Quando a selva sussurra: Contos amazônicos
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Quando a selva sussurra - Mário Bentes
Para dona Lene
A tua voz foi minha primeira forma de leitura, e a porta de entrada para o apaixonante mundo da literatura. Você ensinou-me o quão prazeroso seria decodificar todas aquelas letras e, mais tarde, incentivou-me a brincar com elas. Contigo compartilhei frases, versos e poemas, e dessa forma, escrevemos a nossa história. E ela foi tão bem escrita que até parece um conto de Drummond, ou um quadrinho do Ziraldo. Chega a ser injusto que essa história tenha chegado ao fim sem que você pudesse se deliciar com esse último livro. Mas, pensando bem, mãe, você faz parte dele muito mais do que eu.
Andrés Pascal
Copyright © Mário Bentes, 2015
Todos os direitos reservados.
Quando a selva sussurra: Contos amazônicos
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou meio eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou sistema de armazenagem e recuperação de informação, sem a permissão escrita do editor e do escritor.
O texto deste livro obedece às normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
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Quando a selva sussurra [livro eletrônico] : contos amazônicos / [organização Mário Bentes ; ilustrações Rafael Rodrigues]. -- Manaus :
Lendari, 2016. 10 Mb ; ePUB ; MOBI
1. Amazônia 2. Contos - Amazônia 3. Contos brasileiros I. Bentes, Mário. II. Rodrigues, Rafael.
16-00659 CDD-869.3
Índices para catálogo sistemático:
1. Contos : Literatura brasileira 869.3
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coordenador editorial & organizador
Mário Bentes
ilustrações
Rafael Rodrigues / Animeniac Xmao
revisão
Thais Nakayama
projeto gráfico & diagramação
GR Capas
capa
GR Capas
Versão Eletrônica
Project Nine
Sumário
Estórias para serem lidas em voz alta
Mapinguari urbano
A Árvore dos Cânticos
Filha de Icamiabas
A caçada
O Pescador solitário
Boiúna
Dízimo
Filhos de Boto
Suindara maldita
A longa noite de Antônio Félix
A índia que não temia a noite
A cachoeira
Olhos de Icamiabas
O mistério dos corpos rasgados
Os dois mundos
O Porão do Ataíde
Iauaretê
O que o fogo nos deu
A casa 26
Por que cantam os uirapurus
Numa noite de Cruviana
Manaos Railway
Estórias para serem lidas em voz alta
A geógrafa Bertha Becker era apaixonada pela Amazônia. Nada havia, entretanto, de platônico nessa paixão, porque, apesar de não ter nascido amazônida, ela conhecia como poucos esse pedaço do Brasil profundo e projetava, com base em análises e estudos científicos, a melhor forma de interlocução com a região: A Amazônia é uma região sofisticada em termos de natureza, e temos de cuidar dela com a mesma sofisticação
. Essa, a forma de Bertha sinalizar que, compreender a Amazônia, exige muito mais que se deixar seduzir por sua exuberância e exotismo.
Mas, sob um outro ponto de vista, a apurada perspectiva da grande geógrafa brasileira nos motiva à livre tese de que, para compreender essa região sofisticada
, é preciso, também, empreender viagens outras em busca de interlocutores que podem ser encontrados na aguda criatividade e no realismo fantástico brotado do imaginário da gente que habita a região. Neste caso, em particular, recomenda-se o momentâneo desapego ao burburinho cotidiano e o máximo de concentração nos detalhes. Afinal, num lance inesperado, o ouvinte pode se dar conta de que, do porão naufragado da embarcação Comandante Ataíde de Vila Verde, saltou para o imaginário popular o renascimento de Tuluperê. Como pode reavivar na memória que, em noites enluaradas de festas, o boto continua à solta, deixando herdeiros nos mais distantes beiradões. Como pode, também, se embrenhar na floresta em parceria com o destemido Zezão, para resgatar o filho mais novo das garras do Curupira. Ou, ainda, aliar-se aos deuses da mata na busca frenética pela Árvore dos Cânticos, na tentativa de conhecer os segredos da vida. Por outro lado, não hesite o ouvinte em acompanhar o trajeto do estivador Antônio Carneiro pela madrugada do centro da cidade de Manaus e se surpreender com uma dama perdida, saída do início do século vinte, à procura de um bonde cuja estação fica na praça em frente ao Teatro Amazonas.
Estas e outras estórias compõem a coletânea organizada por Mário Bentes e se prestam à valiosa missão não apenas de resgatar para a história, como também de reinventar, a partir da experiência e da perspectiva de jovens autores da região, pedaços da memória de uma Amazônia que ajudam a entender a lógica da sofisticada Amazônia dos sonhos de Bertha Becker. São estórias – é bom recomendar – que, para melhor serem apreendidas, devem ser lidas em voz alta, para o deleite, o suspense, o envolvimento e o encanto da plateia.
Odenildo Sena
Mapinguari urbano
Alcides Saggioro Neto
Bem me lembro daquelas viagens para o in-terior – era uma cidade pequena. Por diversas vezes, ouvi o relato: era ele, o Mapinguari.
Um olho apenas, dentes arreganhados. Ora peludo, ora com escamas. Muito alto. Os relatos também falavam da existência de uma boca na barriga. Para mim, tudo não passava de histórias daqueles índios no boteco. Eles temiam os idosos, diziam que eles se transformavam no monstro.
Lendas e lendas. Quando eu era criança, aquilo até me assustava. Depois cresci, fiz-me um cético e tudo aquilo já não passava de história da carochinha – e das mais fuleiras. No jornal, eu via uma selva realmente assustadora. Monstros disfarçados de homens, escondendo-se em esquinas e praças.
Mutilações, decapitações, assassinatos, parricídios e matricídios. Os monstros da mata não conseguiriam competir com os homens da cidade.
Mas não sei explicar o que anda acontecendo comigo ultimamente. Essa história do Mapinguari começa a voltar a me assombrar. Um temor quase infantil. Logo eu, uma pessoa cética, urbana…
Vou explicar como começou.
Minha mãe faleceu há algum tempo e, por conta disso, meu pai veio morar em meu apartamento. Ele sempre gostou de pescar, e passava os finais de semana inteiros em longas pescarias. Sendo assim, não convivíamos muito. Como eu trabalhava durante a semana, não encontrávamos tempo para um convívio nos dias de folga.
Um dia, uma gosma surgiu no olho dele. Foi bem nojento. Naquela noite, apenas apliquei colírio em seu olho e agendei uma consulta no oftalmologista para o dia seguinte. O médico, contudo, não descobriu a causa. Meu pai acabou indo de médico em médico até finalmente descobrir o que era: um parasita!
Haveria perda gradual da visão naquele olho, mas, seguindo o tratamento, sumiriam as secreções. Ele aceitou bem. Passou a usar um tapa-olho, como um pirata. Porém, passadas as semanas, ele veio a cair doente. Foi súbito. Em apenas uma semana, já estava com uma aparência decrépita. Estava definhando, sua respiração estava a cada dia mais difícil e ruidosa, a pele não tinha mais a elasticidade de antes e, em alguns pontos, parecia escamosa.
E, com apenas um olho, começava a lembrar-se da história dos índios. Ele parecia estar transformando-se lentamente no conhecido monstro das lendas.
Por que eu me preocupava? Ele já estava em avançada idade. Era natural e esperada a sua partida a qualquer momento. Com a mamãe também fora assim, rápido. Não era medo da partida que me causava preocupações. Era outra coisa.
Tenho de reconhecer que, às vezes, é assustador quando a noite cai e a madrugada domina. No corredor escuro do apartamento, ver aquela porta no fim, ouvir aqueles roncos e gemidos dá uma sensação de medo. Uma criança talvez acreditasse estar ali, exatamente ali, atrás da porta, o monstro do armário, pronto para lhe devorar as entranhas.
De repente, ouvi um grito. Meu pai chamava por mim. Fui correndo até lá, enquanto sentia um cheiro estranho. Como ele ficara muitos dias no quarto, com porta e janelas fechadas, o ambiente ficou com seu odor.
— Pai, estou aqui.
— É você? Ainda bem.
— O que foi?
— Estou com dor. Traz meu remédio.
— Sim, volto já com ele.
Caminhei até o espelho do banheiro. Os remédios que o médico passou estavam lá, no armário. Abri e retirei duas cápsulas. Fechei. Subitamente, uma surpresa. Parei para olhar meu reflexo. Descobri o que tanto apreendia meu ser. Não era a ideia de que meu pai estava transformando-se no Mapinguari. Não, nada disso.
Era eu!
A Árvore dos Cânticos
Attaíde Marttins
Dizem os antigos que quando o tempo ainda não se tinha feito completamente, deuses e entidades souberam da existência da Árvore dos Cânticos. Ela continha o segredo da vida e por isso os deuses da mata, temerosos, trataram de procurá-la.
Eles, porém, não foram os únicos. As entidades da selva se uniram à procura da Árvore dos Cânticos, pois queriam acabar com as divindades, já que teriam nas mãos o poder do segredo da vida.
Jaci