História & Religião
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Sobre este e-book
História & Religião traz ao final uma "Pequena morfologia histórica da religião" que, afastando-se de conceitos tão problemáticos como "superstição" e "fanatismo", busca situar os historiadores no já secular debate sobre as crenças, práticas e instituições religiosas.
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História & Religião - Sérgio da Mata
Igualdade significa: poder ser diferente dos demais sem medo. Por isso sempre importa mais, aos seres humanos, a sua capacidade de ser peculiar que a sua capacidade de generalizar: sua competência para a diversidade. E toda universalização há de promover a diversidade ou não serve para nada.
Odo Marquard
Para o mestre Pierre Sanchis
Introdução
Ante o tema religião
há três atitudes possíveis. A primeira é a da certeza incondicional afirmadora. Podemos ilustrá-la com o exemplo do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, que respondeu a alguém que havia lhe perguntado se acreditava em Deus: Eu não creio, eu sei
.
A segunda atitude é a da certeza incondicional negadora. Nós a encontramos em Karl Marx, quando evoca os dizeres de Prometeu no prefácio de sua tese de doutorado: Numa palavra, eu odeio todos os deuses
. Para o jovem jurista, tal deveria ser o principal mandamento da filosofia, a sua sentença contra os deuses celestiais e terrestres que não reconhecem a autoconsciência do homem como a maior das divindades
.
A terceira atitude é a do lírico grego Simônides, cuja pitoresca história é relatada por Cícero em seu De natura deorum. Instado pelo tirano Hierion a dizer-lhe o que seria Deus
, Simônides pediu um dia para refletir a respeito. Quando Hierion o procurou no dia seguinte, o sábio disse-lhe que precisaria de mais dois dias. A cada nova investida, um edido de prorrogação maior era feito. Até que o tirano, evidentemente irritado, exigiu uma explicação. Simônides disse-lhe: Quanto mais eu penso sobre esta questão, mais obscura ela se torna
.
O leitor certamente terá percebido que, a rigor, as duas primeiras atitudes não diferem uma da outra. De nossa parte – gostaríamos de admiti-lo desde já –, agrada-nos mais a cautela de Simônides. Optamos por fugir, tanto quanto nos foi possível, das afirmações categóricas, das certezas inabaláveis. Um estudo sobre as relações entre história e religião, desde que queira ser honesto, será sempre um experimento. O que significa dizer que este livro deve ser compreendido como um esforço de reflexão. E como uma tentativa de formular perguntas, mais que de trazer respostas.
Pequena crônica da religião, hoje
A civilização corre um risco muito maior se mantivermos nossa atual atitude para com a religião do que se a abandonarmos
(Freud, 1974, p. 48). Desde 1927, quando estas palavras de Freud passaram ao papel, a situação das religiões no Ocidente se alterou dramaticamente. Mas não como ele imaginava em seu ensaio O futuro de uma ilusão. Sistemas de crença, seitas e igrejas não refluíram ante o avanço da ciência e da racionalização. A ilusão
religiosa passou a se servir, e cada vez mais, da técnica, de forma a ampliar sua influência. O mundo não foi desencantado. Talvez seja mais correto dizer, à luz da experiência das últimas décadas, que aquela figura invocada pelo pai da psicanálise, o deus logos
, é que se encontra numa situação particularmente difícil na atualidade.
Todavia, há um pequeno e significativo acerto na profecia desmentida de Freud, ali mesmo onde preferiríamos que ele tivesse errado. O preço pago pela manutenção da religião (e das instituições religiosas) nas sociedades contemporâneas parece ter sido também, em grande medida, o do enrijecimento e o da indisposição crescente para o diálogo. A religião voltou a ser um fator de tensão e de conflito. Talvez seja esta a incômoda verdade por detrás da tese de Nietzsche segundo a qual Deus não pode sobreviver sem os insensatos
.
Alguns exemplos de nossa história recente reforçam esse diagnóstico.
O século XXI se iniciou em 11 de setembro de 2001, sob o signo do maior atentado terrorista da história, o ataque às torres gêmeas do World Trade Center. É bem sabido em que medida a religião desempenhou ali um papel central. A descoberta de documentos pertencentes a um dos envolvidos demonstra – ao contrário do que foi divulgado pelo governo norte-americano – que se realizaram diversas cerimônias de purificação, recitações e preces antes dos ataques. Ao seu modo, aqueles eram homens perfeitamente pios
(se é que o conceito de piedade
pode sobreviver a tais extremos). O 11 de setembro teria configurado o ponto alto daquilo que o aiatolá Fadlallah, do Líbano, denominara, numa expressão magnífica, a rebelião contra o medo
(Kippenberg, 2005, p. 29-58).
Quatro anos depois, a pacata Dinamarca viu-se no epicentro de uma crise diplomática de grandes proporções. O pivô da crise, o jornal conservador Jyllands-Posten, publicara 12 caricaturas de Maomé consideradas ofensivas pela comunidade mulçumana. No dia 19 de outubro, embaixadores de dez países (entre eles Egito, Irã, Paquistão, Arábia Saudita e Turquia) solicitaram uma audiência ao primeiro ministro norueguês Anders Rasmussen para discutir o caso. Rasmussen recusou-se, alegando não poder limitar a liberdade de expressão e de imprensa. Sua negativa foi interpretada em inúmeros países islâmicos como uma demonstração de descaso e produziu consequências imediatas: Arábia Saudita e Líbia chamaram seus embaixadores de volta, no Paquistão e na Faixa de Gaza fizeram-se manifestações de protesto, e até mesmo uma pena de morte chegou a ser decretada contra as tropas da Dinamarca estacionadas no Iraque. No Egito, na Arábia Saudita e no Kwait falou-se, e em alguns casos se praticou efetivamente, um boicote contra produtos de empresas dinamarquesas.
A tensão entre o mundo islâmico e o cristão voltaria a manifestar-se por ocasião de uma conferência do papa Bento XVI feita na Universidade de Regensburg, em 2006. Discorrendo sobre Fé, razão e universidade, o papa evocou palavras do imperador bizantino Manuel II Palaeologos a um sábio persa num debate travado no ano 1381: Mostrai-me o que Maomé trouxe de novo, e lá encontrareis somente coisas ruins e desumanas, como isto que ele prescreveu, de se difundir a fé que professava pela força da espada
.1
As declarações do pontífice geraram nova onda de protestos no mundo mulçumano. A Conferência Islâmica manifestou-se contra o que entendeu ser uma campanha
do Vaticano. A principal autoridade do clero turco, Ali Bardakoglu, exigiu uma retratação. O parlamento paquistanês votou uma resolução afirmando que as declarações de Bento XVI feriam os sentimentos dos mulçumanos e aumentavam o fosso entre as religiões. O secretário do Conselho Geral dos Mulçumanos Alemães declarou numa entrevista que lhe custava acreditar que o papa visse justamente na relação com a violência a fronteira entre o islã e o cristianismo
.
É certo, em todo o caso, que as variedades contemporâneas de experiência religiosa não se resumem a produzir conflitos. Nos últimos anos do século XX, em face da utilização cada vez mais consciente (e competente) dos meios de comunicação de massa, a religião produziu espetáculos
de dimensões até então inimagináveis. Basta pensar nos megafunerais do aiatolá Khomeini e do papa João Paulo II. Pense-se ainda na tournée mundial do Dalai Lama, realizada há uma década. No Brasil, figuras como o médium kadercista Chico Xavier gozaram de popularidade mesmo entre católicos. O carisma religioso deixa, assim, de ser apenas rotinizado: as tecnologias modernas de comunicação parecem tê-lo levado a seu ponto máximo de potencialização. Daí que as Igrejas, sobretudo algumas denominações protestantes e a católica, tenham passado a investir pesadamente em mídia. Assistimos em nossos dias não apenas à proliferação da mídia religiosa eletrônica, mas, o que é mais grave, a uma verdadeira confessionalização de algumas das principais redes de televisão no Brasil.
Diante de tudo isso, deveríamos falar em atualidade da religião ou de persistência
do maravilhoso na modernidade? É preciso lembrar que também as práticas mágicas continuam demonstrando, ao contrário do que se supunha, a mesma vitalidade desfrutada em épocas passadas. Nas grandes cidades brasileiras se oferecem, a cada esquina, serviços de orientação espiritual
capazes de resolver quaisquer problemas pessoais. A religião intelectualizada de um Friedrich Schleiermacher ou a mística arrebatadora de Santa Teresa de Ávila tornaram-se ainda mais improváveis. O que define a religião de massas no mundo contemporâneo é, em grande medida, a sua dimensão terapêutica. A salvação
deve dar-se aqui e agora – por meio da cura.
Mesmo um ex-presidente da República afirma, publicamente, acreditar em fantasmas: eu estava com um repórter na sala, e uma porta se abriu sozinha. [...] O palácio [da Liberdade] é povoado por espíritos, mas eles expandem energia positiva e contribuem para o bom estado de ânimo dos governadores
(Itamar Franco, Veja, 18/12/2002).
Enquanto George W. Bush anunciava sua cruzada sagrada contra o eixo do mal
, chefes de Estado africanos diziam-se enganados por feiticeiras.
O presidente do Zimbábue, Robert Mugabe, admitiu a seus ministros que pagou uma mulher que dizia ser bruxa e prometia produzir gasolina a partir de pedras. Mugabe pagou a suposta feiticeira com dois bois e três búfalos. Após perceber que havia caído em um golpe, ele mandou prender a mulher sob acusação de fraude (O Estado de S. Paulo, 17/11/2007).
Tais relatos, por anedóticos que sejam, nos ajudam a perceber que a variedade dos fenômenos que o historiador da religião tem diante de si é muito mais ampla do que normalmente se admite. Daí que o conceito de religião
aqui adotado seja assumidamente flexível e plural. A razão para isso não é apenas teórica – voltaremos a esse ponto no momento adequado –, é igualmente de ordem prática: um conceito demasiado estreito de religião
não é compatível com a lógica que rege uma sociedade pluralista.
Ante o avanço dos conflitos religiosos nas últimas três décadas, amplia-se o coro daqueles para os quais a religião faria melhor em limitar-se à esfera do privado (Rorty, Vattimo, 2006). Não são poucos os que têm utilizado os meios ao seu dispor para fazer frente a esse aparente retorno
do sagrado de que falamos anteriormente. No campo da pesquisa histórica, nomes como o brasileiro Luís Mott e o alemão Karlheinz Deschner escrevem o que se poderia chamar de uma história antirreligiosa da religião. Às vezes, quase sempre, uma época profundamente religiosa tem seu corolário na crítica radical do religioso.
As últimas aliadas dessa reação contra a religião têm sido as ciências naturais. O renomado geneticista Richard Dawkins publicou um livro sobre o delírio
da crença no sobrenatural, obtendo extraordinário sucesso (Dawkins, 2007). Seus argumentos não parecem ter avançado muito desde os tempos do zoólogo Ernst Haeckel (1834-1919). À fé cega de alguns, opõe-se uma fé igualmente cega nas possibilidades da ciência e da razão. Ainda assim, os argumentos de Dawkins são considerados convincentes por setores da opinião pública – não obstante se mantenham alheios a praticamente tudo o que o estudo sistemático das religiões produziu nos últimos cem anos.
Tal reação antirreligiosa é uma atitude até certo ponto compreensível. Violência e terrorismo religiosamente motivados, espírito de cruzada ou puro e simples obscurantismo (a condenação do Vaticano ao uso de preservativos num mundo onde campeia a AIDS, para mencionar apenas um exemplo) são um pesadelo para todo aquele que se acreditava vivendo numa sociedade pautada pelos princípios racionalistas e críticos legados pelos filósofos gregos e pelo Iluminismo.
Ao fazermos este brevíssimo esboço dos (des)caminhos da religião no presente, tocamos apenas a superfície do problema. Não temos a pretensão de formular uma resposta
ou de apontar saídas, se é que se pode chegar a tanto. O autor dar-se-á por satisfeito caso seja capaz de demonstrar o caráter enganoso de toda explicação demasiado simples, demasiado rápida, quando se trata de religião.
Em que pese o descrédito generalizado do ideal de objetividade
, nenhum senso de moderação e equilíbrio é demasiado quando se trata de temas como os que pretendemos abordar aqui. Mais que a política, a religião parece ser um estorvo para amplos setores da comunidade científica: como o mundo seria melhor se ela não existisse!
. Um belo sonho, como o de Freud mencionado há pouco. Isso nos traz à memória a figura arquetípica do Dr. Vergerus, personagem do filme O rosto, de Ingmar Bergman. Vergerus é obcecado pela ideia de desmascarar Albert Emanuel Vogel, um misto de mago e ilusionista. Para atingir seu intento, ele reluta em deixar que Vogel deixe sua cidade. O médico pretende submetê-lo a um rigoroso escrutínio e, assim, desmascará-lo, pois representa o que eu mais desprezo: o inexplicável
.
Não é esta a tarefa que se coloca à moderna história das religiões, afastada que está tanto das pretensões apologéticas quanto das desmistificadoras. Ela quer – o que já é um desafio suficientemente grande – compreender e explicar geneticamente a religião nas suas relações com a cultura e a sociedade.
Compreender a religião: mas como?
Sem ter pretendido oferecer um retrato das "variedades de