Conformismo e resistência: Escritos de Marilena Chaui, vol. 4
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Sobre este e-book
Este volume apresenta um caso paradigmático do rico diálogo travado pela obra de Marilena com as ciências sociais brasileiras a partir de uma questão fundamental: o que é a cultura popular e qual forma específica ela assume em nosso país? O ponto mais alto dessa incursão foi Conformismo e
resistência. Aspectos da cultura popular no Brasil, aqui republicado junto a diversos ensaios, depoimentos, conferências e artigos de jornal produzidos nas décadas de 1970 e 1980. No conjunto, o material, especialmente revisto para esta edição, reconstitui uma investigação aprofundada em que a filósofa se esforça em apreender a originalidade da cultura popular como uma lógica ou um saber particulares, que, ao mesmo tempo em que adere ao status quo e reproduz o autoritarismo das elites, também é capaz de opor-se ao sistema e expressa o desejo de liberdade próprio das classes populares.
Pela primeira vez, esses textos aparecem reunidos num único volume, o que permite aos leitores descobrir (ou redescobrir em toda a sua envergadura) o quanto o trabalho da filósofa Marilena Chaui pôde propor uma interpretação original de um dos aspectos mais importantes da sociedade brasileira: a sua cultura popular, tal como se apresenta com suas peculiaridades.
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Conformismo e resistência - Marilena Chaui
Marilena Chaui
Conformismo e resistência
ESCRITOS DE MARILENA CHAUI
Volume 4
ORGANIZADOR
Homero Santiago
Apresentação
Homero Santiago¹
A ambiguidade tem péssima reputação. O ideal é que tudo seja nítido e unívoco, sem margem a ambivalências. Os ditos populares o decretam: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa
; tudo tem de ser preto no branco
porque, no final das contas, é 8 ou 80
e ou vai ou racha
. Mesmo quando ambiguidades teimam em persistir, é de bom tom empenhar-se em suprimi-las logo, pois, no fundo, nada seria realmente ambíguo. É até possível que de noite todos os gatos sejam pardos
, mas convém saber que isso resulta apenas da confusão ocasionada pelas trevas. Feita a luz, dissolvido o breu, devem clareza e univocidade, de direito, imperar.
Ora, esse horror ao ambíguo é contrabalançado de uma ponta a outra pela reflexão filosófica de Marilena Chaui. Um de seus aspectos mais notáveis, ao invés, é a capacidade de apreender ambiguidades, levá-las a sério e, assim, renovar a compreensão de certos objetos ou assuntos que antes, sob o peso da consideração unilateral, frequentemente negativa, não chegavam a revelar-se em sua inteireza, em sua positividade. Arriscaríamos dizer que está aí, nesse procedimento contumaz, um dos mais ricos ensinamentos que a filósofa colheu da aliança entre dois pensadores de sua predileção. Na escola de Espinosa, ela aprendeu o respeito estrito aos objetos sobre que se debruça, a exigência de distinguir camadas de preconceitos que se costumam sedimentar sobres eles, com vistas a uma consideração rigorosa que nada ceda à tentação de medir o objeto pelo que ele deveria ser mas não é, isto é, negativamente. Já de Merleau-Ponty terá vindo o destemor de que esse entendimento total desemboque na identificação de ambiguidades reais, a coragem de dá-las por incontornáveis na medida em que constitutivas do próprio objeto, cuja apreensão passa a cobrar um alargamento da própria racionalidade em ação.
Por que isso tudo nos interessa aqui? Porque muito provavelmente com relação a nenhum outro tópico abordado por Marilena em sua obra essa lição de método tenha sido seguida tão à risca e a categoria da ambiguidade tenha atuado de modo tão decisivo e inovador quanto na investigação - por ela empreendida nas décadas de 1970 e 1980, para ficarmos no âmbito dos textos aqui apresentados - sobre a cultura popular e seu ambiente natural (a luta de classes). As tortuosidades necessárias à definição do objeto, as escusas relações entre saber e poder, as escaramuças da mistificação interesseira, os preconceitos disseminados, as violências perpetradas, tradições e inovações – em suma, o enigma de uma cultura ou um saber que tanto resiste quanto se conforma; ora faz um, ora faz o outro, às vezes faz um exatamente para fazer o outro, sempre ambiguamente. Eis a própria condição de apreensão positiva do objeto e portanto de sua verdade: conformismo e resistência. E daí nos ter parecido natural atribuir esse título genérico, emprestado a um já clássico estudo publicado em 1986, ao conjunto dos textos aqui pela primeira vez reunidos e que busca reconstituir um longo trabalho de investigação que se inicia na primeira metade dos anos 1970 e adentra os anos 1980, e cuja extensão serão os inúmeros trabalhos dedicados à política cultural (tema a que se dedicará um volume futuro dos Escritos de Marilena Chaui) e, noutro terreno, a atuação de Marilena à frente da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo entre 1989 e 1992.
Retomemos brevemente essas etapas.
Terminado seu itinerário de formação em filosofia, se assim podemos dizer tomando por parâmetro as balizas formais, e vivendo os anos mais sombrios da noite ditatorial, a recém-doutora Marilena Chaui entende que sua contribuição a um futuro que se pretendesse democrático necessitava ir além da delimitação das causas da violência política que ensaiara na tese de doutoramento sobre Espinosa defendida em 1971. Que será isto – este país afetuoso e de povo afável e trigueiro, paraíso tropical das raças, em que curiosamente no dia a dia se espezinham os subalternos sem cerimônia, em que se torturam e se matam os opositores sem nenhum pudor –, o Brasil? Era preciso ir além. Nesse período, ela estreita o diálogo com as ciências sociais e, filósofa, ocupa-se sobretudo da crítica à ideologia, indo do nem um pouco saudoso integralismo à mistificação da brasilidade cordial (ver o volume 2 desta coleção, Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro). Com o tempo, quiçá amparada pelo Espinosa que lhe ensinava ser a ideologia menos um discurso intencionalmente falso que um discurso lacunar (aquele que faz da ignorância, isto é, da incompletude, um saber completo e arroga-se todos os direitos de tanto), Marilena renova no tema ao afirmar que a ideologia, tal como se apresenta no capitalismo tardio brasileiro, é justamente um discurso que se exibe como eficaz, detentor da cientificidade, e que ao mesmo tempo, com base nesses atributos, outorga-se o direto de desqualificar os adversários e escamotear o que bem lhe convém. Uma forma de dominação cuja arma prioritária, por conseguinte, é o saber; um discurso competente, uma ideologia da competência (ver o volume 3 desta coleção, A ideologia da competência).
Às voltas com um problema clássico (desde Platão as relações entre saber e poder são um ponto nodal para a questão da democracia), a filósofa vê nascer uma interrogação paralela e que logo se torna central. É certo que o saber serve à ideologia e ao poder, mas será que todo saber se presta a isso? Em alternativa à cultura e ao saber dominantes, não haverá outros? Daí lhe parecer necessário aventurar-se, mais uma vez, pelo usitado tema da cultura popular. Entretanto, sob uma perspectiva renovada, ela busca inspiração maiormente em alguns historiadores ingleses (Christopher Hill, E. P. Thompson e outros) que desde a década de 1960 se empenhavam em reconsiderar a história e a cultura das classes populares e livrá-las das esquematizações tradicionais e geralmente redutoras – aquelas mesmas com que Marilena se confrontará: os ilustrados
que tomam a cultura popular à guisa de etapa atrasada a ser superada pela razão; os românticos
que nela identificam uma matriz a ser preservada, como numa redoma, a título de alma da nacionalidade; os esquerdistas épicos
que concebem o povo
como classe que se erguerá revolucionariamente em busca da redenção. Passando longe disso, de modo crítico, o que Marilena descobre é que as classes populares têm seu saber
; um saber, uma lógica que, embora não agrade a ninguém, não satisfaça a expectativas alheias, é indubitavelmente delas, de sua própria lavra. Uma cultura feita por criaturas de carne e osso, com dúvidas e indecisões, medos e esperanças
(para usarmos os termos da bela análise do filme Cabra marcado para morrer presente neste volume); ora conformada e conservadora
, ora resistente e progressista
, mas sabendo usar até mesmo dos mecanismos do poder a seu favor (ver a paradigmática análise da Greve da Amnésia
em Conformismo e resistência
e sempre exprimindo esse desejo próprio dos de baixo
que é não ser dominado pelos de cima
.
Eis, leitor, o trajeto investigativo que este volume dos Escritos de Marilena Chaui apresenta ao coligir textos de diversos formatos e proveniências, que vão de 1974 até 1995. Conforme os parâmetros da coleção, todos foram revistos pela autora especialmente para esta edição; ao organizador coube, além da seleção, uns poucos rodapés, sempre identificados, a cada vez que lhe pareceu oportuno reconstituir o histórico de certos argumentos e referências. O conjunto divide-se em quatro partes, e no interior delas os textos se distribuem cronologicamente.
A primeira parte, como era de se esperar, retoma o texto integral do referido volume de 1986 cujo título principal emprestamos para encabeçar a coletânea. Todos os demais textos gravitam em torno desse, na medida em que ou o prepararam ou dele decorreram.
A segunda recolhe trabalhos nos quais, ao longo de mais ou menos uma década, a autora põe o problema das relações entre saber e poder conduzindo-o à arena política de um país em que a luta contra a ditadura é simultânea às tentativas de formulação de um projeto democrático. Cabe alertar que aqui, por duas vezes (conferências sobre Popper e sobre o papel da cultura no momento político), baldados os esforços de reencontrar os textos originais, foi necessário recorrer a matérias jornalísticas que traziam largas citações entre aspas; o expediente nos pareceu valer a pena pelo benefício que traz à recomposição do percurso.
A terceira oferece um conjunto de resenhas publicadas em veículos de imprensa e que podem ser divididas em dois grupos, conforme o momento de sua publicação. Uma pesquisa, antes de ganhar a forma de livro, exige leituras, tateios, aprofundamentos; testemunhos desse esforço são as discussões de trabalhos que serviram à construção das formulações do volume de 1986 (por exemplo, o estudo de Kazumi Munakata sobre a CLT ou o de Rubem César Fernandes sobre as cerimônias do Bom Jesus de Pirapora). Num segundo momento, os resultados da elaboração teórica podem ser confrontados com autores que de alguma forma trataram do mesmo assunto ou de temas conexos (por exemplo, as análises de obras de Félix Guattari e Arno J. Mayer).
A quarta parte, finalmente, traz uma seleção dos textos publicados por Marilena na coluna semanal que manteve na página 2 da Folha de S.Paulo, entre 1983 e 1986, e que não raro estiveram em estreito diálogo com a temática aqui em foco. Naqueles breves artigos, a observadora arguta destrincha os fios latentes da luta de classes cotidiana: as maquinações legislativas e a tecnocracia, a crueldade das condições de vida das classes consideradas inferiores, cujos membros vivem morrendo de óbito induzido ou de morte matada a mando dos poderosos, a ponto de a política institucional tornar-se para elas irrelevante. Igualmente, por outro lado, reconhece anseios de democracia a se expressarem no mundo do futebol, nos quebra-quebras, na resistência aos imperativos do mercado, nos movimentos sociais. A única exceção fica por conta do polêmico Doutores e encanadores
, texto mais tardio deste volume e que, ao encerrá-lo, ilustra como, ainda no Brasil redemocratizado
, o embate de classes continuou a atravessar o campo do saber e da cultura, o que vem demonstrar o acerto da intuição da jovem autora ao bem cedo dirigir seus esforços analíticos para essas paragens.
Conclusivamente, aproveitemo-nos do mote para um último aceno ao sentido e à coerência desse percurso pela cultura popular brasileira. No primeiro semestre de 2013, Marilena Chaui escandalizou alguns ao afirmar sem papas na língua: odeio a classe média
. A declaração correu imprensa e internet gerando reações variadas e quase sempre adversas: rompantes despropositados (teria endoidecido?), coqueteria intelectual (por acaso mudou de classe?), sandice pura e simples (motivada pelas disputas partidárias?). Não nos cabe aqui discutir a oportunidade ou não daquelas palavras, apenas insistir que inéditas elas não eram. O leitor deste volume ficará sabendo que já haviam sido proferidas e registradas, tais quais, três décadas antes; e ainda que a filósofa então confessasse falar mais emocional do que racionalmente
, arrematava: é uma longa discussão essa, mas que me parece fundamental
(O papel da cultura no momento político
). De fato, no conjunto de nossos textos, a questão retorna particularmente num artigo de 1984 (E se a classe média mudasse?
), com menos emotividade e mais argumentação, porém sempre sustentando uma aguda crítica de classe que, longe de ser ocasional, engata com o núcleo de uma profunda e original reflexão sobre a sociedade brasileira. Ora, como ensina o La Boétie lido por Marilena (ver o volume 1 desta coleção, Contra a servidão voluntária), não há tirania que sobreviva sem tiranetes que a apoiem; não existe o Um que domina sem os Muitos que lhe servem na esperança de serem servidos. A legitimação desse poder às vezes vem com marchas que invocam Deus e a sacrossanta família, mais sutilmente se faz pela alegação da posse exclusiva do saber: os cultivados contra os ignorantes, os competentes que merecem governar contra os despreparados que devem ao menos conhecer seu lugar e deixarem-se mandar. Doutores X encanadores, em suma. Pois bem, debruçando-se sobre a cultura popular brasileira, o mérito maior da filósofa (permita-se ao organizador ajuizar um pouco) foi precisamente inverter os sinais desse enquadramento tradicional – operação, aliás, de profunda inspiração espinosana, conforme ela própria dá a ver no belo ensaio Quem tem medo do povo?
, incluído em Política em Espinosa). Odiar ou amar a classe média, que infelizmente em nossa história tão amiúde fez as vezes dos Muitos, é questão de somenos e que se pode deixar ao polemismo. Crucial é a opção teórica e política de Marilena Chaui, exprimida quer sob forma emotiva quer rigorosamente justificada, como nos textos deste volume. Contra a concepção de que o poder deve ser mantido à distância da plebe, leia-se: gentinha ignorante, instável, interesseira, que menospreza a ética, pensa com o bolso, vota com o estômago e chega ao cúmulo hoje de frequentar aeroportos portando seus hábitos de rodoviária. A favor daqueles que, nem heróis nem coitados, detêm um saber, uma lógica, uma cultura ambíguos, entre conformismo e resistência, e que por isso mesmo fornecem a base de qualquer projeto futuro de democracia radical, isto é, verdadeira. Se um dia a democracia for possível neste país, ela nascerá dos movimentos sociais e populares, do contrapoder social e político que transforma a plebe em cidadã e os cidadãos em sujeitos que declaram suas diferenças e manifestam seus conflitos
(Dizimação
).
¹ * Homero Santiago é professor no Departamento de Filosofia da USP.
PARTE I
Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil
²
Nota preliminar
Este texto foi originalmente escrito para leitores estrangeiros (abril-maio de 1985). Apesar de algumas remodelações e vários cortes, os leitores brasileiros irão encontrar inúmeras passagens óbvias, mas que eram necessárias aos leitores a quem o estudo inicialmente se dirigia. Peço que perdoem essa falha, e todas as outras também.
Alguns leitores estrangeiros e vários brasileiros, que analisaram a versão original, consideraram este trabalho muito pessimista. Não foi com pessimismo que o escrevi.
São Paulo, dezembro de 1985.
Introdução, como de praxe
Uma ideia problemática, evidentemente
A expressão cultura popular
, como já foi bastante observado, é de difícil definição.³ Seria a cultura do povo ou a cultura para o povo? A dificuldade, porém, é maior se nos lembrarmos de que os produtores dessa cultura – as chamadas classes populares
– não a designam com o adjetivo popular
, designação empregada por membros de outras classes sociais para definir as manifestações culturais das classes ditas subalternas
. Assim, trata-se de saber quem, na sociedade, designa uma parte da população como povo
e de que critérios lança mão para determinar o que é e o que não é popular
.
No Brasil, fala-se, por exemplo, em música popular para designar todo o campo musical que escapa à chamada música erudita, mas nem sempre compositores e ouvintes pertencem às chamadas camadas subalternas
, e sim à classe média urbana – se, no início deste século, os compositores mais conhecidos eram lá do morro
, no final do século, grande parte da música popular é composta e ouvida por universitários. Em contrapartida, a chamada música sertaneja (designação mais frequente para a música caipira e para a moda de viola sob a influência de novos ritmos urbanos) corresponderia muito mais à ideia do popular
como subalterno
. Por outro lado, as composições mais admiradas pela população popular
são aquelas que costumam receber a qualificação pejorativa de kitsch – Roberto Carlos, Nelson Ned e Teixeirinha sendo exemplares. Enfim, do ponto de vista oficial ou estatal, popular
costuma designar o regional, o tradicional e o folclore.
Numa perspectiva que considerasse primordialmente os produtores e seu público, guiando-se pelas ideias de regional, tradicional e típico, seriam populares a marujada, a congada, a ciranda, o bumba meu boi. Todavia, resta saber o principal: por que regional, tradicional e típico designariam o popular
?
A discussão do problema poderá ser facilitada se fizermos um breve retrospecto da emergência da expressão cultura popular
.⁴ Antes, porém, é conveniente recordarmos o surgimento da concepção moderna de cultura e seus laços com duas outras, civilização e história.⁵
Vinda do verbo latino colere, cultura era o cultivo e o cuidado com as plantas, os animais e tudo que se relacionava com a terra; donde agricultura. Por extensão, era usada para referir-se ao cuidado com as crianças e sua educação, para o desenvolvimento de suas qualidades e faculdades naturais; donde puericultura. O vocábulo estendia-se, ainda, ao cuidado com os deuses; donde culto. A cultura, escreve Hannah Arendt, era o cuidado com a terra para torná-la habitável e agradável aos homens, era também o cuidado com os deuses, os ancestrais e seus monumentos, ligando-se à memória, e, por ser o cuidado com a educação, referia-se ao cultivo do espírito. Em latim, cultura animi era o espírito cultivado para a verdade e a beleza, inseparáveis da natureza e do sagrado.
A partir do século XVIII, observa Raymond Williams, o termo cultura
articula-se, ora positiva ora negativamente, com o termo civilização
. Este, derivando-se do latim cives e civitas, referia-se ao civil como homem educado, polido, e à ordem social (donde o surgimento da expressão sociedade civil
). Entretanto, civilização
possuía um sentido mais amplo do que civil. Significava, por um lado, o ponto final de uma situação histórica, seu acabamento ou perfeição, e, por outro, um estágio ou uma etapa do desenvolvimento históricosocial, pressupondo, assim, a noção de progresso.
Todavia, a Ilustração relaciona cultura
e civilização
de maneiras opostas.
Alguns, como Rousseau, consideram os dois termos antitéticos. Civilização é artifício, cultivo da exterioridade, sujeição da sensibilidade e do bom natural
aos espartilhos de uma razão artificiosa, decadente. Civilização seria o início e o término da barbárie. Em contrapartida, cultura é bondade natural, interioridade espiritual, sentimento e imaginação, vida comunitária espontânea. Assim, enquanto civilização
designa convenção e instituições sociopolíticas, cultura
se refere à religião natural, às artes nascidas dos afetos, à família e à personalidade ou subjetividade como expressões imediatas e naturais do espírito humano não pervertido. Civilização é a sociedade política. Cultura, ainda que evidentemente uma prática social, relacionava-se com a ‘vida interior’ em suas formas mais acessíveis e seculares: ‘subjetividade’, ‘imaginação’ e ‘indivíduo’.
⁶
Para outros, como Voltaire e Kant, cultura
e civilização
exprimem o mesmo processo de aperfeiçoamento moral e racional, o desenvolvimento das Luzes na sociedade e na história. Cultura torna-se medida de uma civilização, meio para avaliar seu grau de desenvolvimento e progresso. Aqui, cultura não é o natural
oposto ao artificial
, mas o específico da natureza humana, isto é, o desenvolvimento autônomo da razão na compreensão dos homens, da natureza e da sociedade para criar uma ordem superior (civilizada) contra a ignorância e a superstição. Tornando-se o metron, a cultura permite avaliar, comparar e classificar civilizações.
Entendida como exercício livre da razão e da vontade esclarecida, a cultura surge como reino humano dos fins e dos valores, separado do reino natural das causas necessárias e mecânicas. A oposição entre natural e artificial ganha sentido diverso do precedente: torna-se, agora, oposição entre interioridade livre e exterioridade necessária (tema central do idealismo alemão e cujo acabamento é a filosofia hegeliana). Gradativamente, a natureza torna-se imóvel, passiva, materialidade dispersa, exterioridade mecânica, enquanto a cultura se faz mobilidade, atividade, temporalidade, autoconsciência, objetivação da subjetividade e reconciliação do subjetivo e do objetivo no Espírito Absoluto. Cultura torna-se o reino humano da história, universo das obras.
Novamente, o termo se bifurca. Numa dire