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Lutero como conselheiro espiritual: A interface entre a teologia e a piedade nos escritos devocionais de Lutero
Lutero como conselheiro espiritual: A interface entre a teologia e a piedade nos escritos devocionais de Lutero
Lutero como conselheiro espiritual: A interface entre a teologia e a piedade nos escritos devocionais de Lutero
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Lutero como conselheiro espiritual: A interface entre a teologia e a piedade nos escritos devocionais de Lutero

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Lutero era um verdadeiro teólogo, um teólogo da cruz atuante no contexto pastoral.

Como conselheiro espiritual, Lutero ensinou, por meio de seus escritos, a meditar corretamente sobre a Paixão de Cristo, a preparar-se para enfrentar o horror da morte, a aconselhar os enfermos, a tratar corretamente do sacramento do altar, a orar da forma correta, a extrair benefícios da Oração do Senhor e a viver uma vida de discipulado sob a cruz.

Seus escritos têm formato e propósito devocional e catequético, mas estão repletos de substância teológica, fruto de rigorosas reflexões. Refletem a vocação fundamental de Lutero como pastor-teólogo e são exemplos concretos da interface entre teologia e piedade.
LanguagePortuguês
PublisherVida Nova
Release dateJun 1, 2017
ISBN9788527507660
Lutero como conselheiro espiritual: A interface entre a teologia e a piedade nos escritos devocionais de Lutero

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    Lutero como conselheiro espiritual - Dennis Ngien

    18-9.

    1

    A COLHEITA DOS

    FRUTOS CERTOS:

    MEDITAÇÃO SOBRE "CRISTO,

    O ESPELHO SINCERO"

    Não foram as respostas polêmicas de Lutero aos ataques de Prierias contra sua pessoa que o impeliram a escrever o tratado Betrachtung des heiligen Leidens Christi [Meditação sobre a Paixão de Cristo] (1519).¹ Em vez disso, o impulso procedeu de sua preocupação pastoral com os crentes comuns que lutavam em busca de paz e salvação. Seu texto foi tão difundido que, por volta de 1524, vinte e quatro edições haviam sido impressas em várias cidades, e uma edição latina havia aparecido em Wittenberg, em 1521. Para destacar a realidade humana da Paixão de Cristo, a maior parte das primeiras edições era ilustrada com xilogravuras da cena da crucificação que mostravam Maria e João em pé junto à cruz. Outras xilogravuras representavam cenas de Cristo com um homem não identificado ajoelhado diante dele, Cristo em oração no Getsêmani, Cristo sentado sobre uma pedra e cercado pelos instrumentos da Paixão, Cristo e esses instrumentos, Cristo com um cálice na mão esquerda.² Lutero chamava esse tratado de seu melhor livro e o incluiu na Church postil [Comentário da igreja] de 1525 como sermão para a sexta-feira santa.³

    Embora a tradição medieval tenha fornecido a Lutero a forma que suas meditações sobre o sofrimento de Cristo assumiram, os pensamentos ali expressos representavam o fruto temporão de sua teologia da graça em desenvolvimento.⁴ Extraindo interpretações de profundo discernimento dos textos de Santo Agostinho de Hipona e São Bernardo de Claraval, Lutero ensinou como a meditação adequada sobre esse espelho sincero, Cristo levaria os cristãos à experiência da justificação pela fé. Ele escreveu: Esse espelho sincero, Cristo, não mentirá nem gracejará, e o que quer que ele mostre ocorrerá em medida plena.⁵ Tanto o conhecimento de nossa natureza pecaminosa quanto o do papel de Cristo como Salvador que lhe traz cura fluem diretamente de Cristo, não de nós ou de qualquer outra criatura. É na qualidade de portador do nosso pecado que Cristo expõe a realidade de nossa pecaminosidade. O resultado dessa revelação corresponde à obra alheia da lei e à atuação própria do evangelho: as duas pertencem ao Deus único, que mata a fim de trazer vida. O paradoxo desse espelho sincero é que ele condena, e condena de verdade, para que possamos ser salvos. Os dois atos procedem do mesmo amor de Deus. O espelho realiza a obra alheia de nos abater para que percamos a confiança em nossa própria justiça coram Deo (diante de Deus) e nos apeguemos à obra própria de Cristo, aquele que leva o nosso pecado, como o escape dos tormentos do pecado. O espelho mostra-nos o horror da nossa natureza pecaminosa, que pode ser curada apenas pelo ato de expiação de Cristo na cruz. Mediante uma troca jubilosa, Cristo torna-se pecado por nós, enquanto nós obtemos a justiça de Deus. O espelho, então, conduz-nos para além do coração de Cristo até o coração do Pai, a fim de que possamos ser tocados por esse mesmo coração que, desde a eternidade, bate com tal amor ardente por nós. O espelho nos ensina como podemos entender Deus de forma correta. Não em seu poder, glória, e majestade, mas na fraqueza, vergonha e humilhação da cruz, onde Deus é humanamente mais divino. Só pela revelação obtemos uma imagem verdadeira da vida interna de Deus e do relacionamento de amor existente entre as pessoas da Trindade. Por último, aceitar a Cristo como Salvador significa aceitar seu exemplo, a primeira coisa conduz necessariamente à última. Cristo, o sacramento, precede Cristo, o modelo, e essa ordem correta, marcante na cristologia de Agostinho, deve ser observada para a meditação adequada. Intrigante também nesse tratado é a ênfase de Lutero, não só na cruz de Cristo, mas na ressurreição, um aspecto muitas vezes negligenciado, mas que constitui um elemento ontologicamente fundamental de sua doutrina da justificação.⁶

    Formas erradas de meditar

    Meditar sobre a Paixão de Cristo era uma prática comum no tempo de Lutero. Tal meditação, ele declarou, é algo muito louvável.⁷ Contudo, ele descreveu três grupos de falsos meditadores, praticantes da meditação pelas razões erradas. O primeiro grupo meditava sobre a Paixão de Cristo, mas se concentrava nos judeus e no maldito Judas. Lutero condenou essa prática errônea e considerava sua cantoria e arenga uma meditação sobre a impiedade de Judas e dos judeus, mas não sobre os sofrimentos de Cristo.⁸ Os membros do segundo grupo meditavam sobre a Paixão de Cristo a fim de obter proteção para si mesmos. Eles seguiam cegamente um dito atribuído a Alberto Magno (1193-1280): era mais meritório ponderar sobre a Paixão de Cristo apenas uma vez que jejuar o ano inteiro ou recitar um salmo todos os dias etc.⁹ Essa prática era evidente nos que portavam imagens, livretos e cruzes como amuletos, a fim de satisfazerem seus desejos e se protegerem de todos os tipos de perigos. Lutero rejeitou o uso da Paixão de Cristo a fim de evitar o sofrimento, pois tal ato era contrário ao ser e à natureza de Cristo.¹⁰ Ele condenou essa falsa meditação, pois ela não colhia o fruto da Paixão de Cristo.

    O terceiro grupo valia-se de uma forma sentimental de considerar a Paixão de Cristo, alimentando uma piedade emotiva dominada pela compaixão pelo crucificado, lamentando e pranteando por sua inocência.¹¹ Isso equivalia ao que fizeram as mulheres de Jerusalém, cujas lágrimas Jesus desaprovou em público. Esse grupo incluía as pessoas que acreditavam que a missa era "opere operati, non opere operantis, ou seja, eficaz por si mesma".¹² Lutero opunha-se aos que confiavam a própria salvação à repetição mecânica da missa. Mais tarde, no sermão On the sacrament of the body of Christ [Sobre o sacramento do corpo de Cristo] (1526), ele atacou toda a prática da missa, que estava ligada ao opus operatum (a efetividade automática), mas desprezava o opus operantis (a necessidade da fé).¹³ Para ele, a missa não existia para si mesma, antes deveria nos fazer lembrar de que Cristo sofrera a Paixão por nós. Enquanto não nos apropriássemos do fruto certo, ou seja, do pro me (por mim) da cruz, nossa participação no corpo sacrificado de Cristo permanecia algo estritamente exterior. Lutero perguntou: Qual a vantagem de saber que Deus é Deus, se ele não for Deus para você?.¹⁴ Sua ênfase cristológica na expressão pro me refletia o aspecto pessoal da fé, experimentado pelo próprio Lutero. Consequentemente, ele colocava a participação na missa em subordinação ao sinal da fé com que se deve ser tocado interiormente pela cruz de Cristo a fim de que a missa possa ser de algum proveito. Ele comparou as ações emocionais das mulheres de Jerusalém à participação superficial na missa. Nos dois casos, essas pessoas não procuraram pelo fruto certo, pois não foram confrontadas pelo pro me da cruz. Não se apropriaram da obra realizada pela pessoa de Cristo nem do fruto certo que ele colheu para elas. Só quando percebem o que Cristo lhes concedeu é que os crentes discernem a importância do que Cristo realizou. Em sentido ainda mais profundo, para Lutero, o sofrimento e a morte de Jesus não constituem apenas algo que ocorre na história, mas também algo que ocorre para mim.

    Formas corretas de meditar

    Nos parágrafos 4-11 da Meditation on Christ’s Passion [Meditação sobre a Paixão de Cristo], Lutero descreveu o modo correto de contemplar a Paixão de Cristo e colher os frutos que provêm dela. Ao longo do restante do sermão, ele põe seu público sob a influência do Cristo crucificado, a quem chamou de espelho sincero.¹⁵ Essa imagem cristológica estava diretamente ligada, como vimos, à sua theologia crucis (teologia da cruz), sobre a qual escrevera na Heidelberg disputation [Controvérsia de Heidelberg], em 1518:

    Quem olha para as coisas invisíveis de Deus como se fossem claramente perceptíveis nas coisas que de fato ocorreram não merece ser chamado de teólogo. […] Merece ser chamado teólogo, no entanto, quem compreende as coisas de Deus visíveis e manifestas por meio do sofrimento e da cruz.¹⁶

    Lutero considerava a theologia crucis como a teologia verdadeira, contrastada por ele com a oposta, a teologia da glória (theologia gloriae).¹⁷ Os estudiosos da obra de Lutero concordam que a cruz, muito mais que apenas um tema, era o princípio programático subjacente a toda a sua teologia dos sacramentos. As palavras de Walther von Loewenich ainda soam verdadeiras:

    A teologia da cruz não é um capítulo da teologia, mas um tipo específico de teologia. A cruz de Cristo é significativa aqui, não só pela questão da redenção e da certeza da salvação, mas por consistir no cerne que dá perspectiva a todas as afirmações teológicas.¹⁸

    O espelho sincero: a revelação de nossa natureza pecaminosa

    A cruz também regia a prática da meditação de Lutero a fim de obter benefícios espirituais. No parágrafo 4 de Meditation [Meditação], ele afirmou que o valor total da Paixão de Cristo consistia no fato de que nós a consideramos com o coração aterrorizado e a consciência desesperada,¹⁹ e aqui ele se separou da tradição medieval. Em vez disso, ele compartilhou a ênfase paulina na cruz, não no quanto Cristo sofreu em sentido físico, pois isso fazia parte da espiritualidade medieval, mas nos efeitos salvíficos que a Paixão de Cristo trouxe para nós. A eficácia da Paixão de Cristo consistiu no fato de nosso pecado ter sido absorvido por ele no seu desamparo e de seus efeitos terem sido cancelados. Em vez de incitar em nós compaixão pelo crucificado, a contemplação da Paixão de Cristo deve fazer com que nos sintamos arrasados por ela. Devemos nos sentir aterrorizados coram Deo pelo conhecimento de nossa natureza pecaminosa, e obtemos esse terror em nós só por meio da revelação. O espelho sincero nos dá a conhecer uma revelação divina, que é tudo, menos salvífica — ou seja, a revelação da ira de Deus contra o pecado. Tal revelação torna-nos cônscios de nossa condenação, e somos aterrorizados e esmagados por esse conhecimento. Deve-se sentir terror quando se testemunha a ira implacável e a seriedade imutável com que Deus olha para o pecado e para os pecadores, de tal modo que ele não se dispôs a libertar os pecadores em troca de seu Filho único e querido sem que este pagasse a penalidade mais severa em favor deles.²⁰ Por mais repletos de pavor que nos encontremos ao tomar conhecimento de nossa pecaminosidade, jamais nos encontraremos tão repletos de pavor quanto o próprio Deus. Esse conhecimento apavorou tanto o Filho único e querido de Deus que, no clamor final por misericórdia na cruz, ele sentiu a maior angústia a que um ser humano já foi submetido. A severidade da ira divina foi refletida de modo mais agudo no preço exigido para aplacá-la. Ela custou a perda do Filho de Deus, o filho amado, punido por nós a fim de nos redimir.²¹ Se o grande e infinito Filho de Deus teve de sofrer essa punição a fim de nos salvar, Lutero explicou, como devem ser imensas a ira de Deus e a magnitude do pecado. Evidentemente, ele tinha uma importante doutrina do pecado, de acordo com a qual nós estamos tão enraizados no mal e tão cegos para a nossa própria natureza pecaminosa por causa pecado, que Deus teve que deixar seu Filho desamparado para que nosso pecado pudesse ser exposto. Custou mais a Deus a dor de nos expor ao horror do nosso pecado do que a nós a dor de nos tornarmos cônscios dele. Portanto, a consideração séria do valor intrínseco da pessoa do próprio Filho de Deus, a sabedoria eterna do Pai, que sofre deveria nos lançar na insegurança radical diante de Deus.²²

    A Paixão de Cristo consistiu na revelação do pecado e na acusação contra os pecadores. Chegamos a esse conhecimento de nós mesmos, não por meio da mera introspecção que, afirmava Lutero, despreza a Paixão de Cristo, mas por meio da consideração de Cristo na cruz e, por meio dele, de Deus, em sua santidade e misericórdia. O conhecimento do Cristo crucificado e o autoconhecimento coincidem — com o primeiro conduzindo ao último. Lutero escreveu que nosso conhecimento do pecado fluiu de Cristo, não de nós mesmos.²³ Assim, para ele, não havia conhecimento natural de pecado. Só por meio do espelho sincero, Cristo, nossa pecaminosidade pode ser reconhecida em relação à sua depravação radical, pois ele revela o pecado em sua dureza e nos apanha como pecadores miseráveis. Não obstante, a cruz não é primordialmente o veículo de autoexposição; em vez disso, ela é a oportunidade de expiação, pelo fato de passarmos a ter o verdadeiro conhecimento de quem somos.

    Olhar para a cruz conscientiza-nos de nossos pecados e da necessidade de confessá-los. Só por meio da revelação do espelho sincero, essa cegueira pode ser eliminada e o pecado reconhecido por nós. A menos que Deus inspire nosso coração, acrescentou Lutero, "nós, por nosso poder ou por qualquer coisa que concebamos, não podemos jamais obter o conhecimento verdadeiro de nossa pecaminosidade.²⁴ O espelho nos ilumina em relação à nossa pecaminosidade como o fruto adequado da meditação correta sobre a Paixão de Cristo. Por isso, Lutero escreveu: O benefício principal da Paixão de Cristo é fazer com que o homem enxergue a si mesmo e se sinta aterrorizado e esmagado por isso.²⁵ Buscar esse conhecimento em outro lugar, inclusive buscar dentro de nós mesmos o pecado residual, equivale a adotar a teologia da glória, a antítese da teologia verdadeira. Tal meditação nos desviaria do espelho sincero, entregando-nos aos inimigos da cruz.

    Além disso, o terror suscitado desse modo é peculiar a cada crente, causado pela percepção de que o pecado revelado pelo espelho lhe pertence, pregando Cristo à cruz. Todo pecador é um torturador de Cristo; toda pessoa contribui para a crucificação de Cristo. Ninguém pode livrar a si mesmo do pecado ao culpar os judeus, pois todos nós somos servos do pecado. Portanto, quando você vir os pregos atravessando as mãos de Cristo, Lutero explicou, tenha certeza de que essa é sua obra. Quando contemplar sua coroa de espinhos, tenha certeza de que eles consistem em seus pensamentos maus.²⁶ Todos nós, por nossos pecados, matamos o Filho de Deus. Assim, quanto mais considerarmos esse espelho, mais aprenderemos a respeito de nossa natureza pecaminosa e nos sentiremos aterrorizados e esmagados pela percepção. Isso foi desenvolvido por ele no sexto parágrafo da Meditation:

    Para cada prego que perfura Cristo, mais de cem mil, por conta da justiça, deveriam perfurar você; sim, eles deveriam atormentá-lo para todo o sempre e com dor lancinante! Quando Cristo é torturado pelos pregos penetrantes em suas mãos e pés, você deveria sofrer por toda a eternidade a dor infligida por eles e a dor de pregos ainda mais cruéis, que serão, na verdade, a parte dos que não se beneficiam da Paixão de Cristo.²⁷

    Lutero recomendou que o espelho sincero seja encarado com a máxima seriedade. Pois ele não mentirá nem gracejará, e tudo que ele apontar ocorrerá em medida plena.²⁸ Ele não falhará ao trazer à realidade quem somos coram Deo. Ele nos ajuda a enxergar o que o pecado realmente merece. Por seu intermédio, passamos a perceber de forma mais profunda que a sentença eterna, suportada por Cristo na cruz, deveria ter sido aplicada a nós por conta de nosso pecado. O espelho ajudou são Bernardo, assim como nos ajuda, a perceber a severidade do juízo divino contra o pecado, que o próprio Filho de Deus se dispôs a carregar em nosso lugar por sua compaixão para conosco. Essa revelação a respeito do peso do pecado e de sua merecida retribuição consiste no verdadeiro benefício da Paixão de Cristo. A verdadeira obra da Paixão de Cristo, ele afirmou, consiste em conformar o homem a Cristo para que sua consciência seja atormentada pelo pecado, como o corpo e a alma de Cristo foram deploravelmente atormentados.²⁹ A confissão do pecado, como obra própria da Paixão de Cristo, não é nada além de conformidade a Cristo. Essa conformidade à imagem e sofrimento de Cristo é inevitável, seja aqui na terra, seja no inferno.³⁰ O terror é mais agudo na hora da morte, quando o cristão experimenta tudo que Cristo experimentou na cruz.³¹ Contudo, a meditação adequada sobre a morte de Cristo não pode ser realizada sem a graça divina. Pelo fato de ser horrível jazer à espera no leito da morte, ele escreveu, ore a Deus para amolecer seu coração e lhe permitir meditar sobre a Paixão de Cristo de modo proveitoso.³² Lutero destacou a necessidade de que o coração das pessoas, em especial o coração indiferente, seja tocado pela cruz de Cristo, algo que só Deus pode fazer. Sem a ajuda divina, Cristo permanece uma carta sem vida, sendo alcançada apenas pelo intelecto (intellectus), mas sem alcançar o coração (affectus) das pessoas.³³

    O espelho sincero: a distinção entre lei e evangelho

    O espelho sincero fez o pecado emergir em nossa consciência para fazê-lo desaparecer dela. Isso só foi possível por meio da eficácia da expiação de Cristo, pois ele expôs nossa pecaminosidade ao levar sobre si o nosso pecado. Cristo revelou o pecado, não para que ele permanecesse para sempre em nossa consciência — o que poderia nos causar problemas de saúde mental —, mas para que o pecado fosse dissipado e assumido por Cristo.

    Depois de se conscientizar de seu pecado desse modo e de se sentir aterrorizado em seu coração, o homem precisa cuidar para que o pecado não permaneça em sua consciência, pois isso o levaria ao desespero absoluto. Da mesma forma que [nosso conhecimento sobre] o pecado procedeu de Cristo e foi reconhecido por nós, precisamos verter esse pecado de volta sobre ele e libertar nossa consciência dele.³⁴

    Conhecer nossa natureza pecaminosa sem conhecer Cristo como Salvador é como alguém ter consciência da própria miséria sem conhecer a cura para ela, o que conduz, nesse caso, ao desespero máximo.³⁵ O pecado revelado pelo espelho sincero é lançado por nós mesmos sobre Cristo: Cremos com firmeza que suas chagas e sofrimentos são [nossos] pecados, carregados e pagos por ele (cf. Is 53.6; 2Co 5.21; 1Pe 2.24). Assim, Lutero aconselhou seus leitores a renunciarem a todas as falsas tentativas de justificar a si mesmos e a repudiarem a conhecida confiança inútil nas obras humanas, inclusive a penitência e as peregrinações, como formas de se livrarem dos tormentos do pecado.³⁶ A revelação do espelho sincero a respeito de nosso estado pecaminoso assegurará o resultado adequado, ou seja, que o pecado seja eliminado por Cristo, aquele que leva o nosso pecado. Os pecados revelados pelo espelho, e pelos quais Cristo morreu, são nossos, não dele. Os pecados reconhecidos por nós são lançados sobre Cristo para que possamos receber o perdão da parte dele. Essas são de fato boas notícias, se tão somente crermos nelas. De outro modo, se o pecado permanecesse em nossa consciência até que nos lançássemos ao desespero absoluto, para Lutero com certeza essa não seria a obra de Cristo: ela não foi concebida e desejada por Deus.³⁷

    O espelho sincero reflete as atividades contraditórias do Deus único, a lei como sua obra alheia e o evangelho como obra própria. Ele reflete, em primeiro lugar, a obra alheia na lei, sua obra natural e nobre de banir toda a alegria, o prazer e a confiança que o homem poderia obter de outras criaturas, do mesmo modo que Cristo foi abandonado por todos, até por Deus.³⁸ O resultado dessa obra foi a supressão do velho Adão, o que, por sua vez, preparou o pecador para a recepção da graça do perdão por meio do evangelho, sua obra própria. As duas resultam do mesmo amor divino. Parte da teologia paradoxal de Lutero é o simul das ações duais de Deus, uma ação alheia à natureza de Deus resulta em uma ação própria de seu ser. O espelho reflete essas duas atividades. Ele exibe o pecado da humanidade a fim de conduzi-la à salvação por meio de Cristo. A obra alheia de Deus abre caminho à obra própria de Deus: a revelação da ira divina contra o pecado leva ao conhecimento da misericórdia de Deus pro nobis (por nós). A fé apega-se ao conhecimento verdadeiro de Deus: que é da natureza de Deus conceder sua misericórdia a quem reconhece seus pecados. A obra própria encontra-se oculta na obra alheia e ocorre ao mesmo tempo que ela. A cruz, como lei, priva-nos de todos os recursos soteriológicos preexistentes, arrancando de nós toda a confiança para que nos apeguemos a Cristo, o redentor. O resultado adequado dessa meditação é o fato de que ela altera o ser do homem e, quase como o batismo, concede-lhe um novo nascimento.³⁹ À luz disso, Lutero escreveu que quem contempla o sofrimento de Deus do modo correto, ainda que de forma breve ou curta, faz um bem mais duradouro a si mesmo do que quem jejua durante um ano inteiro ou assiste a uma centena de

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