Dicionário da comunicação
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Dicionário da comunicação - Ciro Marcondes Filho
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a
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acontecimentalizar
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acontecimento comunicacional
acontecimento mediático
acoplamento estrutural
adgnose
Adorno, Theodor Wiesengrund
afecção/aferência
aferência
afeto
Agamben, Giorgio
agenciamento
agenda setting
agenda tecnocientífica
alteridade
analfabetismo pós-literário
análise do discurso
analógico/digital
Anders, Günther
aparelhos ideológicos de Estado
Arendt, Hannah
Arnheim, Rudolf
arquétipos contemporâneos
arte-final
assincronia
atrator estranho
audiovisual
aura
Austin, John Langshaw (1911-1960)
auto-organização
autopoiese
autoria jornalística
avatar
b
bacia semântica
Bakhtin, Mikhail
Barbero, Jesús Martín
Barthes, Roland Gérard
Bataille, Georges
Bateson, Gregory
Baudrillard, Jean
Benjamin, Walter
Bergson, Henri
Blanchot, Maurice
Bloch, Ernst
blog
Bourdieu, Pierre
Buber, Martin
c
campo social
Canclini, Néstor García
capa
capitalismo culturalizado
charge jornalística
Chomsky, Avram Noam
cibercultura
cibercultura, glossário da
ciberetnografia
cibernética
cibernética de segunda ordem
ciborgue
cinegnose
cinema
cinema de propaganda
cinema–educação
cinema esquizo
Círculo Cibernético
Círculo de Viena
Círculo Linguístico de Praga
clichê
cluster
códex
Cohn, Gabriel
Colégio Invisível
colonização do mundo vivido
comodificação
complexidade
comunicação
comunicação, contrato de
comunicação, densidade da
comunicação, deuses da
comunicação, economia política da
comunicação, estética da
comunicação, fenomenologia da
comunicação, nova teoria da
comunicação, teoria da
comunicação, saberes da
comunicação ecológica
comunicação existencial
comunicação fática
comunicação intercultural
comunicação interpessoal
comunicação organizacional
comunicação urbana
comunidade discursiva
comunidade virtual
consciência
consenso
construtivismo radical
consumo cultural
contexto de deslumbramento
contínuo e descontínuo
contínuo mediático atmosférico
contracultura
contraefetuação
contrainformação
controles discursivos
convergência
coronelismo eletrônico
corpo
corporalidade
corporeidade
crítica
cultura
Cultural Studies
curadoria
d
Dasein
dead line
Debord, Guy
Debray, Régis
Deleuze, Gilles
deontologia
Derrida, Jacques
desconstrução
design
desnível prometeico
desterritorialização
diagramação
dialética imóvel
dialética negativa
diálogo
diálogo intersubjetivo
diálogos virtuais
diáspora
diferença
diferensa
diferendo
digital
discurso
discurso, análise do
dispêndio
distinção, lógica da
divulgação científica
double bind
dromologia
dromomania
duração
Durand, Gilbert
e
Eco, Umberto
ecologia humana
ecossistema comunicativo
educação
educomunicação
efetuação e contraefetuação
Eisenstein, Sergei Mikhailovitch
emissão/recepção
emoção
empirismo transcendental
ensino
entre-dois
entretenimento
entropia
Enzensberger, Hans Magnus
epistema metapórico
epoché
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Escola de Chicago
Escola de Columbia
Escola de Frankfurt
Escola de Palo Alto
Escola de Toronto
escrita
esfera pública
espetáculo
estereótipo
estética da mercadoria
estética do desaparecimento
estoicos
estruturalismo
Estudos Culturais
ética
etnocenologia
etnografia
experiência interior
expressão
êxtase
extralinguístico
extremo possível
f
face a face
faculdade invisível
fala
fala e voz
fala, atos da
falsa consciência
fantasia
fantasia modal
fantasia-clichê
fascinação e tédio
fato
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fechamento operacional
fenomenologia
fetichismo
filme
filme gnóstico
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Foerster, Heinz von
fonte
formação sígnica
fotografia
fotojornalismo
Foucault, Michel
g
Galáxia de Gutenberg
gancho
García-Canclini, Néstor
gatekeeping
gatewatching
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globalização
glossário da cibercultura
glossemática
gramática generativa
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h
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habitus
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historiografia
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humor
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i
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identidade
identidade social/ identidade subjetiva
ideologia
imagem
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imaginário
imaginário tecnológico
imersão
imprensa
imprensa, liberdade de
impressão
incomunicabilidade
inconsciente
incorpóreo
índice
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indústria da consciência
infográfico
informação
intencionalidade
interação
interdiscurso
intermedialidade
intermidialidade
internet
interpretação
interpretante
interrupção dialética
intuição sensível
irradiação
irritação
j
Jakobson, Roman Osipovich
Jameson, Fredric
jogos
jogos de linguagem
jornal
jornalismo, economia política do
jornalismo, história do
jornalismo cultural
jornalismo literário
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jornalismo para cidadania
k
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kitsch
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Klages, Ludwig
Kracauer, Siegfried
Kraus, Karl
l
Lasswell, Harold D.
Lazarsfeld, Paul
lead
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Levinas, Emmanuel
linchamento mediático
língua
linguagem
linguagem, jogos de
linguística
literatura
lógica da distinção
logocentrismo
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Luhmann, Niklas
Lyotard, Jean-François
m
manipulação
máquina abstrata
Marcondes Filho, Ciro
Marcuse, Herbert
marginália
marketing
marketing viral
Martín-Barbero, Jesús
mass media
massa e multidão
massas
Mattelart, Armand
Maturana, Humberto
McLuhan, Marshall
media
media literacy
mediação
mediatização
medialidade
mediologia
mediosfera
medium e forma
meios, temporalidade dos
meios, teoria dos
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memória
mensagem
mercadoria, estética da
Merleau-Ponty, Maurice
metafísica
metafísica da presença
metafísica e transcendência
metáfora
metanarrativa
metáporo
metarrelato
método
metodologia Q
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mídia ninja
midiatização
mitologia
monólogo coletivo
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movimento
mundo vivido
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n
não-idêntico
narrativa
narrativas mediáticas
neguentropia
newsmaking
Nietzsche, Friedrich
noema/noese
nomadismo sedentário
notícia
notícia, produção da
o
objetividade
objetividade pragmática
observação de segunda ordem
observador
offset
opinião, líderes de
opinião pública
óptico inconsciente
Orozco Gómez, Guillermo
ótico inconsciente, senso
p
Park, Robert Ezra
Peirce, Charles Sanders
Peñuela Cañizal, Eduardo
percepção
performatividade dos media
perlocucionário
pesquisa empírica
Pignatari, Décio
pirâmide invertida
plano de imanência
poder simbólico
polifonia
pós-estruturalismo
pós-humanismo
pós-moderno
pósTV
primeirismo
princípio da razão durante
produção gráfica
projeto visual e projeto gráfico
Prokop, Dieter
propaganda
propaganda nazista
propriocepção
Pross, Harry
pseudo-evento
publicidade
r
racionalidade
rádio
razão durante, princípio da
real
realidade
recepção
recepção, estudos de
redes sociais
redução eidética
regime de signos
relações públicas
relativismo
religião
reportagem
representação
resiliência
reterritorialização
revelação profana
revista
rizoma
rosto
rotogravura
s
saberes da comunicação
Santaella, Lúcia
São Paulo, Escola de
Saussure, Ferdinand de
Schmidt, Siegfried J.
secundismo
sedução
semiosfera
semiótica
sentido
sentimento
Serres, Michel
Sfez, Lucien
significado, significante
signo
signos, regime de
símbolo
Simmel, Georg
simulacro
sinal, economia do
sinalização
Sloterdijk, Peter
sobreliminar
sociolinguística
sociologia das ausências
Sodré, Muniz
solidão
speech acts
subjetividade transcendental
sujeito/subjetividade
t
tautismo
técnica
tecnognose
tecnologia
tecnologia analógica
tecnologia da informação
tecnologia digital
tecnologização dos discursos
tédio
telemática
televisão
tempo diegético
temporalidade dos meios
teologia invertida
teoria
Teoria Crítica
teoria da comunicação
teoria da imagem dialética
Teoria das Brechas
Teoria Hipodérmica
terceirismo
territorialização
tipografia
tipologia
two step flow of communication
v
valor imaterial
veículo
velocidade
vergonha prometeica
verdade, regimes de
vídeo
vínculo
vínculo comunicativo
Virilio, Paul
virtual
von Foerster, Heinz
voz
w
Warburg, Aby
web, website
Wiener, Norbert
Wittgenstein, Ludwig
Wolton, Dominique
Agradecimentos
Aos amigos e colaboradores da Escola de São Paulo, que durante duas décadas me acompanharam nesta caminhada em busca de uma definição da comunicação e na proposição de um procedimento investigativo que se constrói e se atualiza a cada nova pesquisa.
1cabecaDa emergência de um dicionário de comunicação
A área de comunicação precisa ser repensada neste país. Desde que as discussões, os estudos, os trabalhos acadêmicos e as publicações começaram a se desenvolver em escala galopante, especialmente a partir dos anos 70 do século XX, a área caminhou de forma mais ou menos acidental, tropeçando em conceitos mal digeridos, como o da própria comunicação de massa
, passando por traduções às vezes desastrosas, recebendo acriticamente todo um material muitas vezes de segunda mão ou de qualidade duvidosa. Assim expandiu-se, um pouco aos trancos e barrancos, essa área que, mesmo assim, tornou-se um excepcional espaço de trabalho de jovens pesquisadores, de estudiosos, de professores e interessados em geral, ansiosos por dar uma resposta às questões prementes que se colocavam no cenário comunicacional brasileiro.
Os meios de comunicação chegaram ocupando todos os espaços e todas as discussões. O desenvolvimento da técnica não esperou que a inteligência dos estudiosos conseguisse apresentar uma reflexão paralela, sincrônica, que desse conta da necessidade de contínua atualização; pelo contrário, foi se expandindo exponencialmente enquanto a prática universitária e intelectual só podia acompanhar tardiamente seus resultados.
A isso se soma o fato de a área de comunicação neste país ter criado uma demanda muito grande de profissionais de ensino e de pesquisa para ocupar os postos na universidade, profissionais esses que não estavam em condições de atender adequadamente essa exigência, pois não haviam sido formados especificamente no estudo dos fenômenos comunicacionais. Assim, pioneiros como Gabriel Cohn, em São Paulo, ou Luiz Costa Lima, no Rio de Janeiro, assumiram a dianteira na apresentação de textos comunicacionais, apesar de serem sociólogo, o primeiro, e crítico literário, o segundo. E os cursos passaram a ser ministrados por antropólogos, sociólogos, linguistas, psicólogos, matemáticos, exatamente porque não havia pessoal científico especializado no comunicacional.
O tempo passou e a área acomodou-se a essa situação imprópria. Os novos ingressantes no ensino e na pesquisa continuavam a seguir seus mestres nas décadas seguintes, replicando pesquisas administrativas, cuja origem e desenvolvimento estavam associados à economia, ao marketing e à publicidade, reproduzindo olhares e abordagens das ciências sociais, da história e da psicologia ou da psicanálise. Essas áreas são de grande valia para o saber humanístico, mas não poderiam se ocupar, por razões de especialização, com o estudo da comunicação stricto sensu. Com isso, o vocabulário, a construção de categorias, o desenvolvimento de um saber próprio, eminentemente comunicacional ficaram em segundo plano. A área ainda se ressentia desse hibridismo, não conseguia constituir um campo próprio, mas formava-se por cruzamentos de linhas, orientações e vetores, cuja síntese
chamávamos de comunicação
.
Mas já amadurecemos para a mudança e a consolidação. A época atual demonstra condições satisfatórias para erguer, por fim, um saber específico que não dispensa as trocas com as ciências humanas, o apoio que estas sempre deram, mas que precisa constituir-se como um campo próprio, não apenas como aplicação
de outros campos, como equivocadamente o classificam as agências de financiamento de pesquisa.
Por isso este dicionário. Para sugerir uma ordenação, uma estruturação, um código próprio que busque rever os conceitos da área, aperfeiçoá-los e expurgar aquilo que é indevido, incorreto, transposição mal resolvida, solução de primeira hora. Ainda operamos em nosso cotidiano acadêmico com conceitos que se tornaram clichês, que prejudicam a inteligência, que excluem nomes ou escolas simplesmente por repetir vícios ou estereótipos redutores. Há ainda muito que se depurar na construção desse saber.
Mas o primeiro passo está aqui, nesta nossa proposta. Sessenta especialistas brasileiros juntaram-se nesta empreitada em busca da consolidação da ciência da comunicação, a fim de ratificar a função reguladora e ordenadora de um dicionário.
Esta obra busca atingir todo o espectro da comunicação, desde as formas interpessoais, o face a face, as coletivas (dos grupos de discussão), a comunicação presencial em sala de aula, até a chamada comunicação social
, que abrange as formas de comunicação irradiada (em que se conhece o polo emissor – uma estação de TV, uma emissora de rádio, uma empresa de publicidade –, mas não os receptores, que são anônimos) e a comunicação espectral ou eletrônica. Parte-se do princípio de que o conceito de comunicação pode e deve ser válido para todas as instâncias da comunicabilidade humana e assim deve ser estudado.
Sobre os termos
No que se refere à terminologia, o dicionário converteu todas a frases e expressões que continham a palavra mídia
e seus derivados para o termo original media, dotando o texto de uniformidade léxica, sem perda da precisão e atuando no sentido de maior rigor linguístico. Afinal, um dia a opção terá que ser feita e não nos cabe referendar nem estimular a produção de conflitos terminológicos que operam na ambiguidade.
É o caso, por exemplo, de frases do tipo: Diferentes mídias (cinema, rádio, TV etc.) realizam entrecruzamentos mediáticos que levam a uma saturação...
, em que se constata um duplo equívoco linguístico. Primeiro, porque utiliza numa mesma e única frase duas formas que se chocam linguisticamente, que são opostas, para caracterizar o fenômeno comunicacional: uma, derivada do neologismo brasileiro mídia
, e outra, acatando a forma internacionalmente utilizada (e mais correta) do radical media. Ora, ou optamos por uma ou por outra; é preciso que se instale uma coerência lexical e semântica. Mas isso não é tudo. O vício acadêmico brasileiro chama cada um dos processos comunicacionais (cinema, jornal, rádio etc.) de mídia
, quando sabemos, todos nós, que mídia
é uma forma plural, que se aplica aos meios
, e não admite a forma singular, que seria o meio. Logo, não existe a mídia, no máximo os mídia. Assim, jornal, TV, rádio, publicidade são meios, cada um é um meio ou medium. A forma transformada e corrigida passaria a ser, então: Diferentes meios (cinema, rádio, TV etc.) realizam entrecruzamentos mediáticos que levam a uma saturação...
Por isso, o Dicionário da Comunicação se propõe a revisar essas expressões indevidas que depõem contra a seriedade dessa área. Podemos falar perfeitamente multimedia ou multimeios, hipermedia ou hipermeios, meios de massa, ou, como nos ensinam os portugueses, mais fiéis ao rigor vernáculo, os media. Fôssemos optar pela solução corrente, deveríamos, então, assumir todas as suas variantes, o que nos daria midiação, intermidiar, midiante, imidiato, e assim por diante, o que seriam formas notoriamente bizarras.
cabecaDa organização deste dicionário
O dicionário é composto de verbetes de conceitos e verbetes relativos a pensadores. No caso dos conceitos, além da etimologia e das aplicações em outras áreas, incluiu-se a menção de Temas próximos, opostos e correlacionados. Não há a menção de fontes bibliográficas utilizadas para sua construção, mas apenas da indicação sumária e eventual do nome do estudioso ou do pesquisador que colaborou para a sua produção. Caso o leitor sinta necessidade de maior detalhamento, o Dicionário da Comunicação apresenta, no final, a lista dos autores dos verbetes e seus respectivos e-mails para eventuais consultas específicas.
No caso dos pensadores, os verbetes trazem, no final, a lista com suas obras principais. Da mesma forma, aparecem apenas o nome da obra e o ano de sua publicação. O leitor encontrará nas livrarias ou bibliotecas a localização precisa para eventuais consultas específicas.
1ação comunicativa
(loc.nom.f.) Etim.: associação entre ação, do lat. actio, aquilo que uma pessoa ou coisa realiza segundo uma intenção ou impulso, e comunicativa, de comunicar, do lat. communicare, estar em relação com. Filosofia política. Conceito criado por Jürgen Habermas e desenvolvido em seu livro de 1981 Teoria da ação comunicativa, em que o filósofo reconstrói a teoria crítica da sociedade a partir de uma teoria da comunicação.
Habermas* começa seu livro afirmando a pretensão de fundamentar e construir uma teoria crítica da sociedade delineada como uma teoria do agir a partir de três complexos temáticos: trata-se de ancorar a comunicação numa teoria da racionalidade que enfrente as reduções sistêmicas da racionalidade cognitivo-instrumental, ou seja, a racionalidade típica dos sistemas econômicos e dos sistemas políticos tradicionais, como os partidos e os Estados. O segundo complexo temático examina a sociedade segundo dois paradigmas: o sistêmico e o do mundo vivido* (Lebenswelt). Considerar a sociedade como sistema implica examiná-la, a partir da teoria dos sistemas (Parsons, Luhmann*) do ponto de vista da reprodução de suas estruturas sistêmicas que atuam para conservar limites (dos partidos políticos, do governo e da administração, do mercado e das forças produtivas, das fronteiras dos Estados, do aumento do poder e da autonomia do sistema etc.) e com vistas na consecução de metas bem definidas, cuja busca é examinada a partir de controles instrumentais. Considerar a sociedade como mundo vivido implica uma perspectiva fenomenológica, com atenção às instituições normativas, e não aos aspectos sistêmicos de condução, governo e controle. Para a sociedade, subsistir como sistema importa definir objetivos e estratégias a partir de uma racionalidade* estratégica, em que a função de controle do sistema é fundamental: ela examina as variáveis do ambiente complexo em que se insere o sistema, de modo a investigar o que o sistema deve fazer para subsistir e crescer. O sistema realiza leituras selecionadas do ambiente: é preciso realizar um sensoriamento constante do ambiente para decidir as direções estratégicas a seguir, de modo que o sistema tenha sucesso em relação a suas metas. Do ponto de vista do mundo vivido não é isso que importa, pois aqui a questão normativa é que conta, ou seja, os aspectos simbólicos, ligados à linguagem*, aqui considerada do ponto de vista do diálogo intersubjetivo.
A teoria da ação comunicativa é uma crítica da filosofia da consciência, considerando a unidade social não mais como a mônada do sujeito* que conhece o mundo, mas a dupla dialógica Eu-Outro, em que um torna discursiva suas pretensões de validez (eu digo que tal ideia é válida) diante do outro, que responde com um sim ou um não a tais pretensões, tornando a relação a dois reflexiva (eu aceito ou recuso o que você diz, por tais e quais razões).
Essa construção habermasiana faz a crítica de uma sociologia positivista e objetivista, a partir de um enfoque fenomenológico e hermenêutico, em que a filosofia é construída como vigilante e intérprete da linguagem. Aqui o sentido* é a categoria mais importante. Os sujeitos dialógicos conversam sobre as situações problemáticas de seu mundo vivido, de modo a solucionar os problemas práticos de suas vidas e nessa direção não se orientam por uma racionalidade instrumental, objetivista, mas pela busca do entendimento, sem que um se torne meio para o outro. Falar em ação
implica, portanto, recusar a descrição da linguagem a partir da categoria de comportamento
. O paradigma não é, portanto, o do organismo que se adapta ao seu ambiente como na teoria sistêmica, mas o da ação orientada por regras e normas no campo social*. Dentro de uma situação de comunicação os agentes não se colocam como observadores, mas como intérpretes, como seres dialógicos que buscam entender-se acerca de algo no mundo.
A teoria habermasiana coloca, assim, uma dicotomia para entender o social: de um lado, a sociedade funciona a partir da racionalidade estratégica/instrumental, em que os agentes buscam atingir metas e fins do sistema, para mantê-lo e torná-lo mais bem sucedido; de outro, a sociedade precisa se reproduzir simbolicamente, como mundo vivido em que todos os falantes estão imersos desde seu nascimento. O mundo vivido é uma espécie de inconsciente* cultural, que abastece os falantes com formas linguísticas. O mundo vivido não é um mundo objetivo cheio de fatos e coisas, mas uma espécie de cipoal de formas de linguagem que abastece os falantes, algo assim como um baú de significantes. É um acervo de saberes atemáticos, pois não é possível discuti-los, na medida em que constituem um background (ou um cenário de fundo), a substância linguageira das comunicações. Nós entramos na linguagem para depois aprender suas estruturas na escola. Essa entrada
se dá ao modo da descompressão ontológica, como dizia Bento Prado Jr.: somos sugados para dentro dela, saímos da biologia para entrar no mundo simbólico. O mundo vivido é esse acervo de formas de linguagem em que nossos seres habitam.
A teoria da ação comunicativa é crítica ao propor mudança de paradigma objetivista dominante na teoria da sociedade, de modo a pensar uma mudança de eixo teórico. Há uma tendência no capitalismo tardio de colonização do mundo vivido* pelo sistema, em que toda a cultura tende a se tornar mercadoria, até mesmo a arte. Pensar a teoria social a partir da ação comunicativa é propor uma redução de colonização em certos âmbitos de ação. Não se trata de fazer projetos de terceiro setor para ações comunicativas, pois isso implicaria torná-las objetivas, o que as reduziria a uma perspectiva instrumental (sistêmica). As críticas usualmente dirigidas à teoria da ação comunicativa seguem em duas direções: a) Habermas cria uma duplicidade para entender a reprodução da sociedade (sistema e mundo vivido), mas não explica como os agentes da contra-hegemonia podem enfrentar o empuxo sistêmico à dominação e colonização da cultura; b) a ação comunicativa é idealizada, construída a partir de uma situação ideal e normal de fala, a partir do performativo de Austin*, ignorando-se nessa construção a ideia de ato falho, central para a psicanálise. Essa é a crítica que faz Derrida* em seu livro Ltd Inc.
Temas próximos: diálogo, intersubjetividade. Temas correlatos: Lorenzer, controle.
José Luiz Aidar Prado
acontecimentalizar
(s. masc.). Etim. Forma verbal de acontecimento. Ato ou efeito de acontecer, do latim contingescerem, aquilo que se pode dar, realizar. Filosofia: Procedimento metodológico que permite fazer acontecer ou dignosticar a matriz arqueológica do acontecimento, conferindo-lhe a concreção imanente para lhe apreender a transcendência. Acontecimentalizar é o momento de atualização de um acontecimento, é a apreensão perceptiva ou imaginária de suas intenções transcendentais. Metodologicamente, sua eficiência situa-se no ato de o pesquisador poder inserir-se entre um fluxo transcendente e uma atualização imanente do acontecimento.
Formalização e interpretação
Refletir sobre as características, possibilidades e limites da fenomenologia como manifestação epistemológica e metodológica do século XIX permitiu, a alguns notáveis intelectuais do século XX, como Foucault*, Deleuze*, Derrida*, Stengers, Prigogine, chegarem à análise e à evidência de algumas dimensões conceituais de profundas consequências para nossos dias. Nessas reflexões, sobressaem elementos que, no âmbito da aplicação metodológica da fenomenologia, suscitam controvérsias, porque são entendidos como elementos que constituem atributos aparentemente definitivos da ciência ocidental.
Entre esses elementos encontram-se duas crenças consideradas essenciais para a consecução do conhecimento: a formalização e a interpretação. Nos dois casos, entende-se que a razão está situada na origem do conhecimento. De um lado, considera-se que o sujeito é testemunha primordial da sua matriz racional e está autorizado a transformar suas inferências em projeções de uma consciência transcendental. Nesse conjunto, a prioridade absoluta do conhecimento cabe ao sujeito, à sua consciência transcendental e às suas intencionalidades. De outro, esse conhecimento necessita da formalização expressiva do discurso para projetar suas necessidades de sentido. Se a interpretação corresponde à necessidade de expor o sentido transcendental da consciência do sujeito, a formalização, de base logocêntrica, assume o papel de dar corpo expressivo àquela transcendência que encontra, no estruturalismo dos anos 1960, forte capacidade tradutora, capaz de legitimar a relevância da estrutura como continente epistêmico daquela consciência fundante, chegando ao ponto de pretender substituí-la por completo.
Nessa fenomenologia, são forças atuantes a transcendência da razão, a consciência fundadora do sujeito e a indispensável formalização do discurso, que possibilita a fala fenomenológica daquele sujeito. Entre o transcendental, o fundamento original e o enunciado como proposição significante constrói-se a fenomenologia que omite o domínio empírico que se relativiza na experiência, o impensado que surge sem previsibilidades, a formação discursiva que, refratária às totalidades enunciativas, não expressa, mas permite apreender as omissões do discurso que podem construir outro diagnóstico, mais arqueológico do que histórico.
Sobre o acontecimento e o acontecimentalizar
Da segunda metade do século XX até os nossos dias, produz-se um conhecimento que oscila entre as certezas transcendentais e frequentemente totalitárias da fenomenologia e suas decorrências metodológicas, e as bases empíricas de uma incerta arqueologia que, apenas sugestiva, é mais instigante do que confiável, embora procure a construção de sólida base crítica para justificar a rejeição das bases fenomenológicas, entendidas como depositárias das origens do conhecimento ocidental.
Ausentes dessas totalidades interpretativas e expressivas encontram-se dois conceitos que se aproximam na percepção empírica, mas se afastam nas suas características cognitivas e consequências epistemológicas. Trata-se do acontecimento* e do neologismo que nele se inspirou e se caracteriza por apreender as particularidades da empiria do acontecimento, a fim de ser possível atingir suas contribuições metodológicas. Esse neologismo passou a ser conhecido como decorrência do acontecimento, mas está voltado para as características do acontecimentalizar.
Embora os dois conceitos se relacionem, é possível salientar determinados aspectos do acontecimento que se definem ou salientam à medida que surgem relacionados ao acontecimentalizar, que tem por função iluminar as características epistemológicas e decorrências metodológicas do próprio acontecimento.
O acontecimento surge como manifestação única que, sendo imanente, é uma singularidade que se concretiza como marca de um fluxo de possibilidades transcendentes. Enquanto traço imanente salientado por Deleuze* ("A imanência, uma vida..."), a percepção do acontecimento é, de um lado, obrigatoriamente empírica, e, de outro e através daquela empiria, algo que detalha a emergência de uma atualização que, nas suas características, permite avaliar o plano de possibilidades transcendentais que lhe deu origem. Para Deleuze, o acontecimento como atualização de um fluxo de potencialidades virtuais, constitui o traço que permite distinguir a diferença entre atualização e realidade, e circunscreve a atualidade empírica do acontecimento no panorama da arqueologia que, histórica, supera a simples percepção descritiva da fenomenologia. A percepção do acontecimento está dada no plano imanente mas, sem prescrições de necessidade transcendentais ou objetivas, é uma simples possibilidade de vida. O acontecimento não se impõe, mas deixa-se surpreender na ordem da manifestação discursiva verbal ou não, que nas duas manifestações constitui sua única e decisiva regularidade, sua única materialidade.
Como singularidade, o acontecimento é a própria diferença (Derrida, A escritura e a diferença) que supera a repetição, é a singularidade que supera a ordem e a hierarquia mas que, exatamente por isso, expõe o caráter prescritivo e coercitivo que elas procuram manter para serem e se manterem fixas e permanentes. Portanto, o acontecimento é, sobretudo, um proscrito que faz a diferença, embora seu tempo tenha a fugacidade de um momento de surpresa, um momento que faz do presente o seu tempo e do infinitivo sua única modalidade verbal de sobrevivência. Sem história que se registre, esse infinitivo é uma escritura não escriturável, um neutro com possibilidade de se tornar um traço a ser resgatado pelo acontecimentalizar arqueológico. Sem causas ou consequências, o acontecimento não tem origens imediatas ou identificáveis nas origens históricas, mas é simples acaso disponível ao discernimento metodológico do acontecimentalizar.
O acontecimentalizar é uma modalidade de análise da história tendo como eixo sua dimensão arqueológica, não como estabelecimento das suas origens ou causas, mas, ao contrário, superando qualquer causalidade, ocupa-se em diagnosticar as condições que, embora históricas, não determinaram, mas possibilitaram sua emergência. Ele procura, na história, a manifestação de uma regularidade que, apreendida pela atenção relacional, permite evidenciar outro - embora apenas possível - percurso histórico. Nesse diagnóstico que Foucault aproximou da operação filosófica (em A ordem do discurso), é mais consequente apreender a emergência do que suas causas que, apagadas pelo tempo, surgem sempre embaçadas por muitas origens que, na quantidade, deixam de ser relevantes. Nesse diagnóstico, está a tarefa primordial e inicial do acontecimentalizar, que se compromete definitivamente com o empirismo que cerca o diagnóstico do acontecimento. Desse modo, o acontecimentalizar é o procedimento metodológico que permite fazer acontecer/dignosticar a matriz arqueológica do acontecimento, conferindo-lhe a concreção imanente que permite apreender sua transcendência. Do ponto de vista epistemológico, o acontecimento se atualiza através do acontecimentalizar, que passa a ser responsável pela apreensão perceptiva e/ou imaginária das próprias intenções transcendentais do acontecimento que se deixa apenas surpreender, pois depende do acontecimentalizar para se atualizar. Nesse sentido, a eficiência metodológica do acontecimentalizar está em colocar-se, de modo interessado, entre o que pode emergir de um fluxo transcendente e a atualização imanente no acontecimento.
Entre o científico e o não científico
O acontecimentalizar é genuína operação relacional que, na vaga e incerta percepção do acontecimento, não pode prescindir de certa capacidade imaginativa, capaz de preencher as lacunas ou os poros que subjazem à emergência imanente do acontecimento como atualização de uma estranha realidade transcendente, apenas possível. Essa capacidade imaginativa é definida por Isabelle Stengers (A invenção das ciências modernas) como ficção que, indo além da neutralidade do acontecimento, se permite especular, propor hipóteses que vão além das certezas do sujeito do conhecimento para constituir ou construir fronteiras cognitivas entre os acontecimentos e, dessa forma, estabelecer o território inventivo, mas incerto da ciência moderna. Stengers não duvida em apresentar essa construção ficcional do território científico como uma jurisdição ou uma política que confere à ciência a possibilidade de criar um espaço de diferenças entre o científico e o não científico. Essas diferenças propõem à ciência um campo de indagações que lhe pode permitir superar o poder de saber, para relativizá-lo e afastá-lo de qualquer pretensão positivista.
Sob a égide da ficção ou da invenção, se o acontecimento só é conjugável no infinitivo porque seu único tempo é o presente, o acontecimentalizar supera toda a contiguidade que demarca discriminações hierárquicas de posições, espaços ou tempos e seu discurso é da ordem do contínuo.
Sobre o tempo e o espaço no acontecimentalizar
Embora depois dos anos 1970, Foucault tenha superado o interesse pelas dimensões dos enunciados e pela ordem do discurso, que haviam orientado sua atenção desde sua inicial filiação ao estruturalismo, e substituído aquela ordem pelas estratégias dos dispositivos administrativos da ordem e do poder, ele continuou a identificar o acontecimento como emergência de um discurso em tempo descontínuo. Com esse predicativo procurava expressar a singularidade e a simples possibilidade que caracterizam o acontecimento.
Entretanto Deleuze (A dobra. Leibniz e o barroco), ao contrário de Foucault, insiste em não confundir dimensões próprias do tempo com aquelas do espaço. Desse modo, se contínuos e descontínuos dizem respeito ao tempo, contiguidade e paralelismos dizem respeito ao espaço e não podem ser confundidos. Desse modo, não se pode considerar a emergência do acontecimento como espaço de um imprevisto, com a contiguidade que caracteriza a descontinuidade do sintagma discursivo, ou seja, contiguidade discursiva não se confunde com descontinuidades temporais, ao contrário e como singularidade surpreendente no tempo, o acontecimento não se limita nem se demarca como um descontínuo, mas é simples emergência que surpreende a continuidade própria do tempo e exige a operação metodológica do acontecimentalizar para se deixar flagrar e quase inventar e, através dele, surgir como uma descontinuidade surpreendente no contínuo do tempo.
Se na célebre aula inaugural proferida no Collège de France, em 2 de dezembro de 1970, Foucault afirma que o acontecimento é da ordem do discurso, através do acontecimentalizar ele rompe a sutura daquela ordem e surge como cesura, que permite flagrar os dispositivos estratégicos que subjazem à ordem, mas irrompem através dela e apesar dela. Entre acontecimento e acontecimentalizar surgem frágeis fronteiras quase ficcionais, mas rapidamente distinguíveis quando se compara* e relaciona a imanência do acontecimento com aquilo que, na história e através do discurso, se procura revelar ou esconder. Nesse sentido, o acontecimentalizar é o procedimento metodológico que ilumina o acontecimento e é inerente a uma epistemologia voltada para a investigação de incertas singularidades que, em relação, se tornam sugestivas regularidades.
Ante a dificuldade desse tempo paradoxal do acaso como contínuo sem previsibilidades ou periodicidades, Foucault não resiste e propõe outro paradoxo que se agrega ao acontecimento e ao acontecimentalizar, trata-se da proposição de uma teoria das sistematicidades descontínuas
(1970, p.58-59).
Na apreensão dessa sutil descontinuidade que conserva os traços da continuidade da sua transcendência, mas se atualiza em sistemas abertos e complexos, o acontecimentalizar procura escrever a arqueologia do acontecimento no movimento contínuo da história. Elabora-se outra episteme, não da história como sucessão de eventos, mas daquela que se escreve ao ir além dela e é capaz de apreender as transformações da história dos homens na ordem daquilo que se esconde, emergindo entre os acontecimentos e através deles. Entender a produção do conhecimento como um acontecimentalizar permite apreender a arqueologia das transformações da ciência que subjazem ao conhecimento como poder.
Temas próximos: epistemologia, metodologia, conhecimento, política, fenomenologia, arqueologia
Temas correlatos: história, discurso, dispositivos estratégicos, hierarquias de poder
Lucrécia D’Alessio Ferrara
acontecimento
(s.m.) Etim.: ato ou efeito de acontecer, do lat. contigescere ou contingescere, aquilo que pode se dar, se realizar.
Heráclito dizia que não há seres, que só há acontecimentos e fatos. O ser não passa de uma aparência de estabilidade recortada na ausência de substância do devir. É por esse ângulo que Heidegger* constrói sua teoria do acontecimento (Ereignis). Ele tem uma dimensão ampla, não é mera ocorrência trivial, mas aquilo que ainda pode nos salvar da perdição do alvoroço dos meros fatos
(Inwood, M.). Pelo Acontecimento, surge do ser um si próprio
, que já não tem nada a ver com o ressurgimento da metafísica*. Derrida* chama a atenção aqui para o fato de o ser neste caso instalar-se no movimento, surgir do acontecimento, este lhe dando acolhida; o ente desfaz-se e só permanece o "processo sem fundo do Ereignis".
Mesmo a técnica*, lugar do império da razão e da racionalidade*, pode permitir o Acontecimento. Quando Heidegger fala de acontecimento, ele está pensando também numa forma de o homem apropriar-se
dele. Nos primórdios, na construção da metafísica, esta satisfaz-se com o ente que vê diante de si, ente da pura presença
, desconsiderando que além de seu aparecer simples diante de nós há toda uma história escondida, uma roda do mundo
. Apropriarmo-nos desse saber, realizar o acontecimento, esse movimento do mundo
, nos permite enxergar, além da técnica, algo iluminador.
Para Merleau-Ponty*, o acontecimento remete necessariamente à temporalidade, ao nosso momento, ao aqui e agora. Não há acontecimento no mundo, ele se constitui a partir do jogo de fios, da poeira de fatos, de todos os componentes fortuitos e estruturais ocorridos num momento específico. Esses fios
são os mesmos que Deleuze* chama de singularidades
. Trata-se de um jogo paradoxal entre transcendência e imanência; segundo ele, devemos estar abertos a fenômenos que nos ultrapassam, mesmo que estes só existam quando nós os retomamos e os vivemos como presença para nós mesmos.
Jean-François Lyotard* diz que o Acontecimento está sempre num lugar vazio
. Ele não se dá no corpo próprio
, de Merleau-Ponty, mas no espaço vazio aberto pelo desejo. O acontecimento, em Lyotard, seria uma doação
, vem como algo que me é entregue, não algo que eu reconheça ou compreenda. A vontade de Cézanne, para ele, é que a montanha familiar desapareça e apareça em lugar diferente daquele onde o olho espera e assim possa seduzir. O visível, assim, diria para isso Lyotard, não se liga ao Eu-Tu da língua, mas ao id do desejo.
Apesar disso, Lyotard mantém o espírito da alteridade* que conhecemos em Levinas*: o Acontecimento, para ele, é um dom não integrável. Ele critica Merleau-Ponty dizendo que, para este, o acontecimento é absorvido, percebido, integrado no mundo. Em última análise: será sempre passível de compreensão, reflexão, conhecimento. Em oposição, Lyotard acredita que o que faz Cézanne e sua montanha é uma doação, algo que não busca reabsorver o acontecimento, que não busca recuperar o Outro no Mesmo, mas mantê-lo em seu estranhamento.
Ludwig Klages* também tem seu conceito de acontecimento. As coisas, para ele, realizam-se no espaço e no tempo e são portadoras de um componente dinâmico, sempre mutante, denominado vivência ou acontecimento (Geschehen), que atua sobre nós como uma espécie de imagem que nos impacta, que nos surpreende. Acontecimento, aqui, como algo que me acomete, é diferente de Heidegger (algo que eu fico esperando que aconteça). Eu, em princípio, não realizo nada, mas participo de um mundo onde as coisas acontecem e me atravessam. Um acontecimento, em Klages, tem um aparecer característico enquanto unidade de múltiplas determinações (fios de Merleau-Ponty e de Proust). Ele tem sobre nós um efeito mágico que nos faz envolver na cena, metamorfosear nela. Aí o acontecimento toma a forma da imagem originária
, conceito este incorporado por Walter Benjamin* em sua obra.
Deleuze constrói sua teoria do acontecimento a partir dos estoicos*. O universo, segundo eles, é formado por um plano profundo do ser (dos corpos) e um plano superficial, o dos fatos e acontecimentos, que constitui a multiplicidade sem fios e sem vínculos dos incorpóreos*. Para Deleuze, é neste último plano que se instala a vida, a pulsação viva de tudo. É o mesmo que o plano de imanência*, que opera com a vitalidade dos processos, com o movimento interno permanentemente renovador e transformador, com a supressão de qualquer indício de estática ou de consolidação. Imanência é vida. Em toda a sua vida e em toda a sua obra, Gilles Deleuze não buscou outra coisa senão o acontecimento. Todo o seu tempo passou escrevendo apenas sobre isso.
Uma batalha é um acontecimento, diz ele, que pode ser visto como verdade eterna
e se distinguir das ocorrências temporais singulares, se ela se repetir sempre de diferentes maneiras e cada historiador, jornalista ou cronista captá-la distintamente. Quando Stendhal, Victor Hugo e Tolstoi a descrevem, esta sobrevoa seu próprio campo, será sempre neutra
em relação às descrições, às diferentes realizações de cada época. Nós, enquanto atores no mundo, diz ele, queremos o Acontecimento, procuramos nele captar a verdade eterna
. Posso aprisionar um acontecimento na sua ocorrência passageira, por exemplo, descrevendo uma batalha, uma guerra, uma insurreição; contudo, a contraefetuação* o liberará novamente.
Os escritores normalmente reportam-se a fatos triviais, jornalísticos, não os transcendem, buscam nas obras reclamar da justiça, da moral etc., prática essa que, segundo Proust, carece de genialidade, quer dizer, de instinto. O artista, pelo contrário, deve ouvir seus instintos. Os signos desse livro nos são desconhecidos, jazem em nosso inconsciente*. A verdadeira arte não passa da tradução do livro de signos do mundo e de nós mesmos
. Se tomarmos, como diz Deleuze, o Acontecimento como um neutro, como algo que está acima das circunstâncias, verbo no infinitivo
, diferente de seu uso corrente, flexionado, entenderemos o que o escritor está dizendo. Acontecimento como passagem de uma dimensão a outra. Aqui tornamo-nos homens liberados da ordem do tempo
(Proust).
Temas próximos: fatos, ocorrências. Temas correlatos: narrativa, jornalismo, literatura; acontecimentalizar
Ciro Marcondes Filho
acontecimento comunicacional
(loc. nom. masc.) Etim. Associação entre acontecimento e comunicação. Acontecimento: ato ou efeito de acontecer, do latim contingescerem, aquilo que se pode dar, realizar. Comunicação do lat. communicatio, estabelecer uma relação com alguém mas também com algo. O Acontecimento comunicacional difere do acontecimento para a filosofia, assim como do acontecimento jornalístico e do psicanalítico.
Trata-se de um dos conceitos principais da Nova Teoria da Comunicação*, segundo o qual o fenômeno comunicacional é analisado pelo aspecto da transformação e mudança. Esse foco dos fenômenos comunicacionais traz importantes consequências metodológicas e ontológicas sobre a própria natureza da comunicação: o encontro do plano pessoal e subjetivo com o grande plano da sociedade inteira e a comunicação como um fenômeno que somente pode ser estudado no instante da sua recepção, presença e interação, e jamais a posteriori. Filosofia: Nesse caso, o Acontecimento é diferente do evento. Os eventos ou fatos seriam aqueles de natureza ruidosa, escandalosa: casos naturais, sociais ou artificiais que ganham espaço nas manchetes dos jornais e tornam-se notícias estridentes e emergenciais. Já os acontecimentos filosóficos são de outra natureza: silenciosos e insensíveis, passando à margem de qualquer representação ou racionalização. O Acontecimento seria aquilo que provoca crise, um fato único e excepcional, imprevisível e jamais repetível. Seria aquilo que cai sobre a pessoa ou a sociedade. O Acontecimento provoca uma crise, altera a vivência. Depois dele já se é mais o mesmo. Deleuze* sustenta que essa experiência do Acontecimento não é apenas passiva como alguém que sofre a ação de um evento inesperado como a morte. Diante dele procura-se um sentido; retroage-se para tentar entender suas causas. Por isso, o Acontecimento pode ter um sentido individual, pessoal (a construção de um significado a partir da construção de uma sequência temporal privada). Para Jacques Derrida*, o Acontecimento remete a sintomas, a um plano metafísico independente das significações particulares atribuídas. O sintoma seria essa busca da verdade sobre o Acontecimento. Teoria da Comunicação: Para Marcondes Filho*, a ontologia da comunicação aproxima-se da noção de Acontecimento. Para o autor, os fenômenos comunicacionais são de uma ordem diversa da sinalização e informação. Se na sinalização ativa ocorrem estratégias de sedução, convencimento ou de criação de signos distintivos para chamar a atenção do outro e na segunda, na informação, dá-se o plano da escolha de signos que complementa um repertório pré-existente, na comunicação temos o Acontecimento que nos confronta, interfere na forma de ver o mundo e as pessoas. No cinema, por exemplo, podemos perceber essa diferença entre informação e comunicação na forma como espectadores selecionam um filme. Se o fazem a partir de opiniões de críticos, sinopses em publicações especializadas ou de recomendações de amigos que partilham de gosto estético semelhante estarão se informando sobre a película, no sentido de preservar seu controle sobre os conteúdos. Nesse plano, o espectador se encontraria no nível da informação, não buscando nada de novo ou dissonante na percepção do filme.
Ao contrário, o Acontecimento comunicacional corresponderia a um tempo de natureza diversa, incorpóreo e efêmero, do encontro entre a jornada da narrativa fílmica com a jornada pessoal do espectador. Nesse caso, o momento em que a recepção do conteúdo e da forma cinematográficos transformadas em sintomas pode criar rupturas ou fendas na temporalidade cotidiana. Em outras palavras, podem produzir acontecimentos no momento em que o sintoma materializado em produtos culturais como o filme vai se interseccionar com a própria trajetória de vida do espectador. E o resultado disso seriam experiências de quebra de limites, mal estar e mecanismos de defesa psíquicos em reação ao novo ou ao sintoma.
Temas próximos: acontecimento mediático, comunicação, razão durante, metáporo. Temas correlatos: acontecimento, evento, percepção
Wilson Roberto Vieira Ferreira
acontecimento mediático
(loc.m.s.) Etim. de acontecimento: ato ou efeito de acontecer, do lat. contigescere ou contingescere, aquilo que se dá, se realiza; mediático: derivado de medium, meio.
O acontecimento mediático refere-se ao evento que se destaca entre os fatos do cotidiano e tem repercussão nos media. É caracterizado por seu caráter de inusitado, de ruptura com a normalidade e por sua capacidade de despertar a atenção. Trata-se de uma interrupção no rotineiro mediante uma ocorrência extraordinária, seja um acidente, uma tragédia, um grande evento, um espetáculo, um escândalo ou assuntos relacionados a autoridades e/ou celebridades. Para que um evento possa ser considerado acontecimento, este deverá ser interpretado por um sujeito. Sendo assim, não basta apenas que algo de impacto aconteça, mas este acontecimento deverá ser percebido e interpretado por alguém como algo relevante. O acontecimento depende de um sentido de acontecimento para alguém (cf. Rancière, em Políticas da escrita). Para que o acontecimento seja selecionado e construído, deverá haver um potencial de atualidade, de sociabilidade e de imprevisibilidade (cf. Charaudeau, Discurso das mídias). Este movimento de construção do acontecimento é denominado como processo evenemencial (Charaudeau). O processo evenemencial exige o cumprimento de três etapas: a primeira, que algo ocorra e modifique o estado normal das coisas no mundo; a segunda, que um sujeito dotado de sensibilidade perceba esta mudança; a terceira: que este sujeito atribua sentido a esta mudança. Em seguida, o fenômeno deverá se transformar em discurso, para que finalmente se configure como acontecimento. O acontecimento se materializa, neste caso, em uma narrativa, em um discurso, ou seja, trata-se da interpretação dos fatos levada ao público. O jornalismo é um dos modos de enquadrar e regular os acontecimentos, pois tem como característica expor e depois promover discussões e soluções, por sua característica pública, conforme o conceito de acontecimento para Adriano Rodrigues. Os meios de comunicação, a partir de materialidades distintas, ou seja, por meio de diferentes linguagens (verbal, visual, sonora) levam os acontecimentos ao conhecimento do público. Contemporaneamente, os acontecimentos mediáticos resultam da onipresença dos meios de comunicação no cotidiano, portanto, são vários os agentes responsáveis pela produção de acontecimentos a serem destacados pelos meios de comunicação e compartilhados como experiência pelo público.
Temas próximos: acontecimento mediático; acontecimento noticioso. Temas correlatos: narrativas mediáticas; jornalismo.
Maria Cristina Carlos Silva e Tarcyanie Cajueiro Santos
acoplamento estrutural
Etim.: do fr. accouplement, acoplar-se, ligar-se, juntar-se. Estrutural: do lat. structura, disposição das partes em ordem num todo.
Acoplamento estrutural é um dos componentes do sistema, segundo a teoria dos sistemas e o construtivismo radical*. Os sistemas são, por definição, fechados, indetermináveis, realizam duas operações básicas, o fechamento operacional* e o acoplamento estrutural.
O acoplamento estrutural é a interface elementar que liga um sistema aos demais sistemas (ao mundo externo
). Trata-se do espaço de irritações*, isto é, dos sinais que cada sistema emite e é percebido pelo outro através do processo de observação. O ambiente jamais promove transformações ou mutação no interior dos sistemas. Cada sistema seleciona criteriosamente uma parte muito pequena e estreita do ambiente e é com esse que ele viabiliza o acoplamento.
A existência de um mundo externo provoca irritações no sistema, irritações essas que serão transformadas em informações internamente e tornar-se-ão estruturas. Somente de forma muito restrita as irritações provocam efeitos no sistema. O sistema seleciona acontecimentos* (reduz a complexidade externa ao plano do que lhe interessa) para aumentar sua própria complexidade (incorporando essa informação a si mesmo, construindo novas estruturas).
Irritações só são aceitas se tiverem a ver com as expectativas do sistema. É a partir destas que se configura uma perturbação e que faz com que a autopoiese reaja, identificando-a ou recusando-a por meio do código do próprio sistema.
Temas próximos: autopoiese, construtivismo, Luhmann, Maturana.
Ciro Marcondes Filho
adgnose
(s.f.) Etim.: ad
, do inglês advertising, publicidade, e gnose do grego gnosis, conhecimento. Abordagem publicitária contemporânea em que narrativas e de técnicas de linguagem audiovisual mobilizam, através de recursos retóricos, um conjunto de símbolos arquetípicos que serão traduzidos como motivações
; fonte de energia psíquica que é aprisionada e aglutinada em narrativas e imagens que configura uma nova ideologia do consumo, agora sintonizada com o imaginário do autoconhecimento e autoajuda. História das Religiões: O conceito de gnose acabou se identificando com o gnosticismo, conjunto de seitas sincréticas de religiões iniciatórias e escolas de conhecimento dos primeiros séculos da Era Cristã. A noção de gnose passou a ser o centro dessas doutrinas como um tipo especial de introspecção em que, a partir de um processo de autoconhecimento, o homem buscaria dentro de si elementos espirituais que o conectariam de volta à Plenitude. A psicologia profunda de Carl G. Jung seria um dos renascimentos desse imaginário gnóstico no século XX e a busca da compreensão da simbologia arquetípica uma forma atualizada da gnose. Comunicação: Desde o início a publicidade esteve envolvida com um aspecto mágico e fetichista. Karl Marx, em O Capital, já apresentava o capitalismo como uma fantasmagoria religiosa através da noção de fetichismo da mercadoria
. Toda a tradição da chamada Teoria Crítica da Sociedade, representada pela Escola de Frankfurt*, vai identificar esse fenômeno na indústria cultural* e a estética da mercadoria
na publicidade. Aqui, ainda temos essa dimensão mágica
ou mística
confinada na materialidade do produto.
Para disseminar esse verdadeiro simbolismo do consumo ao longo do século XX, a publicidade empregou diversos recursos de uma espécie de engenharia espiritual
: técnicas comportamentais (behaviorismo e táticas subliminares), psicológicas (motivação, gratificação, cognição, necessidades, etc.) e psicanalíticas (compulsão e dependência oral, narcisismo, voyeurismo, erotismo etc.). Mas o que há em comum nessas técnicas é que tanto o psiquismo ou quanto o subconsciente, continuem atrelados à existência física do produto.
No presente, a publicidade se propõe a um novo salto qualitativo paradoxal: fazer o produto desaparecer no anúncio, transformando-o muito menos em algo a ser adquirido do que a ser experimentado como evento, jornada, descoberta ou renovação pessoal.
Na adgnose temos a imaterialidade plena do produto. Para além dos valores e estilos de vida, algo mais profundo, no espírito, deve ser mobilizado: os arquétipos, quer dizer, símbolos do inconsciente coletivo aglutinadores de anseios, dúvidas e esperanças mais profundas da espécie humana, tal como sugerido pela psicologia profunda de Carl G. Jung. Vivenciar um arquétipo seria como conectar-se a uma rede simbólica do inconsciente coletivo
.
Carol Pearson, PhD em Psicologia e professora em Estudos sobre Liderança, da universidade de Maryland, EUA, vai encontrar, a partir dos estudos da simbologia arquetípica junguiana, doze modelos de simbologia inconsciente que,segundo ela, motivariam a espécie humana: inocente, explorador, sábio, herói, fora-da-lei, mágico, normal, amante, palhaço, protetor, criador, poderoso.
Na adgnose os arquétipos são traduzidas como motivações
, fonte de energia para serem aglutinadas e aprisionadas em narrativas e imagens que ponham em movimento um novo imaginário: o consumo muito menos como um ato de acúmulo e ostentação e mais como uma oportunidade de buscar uma espécie de atalho para a iluminação espiritual
.
O conceito de adgnose, não obstante ter seu lado crítico e irônico, de buscar a experiência espiritual (a transcendência) numa troca econômica (imanência), que pressupõe todo um sistema econômico e político que se impõe como um princípio de realidade, é, na verdade, uma forma de confinar as aspirações contidas nos arquétipos, transformando-as em dócil e resignada motivação para o consumo.
Temas próximos: gnosticismo, publicidade. Temas correlatos: persuasão, sedução, consumo.
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Adorno, Theodor Wiesengrund (1903–1969)
Dados bibliográficos: Adorno importa para os estudos em comunicação como o criador da teoria crítica da indústria cultural. Filósofo de formação, ele foi também especialista em música erudita, sociólogo e ensaísta. Depois de 1950, tornou-se um dos principais intelectuais públicos do seu país, passando a colaborar assiduamente em revistas culturais, além de conduzir programas de rádio e intervir em assuntos de interesse geral. Influenciado pelo jovem Gyorg Lukács e por Ernst Bloch*, Adorno logrou elaborar os termos de seu estudo da cultura bem cedo, compondo o método dialético hegeliano com a atitude crítica oriunda de Kant e Marx. Durante os anos 1920, ensaiou carreira de músico, voltando-se em seguida, porém, para a crítica da cultura (revista Anbruch, Viena).
Em 1931, tornou-se professor colaborador de filosofia da Universidade de Frankfurt. Conheceu então Max Horkheimer*, diretor do instituto de pesquisa social ali sediado, estabelecendo forte e íntima amizade que duraria para o resto da vida. Datam desse tempo suas primeiras monografias no campo da sociologia da música, área que se sentiu chamada a dar conta das formas de cultura popular em ascensão, como o jazz.
Sobre o jazz
(1936) e O fetichismo na música e a regressão da audição
(1938), polêmicos em seu tempo, como ainda hoje, o recomendaram como estudioso do que se chamava então de arte de massas, junto com seu amigo e interlocutor Walter Benjamin*. O momento era, todavia, então, todo novo, devido à ascensão do hitlerismo e a necessidade de intelectuais independentes, como ele, terem de abandonar a Alemanha. Incorporado como associado pleno no Instituto de Pesquisa Social, então instalado na Universidade de Columbia, Adorno transferiu-se de Oxford para Nova York, em 1938.
Nos Estados Unidos, conheceu, primeiro, como colaborador integrado em projeto de pesquisa coordenado por Paul Lazarsfeld*, o grande negócio do rádio e da música popular (Tin Pan Alley) e, depois, como refugiado intelectual europeu integrado à comunidade artística e literária nativa, o grande negócio do cinema (Hollywood). O contato, se não o choque, de sua formação erudita com os padrões da cultura de massas nesse país foi fator especialmente importante na elaboração de sua crítica à indústria cultural, redigida com a participação de Horkheimer para o volume Dialética do Iluminismo, publicado sob a forma de livro em 1947.
Durante esse período, empreendeu também vários estudos sobre a propaganda fascista e escreveu sobre a música no cinema, desenvolvendo abordagem em que à análise crítica dos fenômenos não falta a preocupação em apresentar ideias construtivas e sugestões práticas. A pesquisa sobre a personalidade autoritária, também dessa época, se originou de um projeto de estudo sobre o preconceito racial, em que até mesmo a feitura de um filme, tendo sua colaboração no roteiro, foi planejada. Quando de seu breve regresso aos Estados Unidos, entre 1953 e 1954, o autor, enfim, elaborou estudo de conteúdo sobre as novelas de televisão e um relatório de pesquisa mais extenso, sobre a coluna astrológica do Los Angeles Times.
De retorno à Alemanha desde 1950, Adorno assumiu a cátedra de filosofia na Universidade de Frankfurt, expressando-se várias vezes, porém, sobre a indústria cultural, através de comentários sobre a literatura de consumo, a linguagem do cinema, o lazer popular, o mundo da música e os programas de televisão. Além disso, coordenou vários projetos de pesquisa sobre a opinião pública e seus processos de formação, matéria sobre a qual deixou alguns ensaios, todavia ainda pouco conhecidos, mesmo entre os especialistas. No final da vida, o pensador, de referência intelectual, se tornou motivo de polêmica entre os militantes do movimento estudantil, envolvendo-se em episódios que lhe renderam indesejada publicidade e, segundo alguns, tiveram influência em seu súbito falecimento, ocorrido na Suíça, em 1969.
Obras principais: Dialética do esclarecimento (com Horkheimer) (1947); Filosofia da nova música (1949); Ensaio sobre Wagner (1952); Dialética negativa (1966); Teoria estética (1970).
Francisco Rüdiger
afecção/aferência
(s.f.) Etim.: afecção, do lat. afecctio, estado afetivo acompanhado de prazer ou dor. Aferência, relativo a aferente, do lat., que leva, que conduz a um órgão, que vai da periferia ao centro. Fenomenologia. A afecção é uma forma como o mundo se projeta em nossos sentidos. Neurologia. O sistema nervoso divide-se em aferente e eferente.
Locke nos diz que nada está no intelecto que não estivesse anteriormente nos sentidos
. Os sentidos fornecem dados e ao mesmo tempo são dados que constituem o intelecto. A transição entre o mecanismo sensor e o intelecto é classificado por Bergson* como afecção. Ou seja, uma afecção é todo e qualquer processo sináptico cerebral resultante de um estímulo aos nossos órgãos sensores. Para Bergson, o mundo nos afeta, nos irrita, e esses estímulos repercutem em nosso cérebro. Se retirados os mecanismos de afecção, ou o conjunto dos sentidos (se isso fosse possível), o sistema continuaria a existir, mas não teria um retorno de suas ações e assim entraria em colapso.
Utilizando os métodos da neurociência para se observar o sistema nervoso, é possível visualizar uma separação entre dois sistemas: aferente ou afectivo e outro eferente ou reflexivo. O primeiro é aquele em que os estímulos dirigem-se da periferia ao cérebro, são as afecções. O segundo faz parte de nossa reação ao mundo, é o sistema eferente, em que as informações são provenientes do cérebro, ou é o que Bergson chamava de reflexão.
Essa divisão do sistema nervoso entre aferente e eferente pode ser vista tanto no cérebro como em todo o sistema nervoso. Nossos sentidos informam ao cérebro um conjunto de dados brutos, que podem ser olfativos, degustativos, doloridos, viscerais, tácteis, sonoros ou visuais, com predominância destes dois últimos. Enquanto fornecem informações* provenientes de estímulos de que são receptores, nossos sentidos produzem afecções que, ao chegarem ao cérebro, serão processadas em córtices e encaminhadas através de sinapses, podendo estabelecer-se de forma duradoura, resultando em memória*.
Assim, as afecções, à medida que se repetem, produzem no cérebro um misto de percepção e memória. À medida que percebemos por diversas vezes, nossa percepção se torna memória. É por isso que Proust diz que as memórias nos são externas, que elas estão no mundo. Um exemplo disso são os objetos perdidos nas gavetas e que só nos voltam à lembrança quando os confrontamos num dia em que resolvemos esvaziar uma velha escrivaninha.
Para Bergson*, perceber é lembrar. Então, ao mesmo tempo em que percebo um objeto, eu também me lembro dele e posso me lembrar até mesmo do modo como sentia esse objeto. A lembrança dessa sensação, no entanto, não é uma sensação. Assim, posso perceber um mesmo objeto com sensações diferentes, diferentes vezes em que o percebo. Isso se deve ao fato de que nossas afecções não se restringem aos sentidos clássicos e que são mediáveis pela linguagem por nos parecerem externos, como os são o olfato, o paladar, a visão, a audição e o tato. Há também esse conjunto de sentidos que são ignorados e também nos afeta, como é o caso da dor, dos humores (vísceras), do equilíbrio, da sensação de si e da sensação térmica.
Temas próximos: percepção, sentidos, decodificador cerebral. Temas correlatos: fenomenologia, memória, cérebro, Von Foerster.
Marcio Antônio Rezende
aferência
k afecção
afeto
(s.m) Etim.: do lat. affectus, estado psíquico ou moral (bom ou mau), afeição, disposição da alma, estado físico, sentimento, vontade. Filosofia: conjunto de atos ou de atitudes como a bondade, a benevolência, a inclinação, a devoção, a proteção, o apego, etc. Psicologia: é definido como a subjetividade de um estado psíquico elementar inanalisável, vago ou qualificado, penoso ou agradável, que pode exprimir-se massivamente ou como uma nuança, uma tonalidade. Diferente do sentimento, que é dirigido para um objeto, o afeto centra-se no que é primariamente sentido.
A biologia, a filosofia, a psicologia já se debruçaram sobre os estudos dos afetos. Charles Darwin, biólogo e criador da teoria da evolução, no século XIX, ao estudar a expressão dos sentimentos* nos homens e animais afirmava que os afetos são um tipo de emoção*, na verdade, uma sensação prazerosa que desencadeia sinais habituais de prazer. No século XXI, Boris Cyrulnik, etólogo, neurologista e psiquiatra, acredita na importância do afeto para a biologia humana desde o nascimento. Para ele, um bebê ao nascer precisa receber carinhos por parte de sua mãe. Quando ele sai do líquido amniótico em que estava aquecido a 37ºC, sente frio, é devorado pela nova sensorialidade que o cerca e sente dor no peito ao respirar. É ai que a mãe o aquece, cerca de cheiros, de toques e sonoridades que ele reconhece, pois já os tinha percebido antes de nascer. O bebê é afetado pela mãe e sente ação desse afeto no seu organismo.
Espinoza, filósofo do século XVII, já falava a respeito dos afetos como ação de afetar. Ele compreendia os afetos como afecções do corpo*, assim como as ideias dessas afecções. Afecções são imagens ou marcas corporais que remetem a um estado do corpo afetado e implicam a presença do corpo afetante (o corpo que afeta). O afeto seria o processo de transição de um estado para outro. Através das afecções é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada não só a potência de agir do afeto mas também as ideias dessas afecções. Quando a potência de agir, por exemplo, é aumentada surge o sentimento* de alegria, quando diminuída, o de tristeza. É a potência que define a força de um afeto. A potência de agir varia em função de causas exteriores. O afeto é uma ação quando o sujeito é a causa de uma dessas afecções, e uma paixão quando ele é afetado. Para Espinoza, o corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras por corpos exteriores, por objetos, e cabe a cada ser humano julgar, de acordo com seu afeto, o que é bom e o que é mau para ele. Uma fotografia*, por exemplo, pode afetar um sujeito de diversas maneiras, seja ao trazer uma boa recordação, seja uma má lembrança; um cachorro é afetado pela presença do dono ao abanar o rabo de alegria ou mordendo-o, caso esteja com raiva; o cheiro de uma comida afeta o sujeito, seja despertando a vontade de comer, seja ignorando-a. Espinoza reconheceu a existência de apenas três afetos primitivos: a alegria, a tristeza e o desejo. Todos os outros afetos estão relacionados a esses três.
A contribuição de Espinoza é basilar para pensar os afetos na comunicação*. Por exemplo, quando há comunicação entre dois sujeitos, ambos são modificados, afetados pelo processo, é uma troca, uma partilha, uma ação de um sobre o outro. A comunicação pode ser equivalente ao processo de transição de estados a que Espinoza se referia. Um objeto, um signo, pode agir sobre um sujeito e modificá-lo, o estado do indivíduo é alterado e a comunicação acontece. A publicidade*, por exemplo, tem como principal objetivo afetar as pessoas, incitar o desejo e despertar alegria nos consumidores ao adquirir o produto.
Temas próximos: emoção, afetividade, sentimento. Temas opostos: razão, racionalidade, apatia. Temas correlatos: Espinoza.
Thiago Tavares das Neves
Agamben, Giorgio (* 1942)
Dados biográficos. Formou-se em direito na Universidade de Roma, em 1965, redigindo um trabalho sobre Simone Weil; participou dos seminários Le Thor, proferidos por Heidegger*, no final dos anos 1960, sobre Heráclito e Hegel. Posteriormente, instalou-se em Paris, dando aulas na Universidade de Rennes, seguindo, depois, para Londres, como bolsista do Instituto Warbug. Entre 1986 e 1993, foi diretor do Colégio Internacional de Filosofia, de Paris, ensinando, também, ao mesmo tempo em Macerata e Verona, até 2003, e, nos anos seguintes, até 2009, em Veneza, no Instituto Universitário de Arquitetura. Sua ocupação acadêmica atual é em Mendrísio, na Academia de Arquitetura, na Suíça. Antes de decidir-se não mais retornar aos Estados Unidos depois das medidas de segurança impostas por Bush após o 11 de Setembro, Agamben deu cursos de Berkeley, na Califórnia, a Universidade Noroeste, em Evanston. Grandes influências em sua obra exerceram Heidegger*, Benjamin* e Foucault*. Foi amigo de figuras eminentes da filosofia e das artes, como Pier Paolo Pasolini, Italo Calvino, Pierre Klossowski, Guy Debord, Jacques Derrida*, Antonio Negri e Jean-François Lyotard*. Autor especializado em política e filosofia, escreveu também sobre poesia, estética e literatura. Na Itália, trabalhou, até 1996, na publicação das obras escolhidas de Walter Benjamin, para ele um antídoto que lhe permitiu sobreviver a Heidegger
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Poesia e a Voz
Há algo que não pode ser falado nem escrito. É o inefável, o infalável
, que Agamben chama de Voz, a condição muda da língua
, experiência transcendental da infância, dobra entre o imaginário e o simbólico. Além dessa Voz, há, naturalmente, a voz. Para que aquela seja identificada é preciso suprimir esta, fazer valer o não conhecido do dito. No livro Linguagem e morte, Agamben levanta a questão da relação entre filosofia e poesia, perguntando se a poesia permite uma experiência com a linguagem diferente daquela da "experiência