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Manual do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento: Exegese e interpretação
Manual do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento: Exegese e interpretação
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Manual do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento: Exegese e interpretação

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O Manual do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, escrito por um destacado estudioso na área de Novo Testamento, oferece ao leitor um roteiro para o estudo aprofundado do sem-número de referências ao Antigo Testamento presentes no Novo.

G. K. Beale, coeditor do Comentário Bíblico do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, concentra-se nos métodos corretos de interpretação do uso que o Novo Testamento faz do Antigo, estendendo a alunos e pastores muitos dos conceitos, categorias e percepções necessários para que eles mesmos façam a sua exegese.

Conciso a ponto de se mostrar acessível, mas ao mesmo tempo completo o bastante para preservar sua utilidade, este manual será um guia confiável para todo estudante sério da Escritura.
LanguagePortuguês
PublisherVida Nova
Release dateOct 25, 2016
ISBN9788527506991
Manual do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento: Exegese e interpretação

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    Manual do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento - G. K. Beale

    objetivo.

    1

    DESAFIOS PARA A INTERPRETAÇÃO DO USO DO ANTIGO TESTAMENTO NO NOVO

    Antes de passar às diretrizes de estudo do AT no NT, é preciso que o leitor saiba da existência de alguns debates clássicos sobre o modo que os autores do NT e Jesus usam o AT.

    Em que medida há continuidade ou descontinuidade entre o Antigo Testamento e o Novo?

    O debate mais importante discute se o Novo Testamento interpreta o Antigo em sintonia com o sentido original do AT. Será que o NT demonstra ter conhecimento do sentido contextual das referências do AT a que recorre? Em que medida há continuidade ou descontinuidade entre o sentido original das passagens do AT e o uso que o NT faz delas? As respostas dos estudiosos são conflitantes.

    O debate acerca da influência da interpretação judaica sobre os autores do Novo Testamento

    Muita gente defende que Jesus e os autores do NT usaram métodos hermenêuticos não contextuais que os fizeram perder de vista o sentido original dos textos do AT que tentavam interpretar. Com isso, deixaram-se influenciar por seus contemporâneos judeus, seja pela exegese rabínica do Midrash, seja pelos manuscritos de Qumran ou pela literatura apocalíptica. Hoje, de modo geral, não consideramos legítimos os métodos não contextuais. Embora se refiram ao AT, não o interpretam de modo coerente com o sentido original da passagem.¹ Por exemplo, costuma-se dizer que o NT converte em alegoria vários textos do AT, atribuindo-lhes significados completamente alheios ao sentido inicial pretendido pelo autor veterotestamentário. Alguns estudiosos concluem que essas interpretações livres são apenas uma das muitas marcas da falibilidade humana manifestas no NT.

    Outros dizem que, em certas partes, os autores do NT se equivocaram em relação ao sentido do AT, mas acreditavam estar sendo guiados em sua interpretação pelo exemplo de Cristo e por seu Espírito. Portanto, embora seu procedimento de interpretação fosse falho, o sentido do que escreveram era inspirado. Consequentemente, apesar de não podermos imitar seus métodos de interpretação hoje, podemos confiar em suas conclusões e crer em sua doutrina.² Pode se comparar esse caso com a mensagem de certos pregadores, cuja interpretação de uma passagem em particular é claramente inexata, mas apresenta boa teologia, que pode ser encontrada em outras partes da Bíblia, mas não na passagem em questão.

    Assim, muitos concluem que um estudo indutivo muitas vezes revelará uma desconexão de sentido entre as interpretações que os autores do NT fazem do AT e o sentido original do texto veterotestamentário. Entre os exemplos dessa suposta interpretação equivocada encontram-se:³

    Argumentação ad hominem: o papel dos anjos na revelação da Lei em Gálatas 3.19, o tema do véu do êxodo em 2Coríntios 3.13-18 e a semente de Gênesis 12.7 (ARC) e 22.17, 18 em Gálatas 3.16.

    Abordagens não contextuais do Midrash: interpretação do batismo e da rocha espiritual que acompanhava [nossos pais] em 1Coríntios 10.1-4;Deuteronômio 30.12-14 em Romanos 10.6-8; Gênesis 12.7 (ARC) e 22.17, 18 em Gálatas 3.16; Salmos 68.18 em Efésios 4.8; Oseias 11.1 em Mateus 2.15.

    Interpretações alegóricas: Deuteronômio 25.4 em 1Coríntios 9.9; uso do AT em Gálatas 4.24; Gênesis 14 em Hebreus 7.

    Interpretações que não levam em conta o todo, não regidas por qualquer tipo de regra interpretativa: Isaías 40.6-8 em 1Pedro 1.24, 25.

    Contudo, alguns estudiosos são mais otimistas em relação à capacidade dos autores do NT de interpretar o AT.

    Não há certeza absoluta de que a exegese midráshica não contextual fosse tão importante para a exegese dos fariseus antigos e de Qumran quanto dizem os especialistas favoráveis à abordagem mencionada anteriormente. Em primeiro lugar, talvez não seja adequado falar de um método rabínico não contextual antes de 70 d.C., uma vez que a maior parte dos exemplos são posteriores, e os mais antigos, os que podem ser datados com alguma probabilidade, não parecem refletir esse enfoque interpretativo livre.⁴ Em segundo lugar, a preocupação com a exegese contextual é encontrada com frequência tanto nos rolos de Qumran quanto na literatura apocalíptica judaica.⁵ Essa análise tem implicações negativas muito fortes para o argumento daqueles que acreditam que os primeiros intérpretes cristãos foram influenciados pela hermenêutica judaica dominante, a qual não se preocupava com o sentido original das passagens do AT.

    Entretanto, mesmo a hipótese de que a exegese do AT no NT teve influência judaica pode ser questionada. Parece plausível, a priori, que os procedimentos de interpretação do NT reflitam as práticas do judaísmo da época. Contudo, uma vez que o cristianismo incipiente tinha uma perspectiva diferenciada em comparação com o judaísmo antigo, não se deve supor que a estratégia exegética do judaísmo e do cristianismo do século primeiro fosse praticamente a mesma.⁶ Para avaliar a questão, é necessário examinar o NT sem preconceito em relação à continuidade ou descontinuidade metodológica. Embora se trate de uma avaliação discutível, não é incomum. Por exemplo, nesse mesmo sentido, Richard Hays disse:

    O judaísmo rabínico, não menos do que o cristianismo inicial, representa (juntamente com a comunidade de Qumran e o judaísmo alexandrino escolástico de Filo, entre outros) uma das várias adaptações diferentes da herança religiosa e cultural apresentada pelas Escrituras de Israel. Essas diferentes adaptações devem ser estudadas, pelo menos inicialmente, como fenômenos análogos, disposições relacionadas, porém distintas, dessa herança. Dizer que um desses fenômenos representa fonte de influência para outro é um possível equívoco, a menos que se possa demonstrar a existência de uma linha de dependência histórica documentável. Uma coisa que se pode atestar com clareza é que todos eles consideram conscientemente as Escrituras fonte e autoridade de suas formulações teológicas tão distintas. Portanto, estamos levando a cabo uma tarefa séria e necessária (mesmo que de modo introdutório) quando investigamos, de maneira independente, o modo que cada um deles usa os textos das Escrituras.

    Não se trata de uma conclusão a que chegaram apenas os intelectuais ingleses e americanos mais conservadores. Hans Hübner, por exemplo, em Biblische Theologie des Neuen Testaments [Teologia Bíblica do Novo Testamento], conclui que a chave para a interpretação paulina do AT não se encontra numa influência determinante do judaísmo sobre o apóstolo. Em vez disso, a forma que os autores do NT lidam com as Escrituras citadas por eles deve ser analisada primeiramente com base em seus próprios escritos, independentemente dos métodos judaicos de interpretação.

    Além disso, não se sabe ao certo se os exemplos típicos de exegese não contextual mencionados são realmente conclusivos. Vários estudiosos propuseram explicações possíveis e até convincentes de que os exemplos dados podiam muito bem ser casos de exegese contextual.⁹ Além disso, mesmo que partíssemos do pressuposto de que fossem exemplos convincentes de hermenêutica não contextual, disso não se conclui necessariamente que sejam, de fato, representativos de um padrão hermenêutico mais amplo do NT.¹⁰ Talvez sejam a exceção, não a regra.

    Um argumento de peso, mas por vezes negligenciado, contrário à visão de que o NT usa o AT com sentido diferente do original, é a obra clássica de C. H. Dodd According to the Scriptures [Segundo as Escrituras].¹¹ Em síntese, Dodd diz que, em todo o NT, há citações numerosas e dispersas derivadas dos mesmos e poucos contextos do AT. Ele indaga a razão de haver tão poucas citações idênticas do mesmo versículo, uma vez que se tem em vista o mesmo segmento do AT; e, em segundo lugar, ele se pergunta por que são citados versículos diferentes dos mesmos segmentos do AT. Ele conclui que esse fenômeno é sinal de que os autores do NT tinham conhecimento dos amplos contextos do AT e não se detiveram apenas em versículos independentes, isolados do segmento de onde foram tirados. Versículos e expressões isolados apenas revelam o contexto geral do AT a que o autor recorre para fazer a citação. Além disso, Dodd conclui que isso foi um fenômeno hermenêutico exclusivo da época, em comparação com a exegese judaica. Afirma ainda que, como esse fenômeno hermenêutico pode ser encontrado nos estratos mais antigos das tradições do NT e uma vez que tais inovações não são características de escolas de interpretação, Cristo é a fonte mais provável dessa hermenêutica original e criativa e, com ele, os autores do NT aprenderam sua estratégia de interpretação.¹²

    Há quem discorde de Dodd, e é bem verdade que muitos estudiosos desse campo costumam dizer que os autores do NT geralmente empregam um método exegético não contextual.¹³ Não obstante, outros confirmaram a tese de Dodd acerca do respeito notável e persistente do NT pelo contexto do AT.¹⁴

    O debate sobre o livro-testemunho

    Além disso, alguns estudiosos defendem que os autores do NT tiraram suas citações do AT de um suposto livro-testemunho, que continha inúmeros tipos de textos-prova (testimonia) utilizados normalmente por razões apologéticas.¹⁵ Se for esse o caso, os autores do NT estariam usando essas referências do AT sem levar em conta o contexto literário veterotestamentário. Outros veem com reservas a hipótese de um livro-testemunho e propõem a existência de excertos de textos das Escrituras sobre tópicos diversos reunidos por indivíduos e usados em âmbito particular ou em circulação mais ampla.¹⁶

    Se essa visão com ressalvas acerca de listas de textos extraídos das Escrituras for verdadeira, ainda indicaria a possibilidade de que os autores do NT não teriam interpretado essas passagens holisticamente à luz de seu contexto literário. Teriam apenas usado textos de uma lista isolada de versículos selecionados do AT. Há quem defenda a existência dessas listas porque foram encontradas listas semelhantes junto com os rolos de Qumran e entre os escritos dos pais da igreja de épocas posteriores. De acordo com essa hipótese, essas descobertas indicam a existência de tais excertos entre autores apostólicos como Paulo. Além disso, ao que parece, essas listas são a fonte mais provável das referências do AT citadas pelos autores do NT, uma vez que manuscritos inteiros de livros do AT eram dispendiosos e difíceis de obter. Por conseguinte, alguém como Paulo provavelmente teria feito uma antologia pessoal de textos extraídos desses manuscritos pertencentes a cristãos mais abastados dos vários lugares por onde passou em suas viagens.¹⁷

    C. H. Dodd acreditava que suas conclusões sobre o conhecimento dos autores do NT acerca do contexto das referências do AT mostram que não havia um livro-testemunho. Por isso, houve quem afirmasse que seus argumentos tinham pouca força diante da ideia da possível existência de vários livros--testemunhos ou de diferentes tipos de listas especiais de textos das Escrituras. Outros estudiosos concluíram, porém, que os argumentos de Dodd continuam válidos, mesmo que também existam vários livros-testemunho ou listas de excertos de testemunhos.

    A visão mais equilibrada parece ser que tais listas de excertos existiram, porém os autores do Novo Testamento também tiveram acesso aos rolos do AT com livros inteiros. Além disso, é provável que tenham procurado memorizar alguns livros do AT, ou partes deles, o que, de certa forma, ocorreria naturalmente com a saturação pelas leituras litúrgicas de trechos das Escrituras no culto da sinagoga. A probabilidade de que autores como Paulo não estivessem limitados a excertos fica evidente pela série de obras publicadas desde According to the Scriptures, de Dodd. Estas mostram que os autores do NT estavam cientes dos contextos mais amplos do AT dos quais citaram versículos específicos. Um bom exemplo recente desse tipo de obra é Echoes of Scripture in the Letters of Paul [Ecos das Escrituras nas Cartas de Paulo], de Richard B. Hays. Outras seguiram na mesma direção.¹⁸ Contudo, mesmo que os autores do NT recorressem com frequência a tais livros-testemunhos, também estavam familiarizados com o AT e sabiam passagens de cor, como mencionamos antes. Será, então, que as citações individuais dos testemunhos não lhes trariam à mente o contexto mais amplo do versículo citado? Nesse sentido, a conclusão de David Lincicum é correta: Quanto mais convincentes essas leituras se mostrassem [tendo em mente o contexto do AT], menor a possibilidade de que Paulo dependesse apenas de uma coleção de excertos.¹⁹

    O debate cristocêntrico

    A influência da interpretação judaica da época e a consulta a listas de versículos das Escrituras não são os únicos motivos que levam alguns estudiosos a acreditar que os autores do NT interpretam o AT de modo diverso de seu sentido original. Há quem defenda que os autores apostólicos eram tão cristocêntricos no entendimento do AT que liam Cristo em passagens que em nada se relacionavam com o futuro Messias. Com isso, eles (supostamente) distorciam o sentido das palavras do autor veterotestamentário, interpretando com base em seu pressuposto de que todas as passagens do AT apontam para Cristo.²⁰ De igual modo, outros acreditam que vários dos autores do NT estavam tão empenhados em defender que Cristo era o Messias que torceram passagens do AT para respaldar sua concepção sobre a verdade do evangelho.²¹

    Por um lado, de acordo com os critérios exegéticos tradicionais, essa leitura cristocêntrica equivocada do AT é considerada por alguns uma interpretação errônea. Por outro lado, os que tendem mais para o pós-modernismo (ver a seguir), embora reconheçam que o sentido do AT foi distorcido, diriam que os intérpretes modernos não têm direito de impor seus padrões de interpretação aos autores antigos, julgando-os por esses padrões. Outros ainda, mais conservadores, apesar de concordarem com a avaliação pós-moderna, dizem que o que nós modernos consideramos um enfoque interpretativo errôneo dos autores do NT resultou numa conclusão doutrinária divinamente inspirada. Em outras palavras, os autores apostólicos pregaram a doutrina correta com base nos textos errados, embora as interpretações que deixaram por escrito tenham autoridade divina.

    Será que o pressuposto cristocêntrico requer uma leitura equivocada do AT? Pode ser que sim, mas seria inevitável? A reposta a essa pergunta depende, em grande medida, da definição do que seja uma hermenêutica cristocêntrica. Alguns preferem chamá-la de abordagem cristotélica, mas, com isso, continuamos diante do mesmo problema: encontrar uma definição precisa. A abordagem cristocêntrica ou cristotélica, além de não ter uma definição precisa, é um entre os vários pressupostos que os apóstolos tinham no tocante a seu entendimento do AT. Um capítulo mais adiante discute esse pressuposto em relação a outros a fim de se chegar a uma perspectiva mais equilibrada a esse respeito. Em seguida, analisaremos mais detalhadamente se essa suposição interpretativa insere no AT uma ideia estranha que distorce o sentido original.

    Além disso, um estudo caso a caso de cada ocorrência de uma suposta interpretação cristocêntrica ou cristotélica de passagens do AT deve exigir um exame exegético cuidadoso antes que se possa apurar se houve, de fato, distorção do sentido veterotestamentário. Contudo, mesmo depois dessa análise abrangente, não haverá consenso entre os estudiosos. Há, porém, um critério que pode finalmente nos indicar a direção certa para resolver essa questão espinhosa: essas análises mostram que as leituras cristocêntricas revelam o conhecimento de um contexto mais amplo do AT e permitem leituras retóricas e aguçadas satisfatórias, de caráter interpretativo e teológico dos contextos do NT e do AT? Ou será que essas leituras revelam descontinuidade significativa entre os contextos do AT e do NT? Isso não é garantia absoluta da solução do problema, uma vez que interpretação é uma tarefa subjetiva, na qual o que satisfaz e parece revelador para um intérprete não satisfaz outro. Apesar disso, creio que neste trabalho há evidências concretas corroborativas e cumulativas suficientes para nos fornecer uma direção no debate público do assunto. Para isso, será preciso comparar os pressupostos de uns com as suposições dos que discordam.²²

    O debate retórico

    Outros, ainda, afirmam que autores como Paulo não estavam preocupados em usar o AT com o propósito de comunicar seu significado contextual; em vez disso, eles o usavam de forma retórica, para persuadir os leitores a obedecer a suas exortações. Para tanto, recorre-se ao texto do AT sem considerar o seu sentido — a fim de ampliar a autoridade apostólica dos autores do NT num ato de força, para fazer os leitores se submeterem.²³ Alguns dizem que os autores do NT não se importavam com o significado de um versículo do AT em seu contexto, visto que a maior parte dos leitores/ouvintes das igrejas eram bagagem histórica dos gentios, pessoas que não tinham base educacional para ler o AT e reconhecer seu significado. Além disso, como consequência dessa perspectiva, mesmo que muitos tivessem o preparo educacional que lhes permitisse ler o grego, uma vez que eram pagãos recém-convertidos, não teriam tido contato algum com o grego do AT. Consequentemente, em nenhum dos dois casos teriam condições de compreender o uso contextual que Paulo fazia do AT.

    De acordo com alguns estudiosos, tais considerações tornam improvável que os autores do NT teriam esperado que a maioria de seus leitores entendesse as ideias contextuais do AT dos versículos que eles citam em seus escritos. Portanto, em conformidade com essa perspectiva, a conclusão das considerações anteriores torna improvável que esses autores se referissem ao AT com o sentido contextual em mente.

    Será que a principal preocupação dos autores apostólicos ao usarem o AT era apenas a força retórica desse Testamento para persuadir os leitores a obedecer-lhes, a ponto de não se interessarem pelo sentido original do texto veterotestamentário? Será que a maior parte dos leitores de Paulo não tinha bagagem cultural e era incapaz de ler o grego (e menos ainda o hebraico) do AT? Ademais, o fato de que a maioria dos leitores/ouvintes das primeiras igrejas era de gentios recém-convertidos significa que tais leitores não tinham condição de entender o sentido pretendido dos escritos veterotestamentários citados pelos autores do NT?

    Em resposta a essas perguntas, devemos nos lembrar de que, na maior parte das vezes, os escritos apostólicos eram lidos primeiramente por uma pessoa, um leitor, enquanto o restante da igreja ouvia (cf. At 13.15; Cl 4.16; Ap 1.3). Não é preciso ter conhecimento de grego e hebraico para ouvir o que se lia, quer fossem as cartas de Paulo, quer fossem passagens das Escrituras veterotestamentárias, que eram a Bíblia das igrejas do século primeiro (cf. Rm 15.4; 1Co 10.11; 2Tm 3.14-17; 2Pe 1.20, 21). Por um lado, é verdade que a maioria dos primeiros ouvintes das cartas apostólicas às igrejas devia ser de gentios recém-convertidos. Isso significa que deveriam entender pouco do sentido das referências veterotestamentárias que ouviam enquanto os escritos dos apóstolos eram lidos em voz alta. Por outro lado, conforme a maioria admite, havia pelo menos três níveis de ouvintes nas primeiras igrejas: 1) um pequeno grupo de cristãos judeus que entendia e prezava o contexto das referências veterotestamentárias citadas; 2) um grupo de gentios (talvez tementes a Deus) que tinha contato permanente com a sinagoga e cada vez mais conhecimento das Escrituras judaicas, entendendo até certo ponto as referências ao AT, mas não tanto quanto os ouvintes judeus; 3) o terceiro grupo, a maioria, era composto de gentios recém-convertidos e não entendia muita coisa das citações do AT no primeiro momento.

    No próprio NT, contudo, é evidente que as cartas tinham de ser lidas e relidas não apenas nas diversas igrejas, mas provavelmente também nas mesmas igrejas. Além disso, os crentes novos teriam tido cada vez mais contato com o conteúdo do AT: sabemos que parte das reuniões e das instruções da igreja primitiva consistia na leitura e no ensino das Escrituras do AT (p. ex., cf. Rm 15.4; 1Co 10.6, 11; 1Tm 4.13-16; 5.17, 18; 2Tm 2.15; 3.16, 17). Sabemos também que os portadores das cartas provavelmente explicavam parte do significado delas,²⁴ o que devia incluir pelo menos algumas referências do AT. Essas últimas três considerações indicam a plausibilidade, ou mesmo a possibilidade, de que, em última análise, boa parte dos ouvintes compreendesse suficientemente o sentido das referências do AT lidas nas obras dos apóstolos (sobretudo com as explicações do portador da carta). Os novos crentes gentios não entendiam tanta coisa dessas citações quanto os primeiros dois grupos na primeira vez que as ouviam, mas compreen­diam melhor na segunda, terceira e nas demais leituras. A riqueza da teologia dos autores do NT (p. ex., Paulo), que inclui seus conceitos sobre escatologia e o poder do evangelho, é tamanha que, desde o início, eles exprimem a verdade a fundo até para aqueles que não entendem muito bem de início. A comunicação dos autores não se esgota na compreensão imediata do leitor/ouvinte.²⁵ É por isso que essas cartas, além de terem começado a ser consideradas parte das Escrituras, tinham de ser lidas repetidas vezes.

    Ainda que muitas pessoas do povo não tivessem adquirido instrução pela leitura individual das tradições textuais dos romanos, gregos e hebreus, é provável que tinham obtido instrução por meio da cultura oral. Sem dúvida, teriam ouvido a leitura e a narração de algumas das grandes obras do mundo antigo e memorizado certas passagens. Portanto, eram capazes de fazer o mesmo com o AT.

    Outro ponto que dá respaldo à ideia de que as referências ao AT traziam consigo o contexto mais amplo da Escritura veterotestamentária: o impacto retórico é intensificado quando se leva em conta o sentido contextual mais abrangente. Naturalmente, a conclusão sobre a intensificação do impacto é uma decisão interpretativa que requer uma boa análise caso a caso e pode ser mais convincente em alguns do que em outros. Portanto, não duvidamos de que os autores do NT usam o AT com perspectiva retórica, mas cremos que, quando isso acontece, o sentido contextual da passagem do AT citada amplia o impacto retórico.

    O debate pós-moderno

    A abordagem pós-moderna, que consiste numa linha mais recente nos estudos bíblicos, contribuiu ainda mais para o pessimismo quanto ao NT ter continuidade com o sentido das referências veterotestamentárias nele citadas.Os pós-modernos de linha-dura (ou os defensores linha-dura da teoria da resposta do leitor) dizem que é impossível a um leitor antigo (ou moderno!) entender o significado mais remoto de um texto. Todos os leitores têm pressupostos, por isso é impossível para o leitor interpretar objetivamente os escritos de outros. Tais pressupostos distorcem ou modificam o sentido pretendido pelo autor de tal modo que o sentido original fica obscurecido. Isso se aplica também aos autores do NT quando tentam compreender o AT. Os intérpretes pós-modernos de linha branda admitem alguma distorção em decorrência dos pressupostos dos leitores, mas aceitam que parte do sentido pretendido é captado, e a conclusão é a mesma no tocante à visão que os autores do NT tinham do AT.

    Se é verdade que ninguém interpreta sem seus próprios pressupostos, isso significa que é impossível entender suficientemente os atos de linguagem orais e escritos de outros? Teria sido esse o caso dos autores do NT ao interpretar o AT, e será esse o caso dos leitores modernos em sua tentativa de compreender a Bíblia? Um problema hermenêutico e filosófico desse porte de certo não pode ser tratado adequadamente nesta breve seção. As conclusões a que chegamos acerca desse problema particular dependem das suposições filosóficas e teológicas individuais a respeito da epistemologia. Quem pressupõe que o ser humano não é capaz de conhecer as intenções de outros seres humanos, seja em forma de comunicação escrita, seja falada, não acreditará que os autores do NT pudessem entender o que os autores do AT quiseram comunicar. Por sua vez, há quem pressuponha que Deus criou a mente humana e conferiu a ela a capacidade de funcionar de tal modo que produza convicções verdadeiras.²⁶ Isso inclui ser capaz de entender as comunicações dos autores com suficiência e confiabilidade, mas não exaustivamente. Essa perspectiva possibilita considerar a plausibilidade de os autores do NT serem capazes de perceber o que os autores do AT queriam dizer e citá-los em conformidade com suas intenções.²⁷ Não podemos aqui analisar mais detalhadamente esse espinhoso problema filosófico e teológico de epistemologia. Há muitos livros a esse respeito e outros mais serão escritos enquanto o debate persistir.²⁸

    Conclusão

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