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O rastro da onça: relações entre humanos e animais no Pantanal
O rastro da onça: relações entre humanos e animais no Pantanal
O rastro da onça: relações entre humanos e animais no Pantanal
Ebook298 pages8 hours

O rastro da onça: relações entre humanos e animais no Pantanal

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Como se constituem as relações homem-animal quando a onça deixa de ser um item numa coleção de história natural e passa a habitar um mundo? O rastro da onça, de Felipe Süssekind, explora a relação complexa entre ecologia, caça, criação de gado e turismo na região do Pantanal do Mato Grosso do Sul, em propriedades rurais que abrigam projetos de estudo e a preservação da onça-pintada. Através de uma pesquisa antropológica, o autor examina os mais variados aspectos da relação entre humanos e animais, detendo-se, mais especificamente, sobre a complexa trama de relações entre o homem e a onça que coabitam essas regiões. O recorte ecológico depende em geral da exclusão da espécie mais abundante da região, que é o gado. Por se alimentar do gado, a onça tem sido vista também, por muitos fazendeiros, como um problema a ser combatido. Além de detalhes sobre a preservação da Panthera onca, o leitor encontra relatos de caçadores de onça e de seus cães onceiros, que, ao lado das vacas e vaqueiras, constituem figuras centrais neste livro. Entre esses relatos, surgem as narrativas sobre os zagaieiros, caçadores antigos que enfrentavam onças com a zagaia, lança de origem indígena; histórias que carregam todo o imaginário indígena da região e se refletem na nossa cultura, por exemplo, no conto "Meu tio o iarauetê", de Guimarães Rosa.
LanguagePortuguês
Publisher7Letras
Release dateOct 16, 2018
ISBN9788542107265
O rastro da onça: relações entre humanos e animais no Pantanal

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    O rastro da onça - Felipe Süssekind

    2013.

    Capítulo 1

    Onças, cães e projetos de pesquisa

    UMA PRIMEIRA IMPRESSÃO

    Um homem chamou um caçador para ir atrás da onça. Quando eles chegaram no mato, ficou esperando enquanto os cachorros correram numa batida, e atrás deles o caçador. Mas a onça rodeou e voltou para trás de onde o homem estava esperando. Ele estava distraído pelo barulho dos cachorros e do caçador, e não viu a onça subindo numa árvore. Logo depois, o homem ouviu o barulho do caçador voltando com os cachorros, mas achou que a onça vinha na frente e fugiu, subindo na mesma árvore em que ela estava trepada. Quando o caçador chegou, e olhou pra cima, viu o homem e a onça na mesma árvore. Falou:

    – Não precisa pegar ela sozinho não, deixa que eu atiro aqui de baixo.

    Nisso, o cabra viu a onça em cima dele e despencou lá de cima, rolando no chão feito um quati. A cachorrada foi então para cima, achando que era um bicho, e acabou com ele.

    A história foi contada por um peão de gado pantaneiro para alguns outros peões e um pequeno grupo de pesquisadores que formavam uma roda para tomar o tereré, mate gelado típico da região sul do Pantanal. Era uma provocação bem-humorada aos integrantes do projeto conservacionista sediado na Fazenda Miranda, uma extensa propriedade localizada entre os rios Miranda e Aquidauana. Era começo de março, e eu fazia minha primeira viagem à região com o objetivo de conhecer projetos de pesquisa que tinham como objeto de estudo a onça-pintada. A Fazenda Miranda foi uma das primeiras a trabalhar com turismo ecológico nessa região e, desde a década de 1980, conjugava a pecuária tradicional às atividades de turismo, voltadas sobretudo para a observação da vida selvagem e destinadas principalmente ao público estrangeiro.

    Estudos com animais selvagens no ambiente natural costumam ser feitos em parques nacionais ou reservas biológicas; isto é, lugares onde esses animais estariam idealmente isolados do contato humano. Os projetos realizados no Pantanal, por sua vez, precisam necessariamente lidar com as atividades humanas e com a presença dos rebanhos bovinos na paisagem. Ao problematizarem a relação entre os diversos agentes que constituem o mundo da onça, esses projetos trouxeram para o âmbito da pesquisa em ecologia diversos atores ligados ao universo humano – fazendeiros, caçadores, peões, gado, cães, turistas –, o que me parecia particularmente interessante para um trabalho antropológico.

    Nesta primeira viagem ao Pantanal, conheci projetos realizados por pesquisadores ligados a duas ONGs nacionais, a Pró-Carnívoros e o Fundo para a Conservação da Onça Pintada. Um tema central para esses trabalhos era a relação entre as onças e a criação de gado; uma relação historicamente conflituosa de eliminação dos predadores, tidos, em geral, como animais nocivos aos negócios. A situação começou a se modificar parcialmente com o desenvolvimento da ecologia e do turismo no Pantanal. Com a afirmação da imagem da região como paraíso ecológico, a onça, que sempre foi considerada um animal daninho, passaria aos poucos a ser vista como elemento central de uma nova economia.

    A Fazenda Miranda abrigou o primeiro estudo de longo prazo sobre a espécie, no início dos anos 1980 (Crawshaw e Quigley, 1984). Desde essa época, um tema central na conservação da onça era diagnosticar as causas e propor soluções para o problema da predação e para o consequente extermínio dos felinos pelos fazendeiros. As propostas que foram formuladas, nessas três décadas de pesquisa na região, para minimizar o conflito, incluem sugestões de mudanças no manejo do gado e de compensação financeira para os proprietários rurais (Silveira et al, 2008; Azevedo e Murray, 2007).

    Na época em que visitei a Miranda, em 2006, a propriedade fazia parte de um programa financiado pela Conservation International, uma das maiores ONGs conservacionistas do mundo, dentro do qual os pesquisadores identificavam ataques de onça a partir de registros fotográficos feitos pelos peões de gado da fazenda, e o proprietário recebia, pelas perdas, o preço médio de mercado do boi na região. Outro aspecto do programa desenvolvido na fazenda e em seu entorno eram as atividades de educação ambiental, com a distribuição de livretos e cartilhas e a realização de entrevistas com as pessoas atendidas pelo projeto, além de assistência médico-odontológica prestada aos moradores locais.

    A fazenda contava também com um canil onde eram criados cães de caça com fins exclusivamente científicos, treinados para a captura das onças com o objetivo de se efetivar a colocação de coleiras de rádio. Não havia outros cães na propriedade, já que os animais de estimação tinham sido banidos a partir do momento em que o local se tornou refúgio ecológico. No dia seguinte à minha chegada, conheci o administrador da fazenda, o Sr. Estevão, que não pareceu gostar muito quando me apresentei. Ele disse: Antropólogo? Tem muito antropólogo aí para defender os índios, mas nenhum para defender o fazendeiro. Mais tarde, depois de superada a desconfiança inicial, contou-me que o avô viera do Rio Grande do Sul para a região, para trabalhar com gado: Naquele tempo o gado era criado sem cerca, tudo no laço e no berrante. Quando perguntei sobre as onças, disse que as mães costumam assustar os filhos no Pantanal, dizendo: Não vai sozinho tomar banho lá no ribeirão que lá tem onça braba e te come. Falou ainda que antigamente tinha muita onça, e que a fazenda tinha na época um funcionário só para matar onça, senão, não tinha como criar gado. Contou ainda que naquele tempo, um bom cachorro onceiro valia vinte cabeças de gado, quando era cachorro bom mesmo, mestre.

    A conversa se deu quando estávamos a caminho do canil, onde Sofia e Juliana, duas veterinárias que coordenavam a pesquisa na fazenda, iam fazer os preparativos para uma tentativa de captura que ocorreria na manhã seguinte. Chegando lá, elas me mostraram os cães, alguns importados dos EUA, de raças de caça: foxhounds, bloodhounds, coonhounds; mas o único cão mestre do canil era um pequeno vira-lata, importado de uma fazenda vizinha – disseram em tom de brincadeira –, chamado de mestrinho. O que fazia um cão ser considerado mestre, conforme me explicaram, era o fato de ele só seguir o rastro da onça, e não ir atrás de nenhum outro animal.

    Chamo a atenção para alguns nomes atribuídos aos cães do projeto: Maluca, Zagaia, Berrante, Bugio. Esses dois últimos nomes eram ligados ao uivo característicos das raças de caça (os hounds, em inglês). O grito do bugio, um macaco por vezes chamado de uivador, é um som característico do ambiente pantaneiro, e de acordo com o capataz responsável pelo retiro, que também conheci na ocasião, era uma referência importante para os pantaneiros em suas relações com o ambiente: A gente conhece bugio pelo vento. Se ele canta pra lá é vento sul, se é pro outro lado, é vento norte. Assim se podia saber quando e de onde vem a chuva.

    O canil ficava num lugar chamado Retiro Tucano, a 15 km de distância da sede da fazenda, e passei alguns dias lá. No total, viviam no retiro dezoito pessoas. Os peões casados tinham suas próprias casas, onde moravam com suas famílias, enquanto os solteiros moravam num grande galpão, onde fica também uma das duas sedes do projeto de pesquisa na fazenda. O Tucano era o maior dos quatro retiros da fazenda, com um rebanho de mais de dez mil cabeças, cerca de um terço do gado que havia na propriedade. O retiro era administrado a partir de um cercado central, onde se trabalhava com os animais de montaria e com o gado. No mangueirão, como é chamado esse cercado, os animais eram periodicamente contados, vacinados, marcados e castrados; também eram separados aqueles que iam ser comercializados para as cidades de Miranda e Aquidauana.

    Os peões tinham categorias específicas para designar o gado manso – como os bois chamados de sinuelos, usados para facilitar o movimento do rebanho – e o gado bravo, ao qual se referiam como bagual. Este último tipo de gado, pelo que pude perceber no curto período em que estive no retiro, era fonte de muitas histórias de enfrentamento e provas de coragem entre os vaqueiros. Outro animal interessante no bestiário pantaneiro é o porco-monteiro. O porco doméstico, de origem europeia, que havia se adaptado ao ambiente do Pantanal e voltado à vida selvagem. É um animal interessante de observar para que se possa colocar em questão a relação entre doméstico e selvagem, ou entre exótico e nativo.

    O porco-monteiro ocupa um lugar próprio na cultura local, já que pode ser caçado e a carne dele é bem apreciada. Quando os peões o encontram ainda jovem, eles o laçam, amarram e capam, cortando um pedaço da orelha ou do rabo para marcar o animal. Fazem isso porque dizem que, se o bicho não for capado, a carne fica com o gosto ruim; é a mesma lógica que se usa para o gado. Chamam o animal inteiro de guaiaco, e capturam somente o capado, quando já está bem gordo para ser comido. Durante a minha estadia, um desses animais foi abatido pelos vaqueiros no campo e depois assado e servido na cantina do retiro. A caça ao porco-monteiro era a única permitida na fazenda, já que os animais nativos eram todos protegidos. Na verdade, toda a área era um refúgio ecológico. Soube, por exemplo, que um dos moradores do retiro fora mandado embora por ter atirado num queixada, mas me contaram que ele teria sido recontratado depois.

    Acompanhei também a tentativa de captura de uma onça nesse período, na Fazenda Miranda, mas os pesquisadores não tiveram sucesso na empreitada. Pude, entretanto, registrar uma parte dos procedimentos envolvidos nesse processo. A caminhonete do projeto deixou o retiro antes de o sol nascer, com os cães na caçamba, em direção ao local onde um dos peões localizara o rastro fresco de uma onça. Como não me foi permitido acompanhar diretamente a atividade, apesar da minha insistência (a justificativa era que se tratava de atividade muito perigosa), fiquei recebendo notícias pelo rádio junto com um dos estagiários do projeto. No final da manhã, depois de uma longa e tensa conversa via rádio, veio a notícia de que um dos cães estava muito ferido e de que os pesquisadores haviam desistido da caçada. Algum tempo depois, uma caminhonete passou rapidamente pela base do projeto, levando o cão bugio para o veterinário em Aquidauana, para uma cirurgia de

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