460 – ca. 370 a.C.) foram filósofos que, de alguma forma, responderam ao pensamento de Parmênides, cujo interesse pela astronomia lhe teria rendido a afirmação de que os corpos celestes, ao invés de deuses, eram pedras incandescentes (Diels 59,15) (FREEMAN, K., 1948, p. 85). Anaxágoras foi considerado por Sócrates demasiadamente mecânico por dar atenção excessiva ao funcionamento das coisas e não a seus propósitos e significados. Demócrito, filósofo, matemático e astrônomo contemporâneo de Sócrates teve grande influência no grande embate no campo ético e jurídico que se deu em Atenas durante a época dos sofistas.

    Filósofos que se seguiram deram curso ao pensamento filosófico em constituição. A insatisfação das soluções para os impasses apresentados multiplicou os modos de pensar em diferentes vertentes filosóficas fez com que muitos assumissem postura cética, como Demócrito, enquanto outros se dedicassem à persuasão. Os sofistas, que vieram de todas as partes da Grécia para Atenas, atenderam à demanda crescente da cidade por formação de cidadãos capacitados para defender ou atacar discursivamente ideias ou iniciativas, participando de debates na ágora. Eram, em sua maioria, pessoas com costumes e conhecimentos diversificados e de fontes variadas, que ensinavam retórica, artes políticas, excelência moral e discurso jurídico. Os sofistas sofreram também grande influência de Heródoto (ca. 485-420 a. C.), historiador que havia viajado por todo o entorno do mar Mediterrâneo e que voltou à Grécia trazendo diferentes narrativas de outras culturas (HAMLYM, 1990, p. 26).

    Os sofistas, desta forma, valorizaram primordialmente as relações interpessoais, imprescindíveis para a existência do Direito; ajudaram a aprofundar discussões políticas, debates morais, escritos históricos e filosóficos, o importante e polêmico debate promovido acerca dos conceitos de nomos⁴ e physis, a convenção e a natureza. Este embate era realizado com filósofos como Platão, cujas obras ajudaram a preservar seu conhecimento. A controvérsia girava em torno, portanto, de dois pontos de vista: a relação entre como as coisas são na realidade, independente do pensamento humano, e como são representadas pelos pensamentos e práticas humanas (TAYLOR, 2007, p. 1).

    Considerava-se, pois, que a physis estava relacionada com o nascimento e com o crescimento, ou seja, como um fenômeno da natureza surge e se desenvolve. Nomos, ao contrário, faria referência ao que é adquirido ou estabelecido por costumes e pelas práticas desenvolvidas na polis. O mundo poderia ser explicado também como criação dos homens, e não simplesmente como fruto da natureza. Os sofistas defendiam que aquilo que tivesse origem na physis seria inviolável e permanente (HAMLYM, 1990, p. 26). Consequentemente, muitos deles tendiam a ver as coisas como são na realidade, em vista da transgressão que tais coisas podem sofrer através da ação humana, e não como imutáveis ou intransponíveis, como se fossem produto da physis (VINOGRADOFF, 1920, p. 25-26).

    É importante ressaltar que Platão denominou diversas de suas obras com nomes de sofistas, e dedicou parte de sua teoria para criticar sistematicamente suas concepções que davam ao nomos prevalência sobre a physis e a exaltar aquelas que fizeram o contrário. Nas passagens do diálogo Protágoras (PLATÃO, 1999, p. 113), dedicadas a Hípias de Élis, (ca. 460 a.C.-399 a.C.)⁵, Platão coloca nos dizeres de seu personagem a afirmação de que os homens seriam parentes e concidadãos por natureza, não por lei (337d). Seria a complementação do que Platão escreveu em Górgias (2011a, p. 303) ao citar e comentar o poeta tebano Píndaro (518 a.C.-438 a.C.)⁶, referente ao papel da natureza, reconhecida como a única que pode constituir a verdadeira base do agir humano. Já a lei seria tirana aos homens, os forçando a muitas coisas contra a própria natureza (484b).

    Sócrates (469–399 a.C.), cuja sabedoria vem retratada por Platão e outros seguidores, foi, no entender de Cícero (1875, p. 15-17), o primeiro a desviar a filosofia de seu caminho obscuro do passado, que a envolvia em questões mais afastadas do homem, para especular sobre as virtudes e os vícios dos humanos. A partir dele, e da reflexão argumentativa sobre suas teorizações, Platão expõe, em inúmeros diálogos, suas observações acerca do homem e do mundo, e o coloca como protagonista mais importante em diversas questões.

    Verifica-se que a ideia de etos e de ética estava, para os antigos gregos, associada aos conceitos de utilidade, virtude e felicidade, e todos eles profundamente arraigados ao fenômeno temporal e à convivência comunitária. Assim, a ética garantiria a vida comunal harmoniosa, impediria o remorso e arrependimento de quem praticasse algo que lhe fosse contrário. A vida virtuosa seria a promessa de uma felicidade duradoura, que proviria do sentimento de não se ter praticado algo de mau, ou, como defenderia Sócrates, para quem tivesse usufruído de uma vida pura (SNELL, 2009, p. 169-185).

    É neste ponto que Sócrates passou a defender conceito diferente de etos, o que determinou a virada do pensamento ético na Grécia antiga. A felicidade para ele viria de algo interior ao homem e não dos deuses. A ética também não seria exercida por mera utilidade, ou por uma utilidade aparente, mas por plena liberalidade da consciência humana no sentido de o homem [...] esforçar-se para encontrar o bem (SNELL, 2009, p. 186). Sócrates defendia que a utilidade deveria correspondera ao verdadeiro conhecimento e não a uma opinião. A felicidade duradoura não seria a terrena, mas a vivenciada em um mundo invisível, cuja descrição seria o intuito principal de sua filosofia. Instintos e paixões seriam apetites físicos, pertencentes a um mundo de aparências (p. 190). Desta maneira, a realidade e o concreto pouco interessaram a Sócrates, que não apresentava qualquer alternativa para a substituição das instituições vigentes na polis que porventura considerasse deficientes. Suas alusões ao Estado restringiram-se às críticas que fazia à falta de virtude dos governantes, que deveriam ser homens que conhecessem o bem e partilhassem do verdadeiro conhecimento (p. 191-194). Esta filosofia teria grande impacto na obra de seu discípulo, Platão, e nas recorrentes problematizações sobre o nomos e a physis de sua época.

    Os temas abrangidos nos debates sobre nomos e physis eram de diversas ordens, e abarcavam questões como a divisão do trabalho e a possibilidade de escravidão, a moeda e a aferição do valor econômico das coisas, a isonomia de cidadãos e estrangeiros, além da própria organização do Estado (VERNANT, 1990, p. 345, 463, 467-468). Assim, para os sofistas, o principal problema em relação ao Direito era determinar o quanto das leis básicas da sociedade teria sua fundamentação na natureza das coisas ou no seu estabelecimento dito artificial. Esta preocupação foi desenvolvida pela reflexão sofista por meio de sua interpretação de pensadores como Anaxágoras e Demócrito (VINOGRADOFF, 1920, p. 26-27).

    Archelaos, discípulo de Anaxágoras, deixou para a posteridade a afirmação de seu mestre de que o certo e o errado não existem pela natureza, mas pela opinião, o que indubitavelmente teve grande influência sobre os sofistas (VINOGRADOFF, 1920, p. 27). Snell (2009, p. 238-239) sustenta que, para Demócrito, a matéria de um determinado corpo seria algo próprio da realidade, independente das convenções humanas, e tudo o que não pudesse ser assim descrito pelo intelecto era composto de átomos e vazio (Diels 68,7) (FREEMAN, K., 1948, p. 93). Todavia, Cartlegde (1999, p. 23) faz remissão ao entendimento das ações políticas e éticas do homem por Demócrito, como frutos da convenção humana, visto que, conforme o fragmento Diels 68,125, são fundadas na realidade da natureza do homem (FREEMAN, K., 1948, p. 104). A razão pura, portanto, sem que houvesse a percepção dos sentidos, de nada adiantaria, pois o caminho do entendimento adviria de uma postura equilibrada entre a razão intelectual e a experiência sensorial.

    Protágoras de Abdera (490-420 a.C.), o sofista protagonista de um diálogo homônimo de Platão, apresentava o nomos como produto da physis, fruto do desenvolvimento natural humano. Para ele, o homem seria a medida de todas as coisas, conforme consta no tópico 386a de Crátilo, outro diálogo de Platão (1892b, p. 325-326). Consequentemente, tudo o que pode ser medido pelo homem, como leis e cultura, faria parte do nomos, abrangendo conteúdos variáveis e válidos apenas para os lugares em que os homens as convencionassem. Esta máxima também significa que as coisas são conhecidas de uma forma particular e muito pessoal por cada indivíduo, o que vai de encontro ao projeto de Sócrates de se chegar ao conceito absoluto de cada coisa (MACDONALD, 2003, p. 41).

    Platão (1999, p. 90-93) explica o entendimento de Protágoras por meio dos mitos de Epimeteu e Prometeu, pelo qual os seres humanos são animais competindo tanto uns com os outros quanto com outras espécies pela sobrevivência em ambiente hostil. O sucesso dos seres humanos dependeria basicamente da inteligência, associada aos presentes de Prometeu, desde que fosse combinada com as dádivas de Hermes e Zeus, que dariam as bases para o reconhecimento mútuo e a cooperação necessária para a organização social (320-322). Assim, seria internalizada a aceitação das formas de consciência e do senso de justiça, sem as quais a sociedade não poderia existir. Platão (p. 94) não concorda com a afirmação de Protágoras de que toda a medida está no homem (323c), pois o convencionalismo em relação à produção do conteúdo normativo não protegeria a humanidade de um tirano, que tivesse a intenção de impor pela força o que seria contrário à natureza. Para Platão (p. 97-98), nas palavras que coloca para Sócrates, as convenções políticas de conteúdos distintos em diferentes unidades políticas constituir-se-iam em estratagemas humanos no sentido de distorcer a real natureza das coisas, a fim de que prevalecesse a norma que favorecesse o interesse pessoal do legislador (326d).

    Górgias de Leontini (487-376 a.C.) preocupava-se em distinguir a natureza e a convenção, de uma forma geral. Por essa razão, foi considerado por Vinogradoff (1920, p. 28) pensador cujo subjetivismo extremo refletia que todo o homem teria direito de determinar seus padrões de verdade, o que gera como consequência a impossibilidade de existência de uma verdade geral e última. Como este entendimento sobre o homem em Górgias era bastante diferente do de Platão, que concebeu uma ideia de homem, ou melhor, de que na verdade o ser humano era uma representação imperfeita de formas ideais (SNELL, 2009, p. 258), o raciocínio de Górgias não teria o menor sentido dentro da filosofia platônica. A filosofia, para Platão, era o caminho para se buscar o divino e não o mundano (p. 259). Assim, Platão (2011a, p. 175-209) descreve que, para Górgias, a lógica, como pressuposto dialético, não teria qualquer sentido. Seria, portanto, substituída pela retórica. Assim, a dedução lógica daria ensejo à mera sugestão. A retórica, vazia dos pressupostos lógicos, por sua vez, só serviria para que ocorresse a persuasão dos ouvintes (453a).

    Trasímaco (ca. 459-ca.400 a.C.), sofista originário da Calcedônia, que ensinou em Atenas, foi também citado por Platão. Como personagem do Livro I de A república (PLATÃO, 1892a, p. 14-15), afirma que a justiça, também entendida como lei ou ética, pois não faz distinção entre os termos conceituais, é a vantagem do mais forte (338c-339a). Taylor (2007, p. 12) identifica várias afinidades entre o Trasímaco de A república e o personagem do diálogo Górgias, Cálicles, retratado como recalcitrante. O que aproxima Trasímaco e Cálicles seria a maneira como buscariam inverter valores e conceitos com intuito de explicar, ou mesmo motivar, a injustiça.

    Trasímaco, conforme Platão (PLATÃO, 1892a, p. 9-22), propõe a ideia de que a injustiça, em escala suficientemente ampla, é mais forte, mais livre e mais magistral que a justiça, em razão de ser uma reação dos excluídos da produção normativa contra as posições do poder político tirano (334c). A injustiça, para Trasímaco, traria o ápice da felicidade para o ser humano, pois causaria ao que dela desfruta a satisfação negada pela pretensa justiça do mais forte (344a). A crítica de Platão, no entender de Taylor (2007, p. 12), seria no sentido de determinar a amoralidade de Trasímaco. Ética, Justiça ou Lei não teriam significado, visto que não carregariam em si conteúdo algum materialmente representativo da realidade, já que o último desejo dos homens seria abandonar tais convenções em favor da máxima satisfação pessoal.

    Nascido por volta de 445 a. C., Glauco, irmão mais velho de Platão, é personagem de várias de suas obras. Pelas palavras que lhe são atribuídas no Livro II de A república (PLATÃO, 1892a, p. 36-39), partiu do princípio apresentado por Trasímaco, sobre o entendimento de que a lei era nada mais que a combinação do fraco em oposição ao forte (358c). Contudo, postula sua formulação baseando-se na justiça como sendo válida apenas por suas consequências e não por seu próprio direito (359b). Sua concepção de Moralidade é mais realista no sentido de como seria possível ao homem buscar a felicidade, pois identificou a origem da Moralidade na própria formação da sociedade.

    Sua proposição assemelha-se ao contrato social hobbesiano, visto que os seres humanos seriam, em última instância, egoístas, e estariam sempre aptos a explorar seus semelhantes sem qualquer restrição. A solução então seria que se unissem em um entendimento que sobrepujasse a exploração mútua. Escolheriam tornarem-se seres racionais, que procurariam promover o interesse individual em situação de competição. Isto porque a vida social, por si, deveria evitar que a natureza humana, egoísta e gananciosa, promovesse a opressão e forçasse os homens a convencionarem objetivo que lhes fosse naturalmente inatingível, a liberdade própria de cada um. A verdadeira felicidade e a perfeição humana estariam, então, na promoção de seu individualismo através da vida social normatizada pelo nomos (TAYLOR, 2007, p. 13-14).

    Verifica-se no texto de A república que o convencionalismo atribuído à lei por Glauco é ainda mais enfático do que o foi para Trasímaco. A referência a este posicionamento também aparece em Górgias, através das palavras que Platão atribui ao personagem Cálicles sobre o comportamento de Sócrates, que se afastara do convívio social e da política para dedicar-se à Filosofia (2011a, p. 295-311). Os acusadores e julgadores de Sócrates, que eventualmente o condenariam à morte, representariam aquelas pessoas para as quais, uma vez tornada possível a prática da injustiça, indubitavelmente a cumpririam (LOPES, 2011, p. 95-97).

    Platão foi responsável por refinar o uso dos diálogos como forma de expressão de conteúdos materiais e da dialética. Diógenes Laércio (ca. 200-250 d.C.), historiador e biógrafo de filósofos, enfatizou que outros já haviam se utilizado do método dialógico, mas foi em Platão que seu estilo foi aprimorado. Laércio (2010, p. 130) definiu o diálogo como sendo discurso constituído de interrogações e réplicas a respeito de temas filosóficos ou políticos, acompanhado da composição apropriada das personalidades das personagens envolvidas e da construção da linguagem.

    Para exemplificar a importância dos caracteres para os diálogos de Platão, Lopes (LOPES, 2011, p. 29) identifica em Górgias o personagem Cálicles como um representante do oportunismo político e da imoralidade. No seu diálogo com Sócrates, Platão implicitamente atribui a Cálicles um comportamento próprio da corrupção política vivenciada em seu tempo, não apenas pelo conteúdo dado às palavras que profere, como também em razão de sua pretensa recalcitrância (482d-486d). Cálicles, no entender de outros personagens, inverteria o senso de valores, ao atribuir justiça à imoralidade, em vista de considerar a justiça um instrumento de imposição do forte sobre o mais fraco. Platão lhe arroga comportamento impetuoso e brusco, que transforma o discurso de Sócrates em um monólogo, sem que seu interlocutor interaja com ele e seja passível de ser convencido por seus argumentos.

    Platão, apesar de não ter se expressado no sentido de formular conceituação de direitos, produziu argumento ainda muito influente para explicar como a racionalidade humana deve ser exercitada, e quais são suas próprias ou intrínsecas capacidades. Como visto, A república é uma obra que exemplifica esta filosofia, pois defende, por meio do método maiêutico-socrático, que as realizações humanas devem ser guiadas pela natureza do bom e do correto. Platão propõe que essa condução de raciocínio leva ao que é justo e, por conseguinte, ao desenvolvimento de uma comunidade justa.

    Com o uso refinado da linguagem dos diálogos e da dialética, como anteriormente referidas, Platão dedicou-se, dentre outros assuntos, a estudar o logos, como será visto a seguir, bem como a apresentar a distinção entre nomos e physis. Enfatiza-se que a partir de obras como Protágoras, Górgias e A república e também Crátilo, Antifon, Platão propõe a existência de distinção entre a lei da natureza (o que seria chamado de Direito Natural) e a lei posta pelos homens (Direito Positivo). Lacerda (2009, p. 107) afirma que elementos básicos de uma teoria do Direito Natural em Platão já podem ser percebidos em Górgias, mas é na obra A república que seus contornos se tornam definitivos, em razão da definição de que a justiça consiste em uma ordenação da alma. Seria, portanto, algo inteligível para os seres humanos capaz de promover a harmonia entre os mesmos, que dela se utilizariam como modelo para o legislador e arquétipo para suas leis. Bretone (1998, p. 243) identifica esta ideia em Platão, principalmente nas passagens 500b-501c de A república (1892a, p. 199-200), pelas quais se percebe a inspiração de Heráclito para a concepção platônica da existência de uma única lei divina que alimentaria todas as leis humanas.

    Assim, a verdadeira contribuição de Platão para o desenvolvimento do conhecimento e da linguagem estaria em dar continuidade ao trabalho iniciado por Heráclito ao romper com a ideia antiga de logos. Seu significado, inicialmente atribuído à palavra escrita ou falada, o verbo, tinha sua concepção ligada intimamente ao entendimento de dignidade e onipotência divina. Para Heráclito, o logos se torna o condutor do universo, pois o cosmos não poderia ter sido criado por deuses ou pelos homens, em razão de

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