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Ensaios de cultura teatral
Ensaios de cultura teatral
Ensaios de cultura teatral
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Ensaios de cultura teatral

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Mercado teatral, bilheteria, crítica especializada, público, projeto criativo, patrocínio, editais, políticas públicas, festivais, obras dramatúrgicas, agentes criativos, grupos, coletivos e uma extensão territorial continental. Isso são pontas de um iceberg. Walter Lima Torres traz em Ensaios de Cultura Teatral a possibilidade de enxergarmos o que está submerso, temas fundamentais para quem faz teatro hoje no Brasil. O autor apresenta uma reflexão alinhada com a prática, costurada com linhas teóricas e correntes de pensamentos contemporâneos, arrematada pela história do teatro brasileiro (nossa herança), em conversa com experiências de outros países, especialmente a França e os Estados Unidos. Ao explicitar as possíveis dinâmicas de um "sistema teatral" configurado por complexas relações entre agentes sociais, artísticos e políticos, o pesquisador habilmente nos conduz a compreender a configuração do antes vago conceito de "mercado teatral", entre tantos outros não menos importantes, fundamental para o entendimento do que seja hoje a produção teatral no Brasil. (Filomena Chiaradia, atriz, pesquisadora e doutora em Artes Cênicas (UNI-RIO), é gerente de edições na FUNARTE)
LanguagePortuguês
Release dateJan 13, 2017
ISBN9788546204588
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    Ensaios de cultura teatral - Walter Lima Torres Neto

    Final

    PREFÁCIO

    Refletores e reflexões sobre a cultura teatral

    Marta Morais da Costa

    Se a ilusão fosse inteira, perfeita e de duração contínua, deixaria de ser agradável [...] é a secreta comparação da arte rivalizando com a natureza que faz o encanto do teatro.

    Louis-Sébastien Mercier, 1740–1814

    O que dizer de um livro de ensaios, organizados pelo fio condutor da cultura teatral, e que se desdobra no estudo minucioso de componentes diversos do teatro? Como abranger em rápido prefácio aspectos tão intrínsecos à arte como a crítica, os agentes criativos, a dramaturgia, os livros especializados, os fracassos e sucessos, os programas das peças representadas, a espacialização do palco e dos edifícios, as peregrinações dos elencos e a relevância dos fatores materiais e econômicos da arte? O empreendimento de síntese tem um quê de ousadia e muito de destemida pretensão. Entretanto, vozes fracas e anônimas, diz a Nova História, também venceram batalhas e fizeram acontecimentos. Portanto, içando âncoras e enfunando velas, lançar-me-ei neste mar vasto e desafiador de um prefácio a um livro tão diverso e com tantas contribuições para o conhecimento do teatro, em especial o do Brasil.

    Em terra de uma arte sempre em crise, como o teatro brasileiro, a atividade complexa e sistêmica da cultura teatral pode contar com as contribuições da academia universitária para trazer luzes de informação e esclarecimento sobre obstáculos e sucessos, em especial no seu desenvolver histórico. Este propósito se confirma nas páginas crítico-avaliativas de Walter Lima Torres Neto em "Ensaios de Cultura Teatral".

    Nesta apreciação do livro, ressalto o enredar-se do trabalho do cientista a pensar seu tempo, enlaçado pelas palavras do conhecimento – atributo das lides universitárias – com a vivência próxima do teatro feito e vivido seja em busca do lucro, ou em perene explicação do mundo e da vida, ou, ainda, nas asas de um amor ora acasalado, ora em processo de separação.

    Enquanto dramaturgia, o teatro tem uma natureza interpretável, como defendeu Louis Jouvet. Mais do que isso, as várias linguagens de que se compõe um espetáculo teatral, polimorfo e plurilinguístico, permitem desdobráveis interpretações. Não por serem múltiplas apenas, mas por surgirem de linguagens diferentes; por proporem vias de acesso diversas entre si; por se manifestarem em objetos a requisitar repertórios de leitura acumulados em exercícios de análise apoiados em códigos de comunicação variados. Os mesmos pressupostos teóricos aplicáveis à linguagem verbal do texto dramático pedem alteração quando o leitor se depara com a visualidade do texto espetacular, ou com o grafismo dos programas, ou com a complexidade do texto gestual-cinético-verbal da interpretação do ator ou a espacialidade dos palcos. Até mesmo ao considerarmos apenas a linguagem verbal, como se fazem diferentes os enfoques para tratar dos diferentes gêneros textuais, como o drama, a tragédia, a comédia, a crítica, as listas dos programas, as informações dos periódicos e assim por diante!

    Não é de estranhar, portanto, que este volume de ensaios esteja ancorado em capítulos que desenham um arco tão amplo de interesses e de estudos no âmbito da arte teatral. A riqueza do livro está exatamente nesta abertura descritivo-analítica. Seu título já anuncia essa amplitude por considerar a cultura teatral como foco de interesse e de discussão de seus elementos. Para tanto, Walter Lima Torres busca estabelecer de princípio o entendimento do que seja cultura teatral no primeiro capítulo: poderia englobar um conjunto de condicionamentos e procedimentos, de regras, de técnicas artísticas (trabalho intelectual e esforço criativo) e estratégias comerciais, elementos que estão em permanente atrito com tradições e inovações estéticas e que, juntos, objetivam a concepção, execução e posterior fruição de uma obra cênica, seja ela ficcional, representacional ou não.. Posteriormente ele especifica os componentes dessa cultura, no seu entender: agentes, valores, temas, instituições, procedimentos criativos, processo de produção e comercialização do trabalho criativo.

    Tomarei como apoio alguns dos termos dessa definição para tecer rápidos comentários a respeito do que li com invulgar atenção e agrado. Em meu entender, o termo mais provocante dessa definição de cultura é atrito. Desdobrando-o em vocábulos de significado próximo, acentuo o caráter de conflito, discussão, divergência, tumulto, resistência. Desde Aristóteles, a noção de conflito aplicada ao teatro tem sido acolhida, praticada e renovada pelas mais diferentes estéticas do palco. Tomada como situação fulcral da dramaturgia, o conflito sustenta e determina de modo explícito a especificidade da arte teatral quando comparada às demais expressões artísticas. O conhecimento da história do teatro tem demonstrado a alternância de estéticas que tomam o conflito como verdade axiológica – o realismo e o naturalismo, em especial – e outras em que a resistência consiste exatamente em romper e esgarçar esse conceito – o simbolismo e o teatro pós-dramático, por exemplo.

    Nesse atrito constante, a dramaturgia foi realmente desenrolando um exuberante tapete vermelho por onde a arte teatral tem desfilado sua celebridade. Não apenas a dramaturgia, é evidente. Ela faz par com o espetáculo – o texto cênico – e todas as técnicas e estratégias de representação sobre o palco, material que embasa ou advém de teorias sobre o teatro. Esse conjunto faz a arte teatral renovar-se e permanecer. Esse espírito de união manifesta-se continuamente nos capítulos deste livro. Em relevo em O direito ao teatro, O agente criativo, O lugar no teatro e O fracasso e o sucesso.

    No entanto, estudos sobre a história e o desenvolvimento da arte teatral comprovam que as mudanças não estão restritas aos elementos mais visíveis da peça teatral, de sua representação ou de teorias pré – ou pós – encenações. O projeto de criação teatral é também o da direção do espetáculo e responde a uma política cultural correspondente a escolhas artísticas e definida por aquele ou aqueles que o colocam em ação, segundo Michel Pruner em "La fabrique du théâtre. Este é também o caminho trilhado por Walter Lima Torres e o que torna este livro uma contribuição valiosa para os estudos do teatro. Capítulos como Cultura e prática teatral, As coleções que marcaram época, O lugar no teatro, A turnê e o tropeirismo teatral e O fracasso e o sucesso" trazem ao conhecimento e ao juízo do leitor documentação e argumentação relevantes para um olhar amplo sobre a arte teatral. Os capítulos nomeados mapeiam territórios que nem sempre ficam delineados em estudos sobre o teatro com tal intensidade. Nestes, são muitas vezes tópicos passageiros, o que não ocorre aqui.

    Essa diferença abre espaço para a discussão e inevitáveis divergências surgidas em momentos históricos definidos e no entendimento que temos hoje, em relação ao passado. Para além da compreensão do teatro como uma arte de fascínio, imaginação, sacralização, como está na visão dos artistas – ou como quer Walter Lima Torres, agentes criativos – simbolistas e de Antonin Artaud, por exemplo, este livro procura analisar o teatro sob a luz de subvenções, estatais ou não (tão antigas quanto a própria arte), e de estratégias comerciais, de disputas por verbas e públicos. Tal escolha não demonstra um amor menor ou interesseiro pelo teatro, mas tenta estabelecer uma compreensão mais realista e clara sobre os problemas que afetam e modificam a cultura teatral. Aliás, o quanto as crises do teatro brasileiro, que levaram a maior ou menor afastamento do público, não derivaram de problemas financeiros de companhias e de projetos estatais?

    A incompletude, característica da natureza do teatro, faz com que dependa intensamente da presença dos espectadores. Shakespeare dizia que o teatro são duas tábuas e uma paixão. Na verdade, como proprietário de um teatro, ele provavelmente sabia que, além disso, a presença do público e a necessidade de respostas (financeiras ou de adesão à montagem) garantiam a continuidade de seu trabalho, da produção e da companhia sob sua direção. Portanto, montar um quadro mais completo do teatro brasileiro é tratar também de subvenções, incentivos, mecenas, companhias estatais, lucro. Enfim, do vil – e indispensável – metal. É do que trata em especial o primeiro capítulo, Cultura e prática teatral. E, por ser o primeiro, introduz um tratamento mais frio e objetivo do sistema teatral e estará presente nos demais assuntos tratados ao longo do livro. A distinção entre uma política de Estado (manifesta em editais, incentivos e mecenatos) e uma política de cidadania (voltada à formação do espectador-cidadão) traz à discussão um aspecto marcante da cultura teatral sob a ótica do teatro como consumo e como mercadoria. Mais uma aresta do atrito vigente na cadeia de produção da arte teatral.

    Um segundo termo que gostaria de ressaltar na conceituação de cultura teatral é fruição. Na frase conceitual o termo vem posicionado na seguinte expressão: "concepção, execução e posterior fruição de uma obra cênica". Ou seja, é um ato e se localiza numa linha temporal – em primeiro lugar concepção, depois execução e, ao final, fruição. Em uma cadeia de significados, fruição acaba chegando a termos correlatos como estar na posse de, usufruir, apreciar. Enquanto ato, pressupõe um sujeito agente. Em termos das teorias da recepção, esse sujeito recebe a denominação de leitor (em seus vários tipos) e, no caso da arte teatral, acrescenta a ação do espectador. Leitor ele será sempre, seja para os textos verbais, seja para as demais linguagens. Mas, no caso do teatro e do texto espetacular ou cênico, esse leitor ganha mais atributos, em especial o de ser aquele que olha. Recordemos que, em latim, spectare pode significar olhar, observar, assistir a. Mais ainda, há várias camadas de leitores até o momento em que o espetáculo se torna vida sobre o palco. Um mesmo texto terá leitores que usarão da interpretação para o traduzir em outras linguagens: os atores, o diretor, o cenógrafo, o figurinista, o iluminador, os criadores do programa e do cartaz do espetáculo, o dramaturg, enfim cada uma das funções será exercida a partir da conversão de interpretações diversas em favor da unidade do espetáculo. Por sua vez, a encenação visa quase exclusivamente aos públicos para os quais foi construída – ou ao público pré-concebido, imaginado e esperado. É natural que, levando em conta o processo de interpretação, o qual parte sempre de repertórios prévios e de horizontes de expectativa dos leitores, esse espetáculo será objeto das mais diferentes leituras, produzidas pela multiplicidade dos leitores-profissionais-de-teatro e pelos espectadores.

    Jaques Copeau, poeticamente, assim definiu seu entendimento de público: Considero público o conjunto daqueles que uma mesma necessidade, um mesmo desejo, uma mesma aspiração conduzem a um mesmo lugar, para satisfazer o gosto que têm de viverem juntos, de experimentar juntamente as paixões humanas, o deslumbramento do riso e o da poesia, por meio de um espetáculo melhor acabado que a vida.. Simultaneamente à compreensão do que seja público, infere-se um entendimento apaixonado do teatro e de suas funções psíquicas, culturais e sociais.

    A transferência dos sentidos do espetáculo concebido para o público espectador é um dos processos mais fluidos e imprevisíveis da cultura teatral. Pudesse ele resultar em comunicação exata e antecipada, seria possível prever com certeza absoluta o sucesso de um espetáculo. A impossibilidade dessa certeza – que não existe nem na garantia de que a montagem terá a mesma recepção em todas as noites de uma temporada – torna a estudo dos públicos, da recepção das obras teatrais, da crítica literária e do julgamento histórico de um espetáculo, de um autor, de um elenco, de companhias, de temporadas e de montagens diferentes um eterno desafio.

    Bernard Dort expressa a consciência da importância do público ao afirmar que a obra teatral somente tem valor em função do público. Ela é criada pelo contato com ele. Ela muda, se modifica, se enriquece ou se apequena segundo o público que lhe dá ou retira sua adesão. Ela é – no sentido mais forte – o produto: é o público que literalmente a tira do nada, a escolhe, e, ao escolhê-la, se escolhe. Talvez fosse mais correto aplicarmos a designação desses espectadores pela forma plural do substantivo: públicos. As diferenças mais evidentes são verificáveis no repertório relativo à própria arte teatral: o quanto cada espectador conhece ao que vai assistir sobre o palco, sua familiaridade com o tipo de espetáculo, a importância que ele pode vir a ter em sua cosmovisão e assim por diante. Públicos de gêneros teatrais diferentes (comédia, drama, musical, teatro experimental ou pós-dramático, por exemplo) possuem identidades diversas. Públicos de cidades diferentes, em temporadas cumpridas em épocas esparsas do ano, o contexto social e político vivido pelo público naquela temporada, os humores e comportamentos próprios do público de cada apresentação... Enfim, há uma variedade natural de público em cada espetáculo da mesma companhia e na mesma temporada!

    A empatia, ou não, entre palco e plateia tornam cada apresentação única, irrepetível para quem formata o texto desde o palco e para quem o recebe, acomodado nas poltronas ou nas arquibancadas ou nas calçadas do lugar do espetáculo. O público de um determinado espetáculo vive uma comunhão estética que Henri Gouhier atribuía à participação na consciência coletiva. Esses valores, que tangenciam rituais e manifestações psíquicas revelam a relevância do público como integrante de uma cerimônia artística que transcende um estar junto no mesmo espaço e vivenciando palavras e ações comuns. De tal forma espetáculo e plateia se integram que a história registra representações cênicas em que as fronteiras entre palco e plateia desapareceram, e houve a real integração de pessoas na mesma festa, no mesmo jogo, no mesmo espetáculo, como em montagens do Grupo Oficina, ou de Julian Beck e Judith Malina, ou no Théatre du Soleil, de Ariane Mnouchkine.

    Nos bastidores, na plateia, no coração dos atores e demais agentes criativos é o público que pulsa o tempo todo. Idêntica percepção podemos atribuir a todos os capítulos do livro: o leitor, o consumidor, o divulgador, o apreciador, seja quantas e quais forem as faces dos públicos de teatro, elas estão pulsando em toda a pesquisa, nas ideias, nos projetos culturais, nas realizações cênicas relatadas por Walter Lima Torres ao longo das substanciosas páginas deste livro.

    Não é possível passar incólume pelas páginas dedicadas à crítica teatral brasileira, que atingiu picos de excelência no século passado e que agora está circunscrita às atividades acadêmicas sobremaneira. Esquecida ou amputada de veículos mais populares, como os periódicos, a crítica teatral cedeu aos encantos da modernidade líquida, de Zygmunt Bauman, e – com perdão ao trocadilho – liquefez-se em notas sobre celebridades, entrevistas idem e pouca densidade, principalmente após o silenciamento – por motivos diversos – de críticos do porte de Bárbara Heliodora, Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi. Essa prática teatral de mediação que foi, segundo Walter Lima Torres, capaz de buscar subsídio para refinar um conhecimento sobre as obras cênicas, potencializando-se assim os mais diversos níveis de fruição foi responsável pela formação de plateias capazes de melhor compreender os espetáculos a que assistiam. A crise econômica aliada à mudança dos suportes de comunicação, trocou o papel e a tinta dos periódicos pela volatilidade de alguns blogs e sítios digitais, deixando os espectadores à mercê da publicidade e do nível de acesso às mídias cultivado pelas celebridades de momento.

    Sem que pareça saudosismo, o arrefecimento do papel da crítica militante desloca-se para publicações acadêmicas – como bem informa o capítulo sobre O dever da crítica –, mas perde-se na troca a agilidade e a presentificação, de vez que o comentário e a comunicação colados aos espetáculos na temporalidade do acesso e na acessibilidade da linguagem, desaparecem. Este acontecimento talvez se deva à perda de voz de autoridade, talvez se justifique pela dispersão em sujeitos individualizados, responsáveis por sua interpretação pessoal, desvinculada de críticos sapientes e olímpicos. A movimentação teatral intensa fica, portanto, entregue às demandas de mercado, à força da propaganda, ao chamariz dos atores de televisão, às intempéries e ao agito – ou não – da vida noturna.

    Talvez possamos ver nos escritos sobre teatro e nas avaliações dos espetáculos formas de garantir a sobrevida do teatro. Esses olhares críticos de análise e de avaliação acabam por decodificar o que os artesãos da fábrica teatral tentaram exprimir com os meios materiais que as obras tentam inventariar: em sua busca dos segredos da representação, esses mediadores exigentes nos lembram que, mesmo se ela possui uma história, a arte viva que é o teatro não pode ter outros destinatários senão seus contemporâneos, conforme palavras de Michel Pruner.

    Enfim, e segundo essa ótica de contribuição cultural para seus contemporâneos, o livro de Walter Lima Torres, alia ao espectro teórico uma consistente visão da história, da teoria e do teatro brasileiro, com os holofotes de uma bibliografia vasta, chancelada pela vivência da arte, tanto experimentada no palco, quanto recebida na condição de espectador atento e culto. O título do capítulo derradeiro pode sintetizar o que me parece ter movido o autor em sua indagação e escrita: amor ao teatro. Um amor que, segundo João Bethencourt, citado no último capítulo, é uma forma de conhecimento. O resultado é uma obra densa, provocadora, informativa, aberta à revisão de padrões e valores tradicionalmente repetidos em outros estudos, parciais ou de semelhante amplitude.

    Quem o ler, verá.

    INTRODUÇÃO

    Teatro, sociedade e mercado

    La vida del arte no es tan diferente de la vida comercial como a primera vista parece. También en ella se logran con medios exteriores muchas cosas que el lector o espectador no podría sospechar.

    L. L. Schücking. El gusto literario, 1931

    Nós, agentes do teatro brasileiro, americanos do sul e ex-súditos de Portugal, em virtude das características de nosso processo histórico, somos, ao mesmo tempo, herdeiros legítimos e bastardos de um determinado teatro e modo de pensá-lo. Um teatro que parece ser mais bem entendido − do ponto de vista da criação artística e de sua relação com a sociedade − pelo exercício contínuo de uma dialética cultural: um conflito entre a vontade de constituir uma tradição − por vezes idealizada − e o apetite voraz de digerir e processar as mais novas e arrojadas tendências da cena contemporânea. Dando força a essa dialética, um debate invade a cena: a busca por uma expressão que revele certos traços de identidade local e o desejo de reconhecimento dessa mesma identidade em planos nativos e exteriores ao nacional.

    Seguimos, assim, hibridizando obras e conceitos por aquilo que se denomina cultura ocidental em processo de globalização, para o bem e para o mal. Hoje, mais do que nunca mergulhados nessa dinâmica global, transnacional, líquida mesmo, dirão alguns, persistimos a fim de encontrar um conceito que defina os nossos fazeres teatrais. E graças aos novos sistemas de comunicação em rede, opera-se uma verdadeira reconstituição de relações entre meios de produção, agentes criativos, linguagens artísticas e instituições teatrais. Essas relações vêm sendo observadas, e muitas delas estudadas, dentro do que se costumou denominar de relação de subalternidade expressa nas duplas de substantivos ou adjetivos: metrópole/colônia; corte/roça; centro/periferia; urbano/rural; litoral/interior; erudito/popular; tradição/contemporaneidade; teatro de arte/teatro comercial; teatro/teatro alternativo; teatro ligeiro/teatro sério; teatro pré-moderno/teatro moderno/teatro pós-moderno − enfim, dicotomias categóricas ou pares conceituais que se foram constituindo ao longo do tempo por meio de várias metodologias para se interpretar as mais inauditas ideologias envolvendo artistas, obras, valores, temas e grupos sociais. Nesse sentido, o teatro brasileiro tem se apresentado como um canteiro propício, tornando-se inclusive objeto de estudo, e resistindo ao exame rigoroso de outras disciplinas, não só da história e da teoria do próprio teatro, mas também das ciências sociais, da história da cultura e da filosofia. O teatro é um trabalho intelectual associado a um esforço criativo inscrito na sociedade e oriundo dela, sendo o seu processo e o seu resultado uma expressão decantada, uma ressignificação da própria cultura teatral ocidental, agora sob o sol de outras praias, do lado de cá do Atlântico.

    Antes de prosseguir nessa reflexão um breve relato. Convidado a participar de uma banca de mestrado para avaliar uma dissertação sobre o estudo das diversas atividades de produção e criação cênica de certo grupo teatral brasileiro de uma cidade de porte médio do estado de Minas Gerais, percebi a ênfase do mestrando na expressão mercado teatral. Essa sua insistência sobre a noção de mercado tinha como objetivo abordar a inserção e o reconhecimento do referido grupo de teatro na sociedade local, mineira e brasileira de maneira geral, bem como justificar a escolha daquele grupo teatral para sua pesquisa. Contudo, ao ser questionado sobre a ausência de uma formulação mais coesa no interior de seu trabalho sobre o que constituiria ou definiria, a seu ver, a noção de mercado teatral, ele titubeou. Não convenceu na sua argumentação. Havia algo de idealizado em torno da sua noção de mercado teatral. Algo que não precisaria ser explicado, porque todos já sabíamos do que se tratava: no fundo nenhum de nós conseguia definir com alguma exatidão essa noção; bem ao contrário, a noção se apresentava bastante elástica, quando não nublada.

    Essa ausência de definição fez surgirem algumas perguntas: Como medir o acesso e a posição de um grupo de teatro no mercado teatral? Esse mercado age da mesma maneira localmente e em escala nacional? Qual a sua lógica e quais as suas relações no tocante ao binômio obra-mercadoria? O que sinaliza e o que significa para um grupo teatral estar no mercado? Quais os parâmetros que determinam maior ou menor inserção nesse mercado? Seria, hoje, a quantidade de editais conquistados? Ou os valores arrecadados na bilheteria? A notoriedade de uma obra reconhecida pela crítica especializada? Um número superior de público em relação a alguma média estabelecida? Ou talvez ter os mais altos índices de acessos ao site do grupo contabilizando-se o número de seguidores na internet e o de curtidas? Percebemos, assim, que a noção de mercado flutua entre a condição de uma vitrine e o lugar em que se busca o capital para se financiar o projeto criativo do grupo.

    O problema remetia de imediato às noções estabelecidas por Pierre Bourdieu em seus estudos sobre a autonomização do campo intelectual ou artístico no âmbito da realidade francesa. Mas seria o teatro, em nossa sociedade, um campo independente e realmente autônomo, segundo as definições do autor de Regras da arte? A questão pareceu-me muito mais complexa do que o mestrando podia identificar naquele instante.

    De fato, faltam, não só a esse jovem pesquisador, mas aos estudiosos das atividades teatrais em geral, maiores subsídios para alcançar conclusões, ainda que provisórias, sobre nossa atividade teatral; dados quantitativos e qualitativos significativos referentes: ao público nos teatros; à frequência aos espetáculos em relação ao gênero e ao lugar onde o espetáculo acontece; ao perfil socioeconômico do espectador; ao regime de formação cultural do ator de teatro e há quanto tempo ele se mantém de fato sobrevivendo, materialmente, dessa atividade; às bilheterias; inexistem análises dos repertórios nas cidades com maior e menor densidade demográfica; estudos sobre o acesso (e o processo seletivo) aos editais públicos e privados para pautas e patrocínios; inexistem dados consolidados relativo às circulações regionais e nacionais em termos de impacto sociocultural; o número de teatros que de fato estão em funcionamento no país e seus regimes administrativos (públicos e privados) são poucos divulgados; além da falta de conhecimento sobre: a duração das temporadas; a regularidade e a natureza das intervenções de instituições não teatrais que se associam ao trabalho teatral; os mecanismos de financiamento para uma obra teatral comparados à publicidade e propaganda de outros produtos, etc. Fora do eixo Rio-São Paulo, sobretudo, nota-se uma carência ainda maior de subsídios para se pensar a noção de mercado teatral como um todo, de maneira sistêmica e não unicamente no sentido de uma demanda de consumidores ávidos por espetáculos teatrais.

    Além da questão quantitativa, é necessário o estabelecimento de uma metodologia específica que associe as relações entre economia, produção teatral e sociedade na busca por um efetivo conhecimento, análise e interpretação de dados à luz de um sistema de produção variável que leve em conta as regiões geográficas. Ainda dentro do estudo desse possível mercado teatral, faltam dados sobre a trajetória de autores, grupos, coletivos e companhias imersos num ambiente de produção artística que, hoje, mais do que nunca, contam com o auxílio da atividade publicitária nas diversas mídias e redes sociais em sua relação com o ambiente teatral. Uma coisa é certa: a questão não deve ser abordada, exclusivamente, do ponto de vista de uma arena de negócios, um mercado de oportunidades do gênero compra e venda circunstancial de obras cênicas por esta ou aquela instituição mais ou menos prestigiosa que paga por determinado programa para um fim de semana em suas sedes ou um festival que, ao convidar uma obra, oferece este ou aquele cachê ao grupo de artistas trabalhadores. Em suma, não se trata de considerar esse mercado como o ambiente da oferta e procura de programação teatral; até porque, no Brasil, é pouco comum a presença de encomendas nessa área, além de se verificar o papel decrescente do poder de atração da bilheteria teatral como fonte de lucro líquido para um importante número de agentes criativos. Não se trata, tampouco, de abordar a noção de mercado a partir da obtenção de financiamentos públicos por meio de editais ou da ocupação de um teatro graças às concorrências públicas ou privadas. O que está em jogo é tentar perceber que a noção de mercado, dada a sua abrangência e complexidade, deveria ser abordada mais minuciosamente dentro de uma especulação acerca de um possível sistema teatral, o nosso sistema teatral, com as complexidades do tempo presente e sem desprezar as influências de nossa herança teatral, primeiro a portuguesa, depois a francesa e, hoje, mormente, a norte-americana. Depois de identificar os agentes e os elementos que estabelecem as dinâmicas no interior desse sistema organizacional, os quais agem e reagem à prática teatral e à vida social brasileira, torna-se mais fácil reconhecer as ideologias e os desejos expressos por esses mesmos elementos e agentes e perceber, assim, como eles fazem trabalhar o sistema teatral a favor deste ou daquele objetivo.

    Por mais que a paisagem da produção cultural hoje pareça caótica, transformada num ambiente de oportunidades artísticas e comerciais à caça do próximo edital para se produzir arte, o trabalho teatral, a meu ver, está condicionado − e consequentemente circunscrito − por um sistema que o auto-organiza e o regula em suas relações. Esse sistema teatral se impõe e se articula – nem sempre silenciosamente − em diversas frentes das esferas sociais específicas, variando de intensidade de acordo com suas configurações espontâneas ou regulatórias condicionadas às esferas local, regional e nacional.Independentemente do arrojo ou da modéstia dos meios de produção − e sobretudo em função das condições criativas de conjuntos artísticos que se formam e se desfazem com relativa facilidade −, esse sistema é dinâmico e fortemente aberto às influências exteriores, sejam ideológicas ou estéticas. Por um lado, essas esferas de sua configuração são capilarizadas ou − como preferirão alguns em tempos pós-modernos – rizomáticas e geram pontos de contato, intercessões (ou acirram incomunicabilidades), entre elas. Por outro lado, há influências e subordinações de diversas ordens (econômica, política, cultural, etc.) em graus diferentes de complexidade, englobando vários atores sociais, entes públicos e privados, sem deixar de levar em consideração nossa diversidade regional e socioeconômica, que possibilita um sentido plural à própria noção sobre o que seja ou não de fato teatro ou um evento de artes cênicas.

    Portanto, se pensarmos a noção de sistema teatral e conseguirmos conjugar os elementos que o configuram, talvez possamos explicitar e interpretar de forma mais acurada as relações de um grupo teatral com os diversos lugares de sua atuação no Brasil contemporâneo. Este é o intuito do presente trabalho: expor, descrever e problematizar alguns aspectos do que passei a denominar de componentes desse sistema teatral, o qual abarca

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