Self cultural: Sujeito do inconsciente e história
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Em fragmentos de sua própria experiência na clínica, onde tudo tem início e fim em psicanálise, Ab'Sáber nos apresenta um mergulho profundo e desafiador na trama simbólica e concreta do mundo na determinação das formas de sofrimento psíquico atuais.
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Self cultural - Tales Ab'Sáber
1798
1.
Romantismo guardado
É curioso que a psicanálise, tendo sido herdeira da tradição intelectual alemã de questionamento dos processos de engendramento da vida subjetiva, tenha aberto mão de uma das vias mais significativas dessa linhagem: a abertura dialética, ou reflexionante, do sujeito ao objeto, ao mundo.
O objeto, que em Fichte e Schelling, mas também em Novalis e Schlegel, é o polo da ação reflexionante que pode levar à consciência da natureza do eu, – o que verdadeiramente importava para aqueles homens –, e que em Hegel já será alçado à condição de história, tornou-se em Freud uma região contingente do humano, a parte menos determinada do destino de suas pulsões sexuais. O seu inconsciente conhece objetos de suas próprias determinações, mas o seu consciente pouco conhece sobre o trabalho da relação reflexiva com os objetos, com o mundo e suas composições.
Talvez o que tenhamos aí seja a preponderância do kantismo na consciência intelectual do primeiro psicanalista. Freud formou-se mesmo como pesquisador na célebre e neo-kantiana escola científica de Helmholtz,¹ em que foi recebido, ainda muito jovem pelo não menos célebre mestre Ernest Brücke, tão presente em seus sonhos. Para esta escola, são as estruturas da natureza, na medida em que elas possam alcançar o real das coisas, e depois, em Freud, as estruturas da natureza da realidade psíquica humana, que interessam reconhecer, ao invés do movimento de oscilação dialética, sempre a ser renovado, entre o sujeito e o mundo, que o constituiria como sujeito de uma ação intelectual e existencial sempre em expansão, porque histórica. Freud pode pensar a pletora de possibilidades que seria a potência polimorfa da sexualidade humana, mas não ousou pensar, por exemplo, que sua modulação mais radical pudesse estar de acordo com o andamento da história:² assim, por exemplo, não notou as pulsações históricas no sonhar e na forma do sonhar humano.
Por outro lado, é nítido que o processo da psicanálise de Freud interiorizou no sujeito humano, que chegou a conhecer uma série de temas e problemas próprios ao universo idealista e romântico, que rigorosamente a antecipou. Há nele uma fala cifrada e onírica daquela sua outra tradição, como a própria obra, e os seus sonhos, sempre foram pontuados pela subliminar – mas definitiva – presença dos poetas Goethe, Schiller e Heine.³ O caldeirão do Id, por exemplo, lugar tópico mais profundo do traçamento inconsciente e de sua lógica primária, frente ao qual apenas a feiticeira da metapsicologia tem algum acesso, é um mundo de lógica singular, onde o tempo coincide passado, presente e futuro, o espaço condensa diferenças em um mesmo, e todo desejo se realiza na própria formulação. Não é difícil percebermos o quanto o id freudiano, em sua lógica mais geral, guardou em si o universo de vocações psíquicas absolutas, negativizando-o, e temos aí um dos temas maiores da epistemologia idealista romântica.⁴ A experiência psíquica romântica não seria apenas a condição histórica de existência da psicanálise, mas encontraria seu lugar teórico bem delimitado no interior da vida teórica da nova ciência,⁵ ao mesmo tempo, e isto é da maior importância, que toda esta matéria histórica foi por ela tornada negativa.
Tal construção teórica mantém viva, no interior da clínica psicanalítica, a possibilidade das mais variadas expansões de sentido do sujeito, através das suas cadeias significantes que adiam ou realizam nós de desejos inconscientes – junto ao processo de esclarecimento, reconhecimento e sustentação emocional, de suas instâncias no próprio analista –, campo de experimentação do humano que também tem correspondência, pela grande expansão dos temas e dos objetos psíquicos que realiza, com o modelo vivo do homem que poetas e filósofos alemães do início do século XIX propunham.⁶
A estruturação, o Édipo – cada vez mais acentuado conceitualmente –, que Freud vai encontrar no interior de tal pluralidade de formas e fluxos, que é a original da metapsicologia dos sonhos – tema e mundo romântico por excelência –, talvez seja a da sobreposição epistemológica pós-kantiana sobre a tradição especulativa anterior, ela também guardada transmutada em algum lugar da psicanálise de Freud.
Como é apropriado ao pensamento romântico, como aqueles homens de início do XIX elaboraram, esta tradição deve aparecer em Freud como um horizonte de fragmentos inspirados, mas de grande poder de sugestão humana, em geral de inspiração estética, mas sempre de caráter teorizante. Trata-se de um horizonte de fragmentos imantados de sentido que perpassam toda a obra e tornam presente o romantismo alemão em Freud⁷ e que correspondem, intimamente, à dura noção freudiana – de caráter reflexivo e dialético –, de que o poeta sabia diretamente aquilo que o homem de ciência, ele próprio, só podia alcançar através de um longo trabalho de mediações, o trabalho próprio da sua feiticeira conceitual. Também este campo de fragmentos dialéticos de inspiração romântica que povoa a obra freudiana lhe dá uma boa parte de sua pulsação poética, como uma espécie de tapeçaria inconsciente, interior à obra,⁸ constituindo uma textura de poética pessoal, de apresentação mesma da ordem do self de Freud, que não é pouco importante na sua transmissão e no valor de sua psicanálise para os outros, que por ele foram tocados.
Este conjunto de mínimos ensaios que aqui apresento, já emancipados das estruturas históricas da organização psicanalítica freudiana, pretende voltar ao pólo dialético, eu diria mesmo hegeliano, que toda vida subjetiva, mesmo nas profundezas paradoxais do sentido que