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Favores vulgares: A história real do homem que matou Gianni Versace
Favores vulgares: A história real do homem que matou Gianni Versace
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Favores vulgares: A história real do homem que matou Gianni Versace

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About this ebook

A história real da caçada que inspirou American Crime Story: O Assassinato de Gianni Versace, a segunda temporada da aclamada série do canal FX.

Em 15 de julho de 1997, Gianni Versace foi morto a tiros nos degraus da entrada de sua mansão em Miami Beach pelo serial killer Andrew Cunanan. Mas, meses antes do assassinato de Versace, a premiada jornalista Maureen Orth já vinha investigando a história de Cunanan para a revista Vanity Fair. Escrito a partir de uma seleção de entrevistas com mais de 400 pessoas e insights obtidos de milhares de páginas de relatórios policiais, Favores vulgares conta a história completa de Andrew Cunanan, suas vítimas inadvertidas e o mundo opulento em que elas viveram… e morreram. Orth revela como Cunanan conheceu Versace e a razão pela qual a polícia e o FBI falharam repetidamente em capturá-lo. Esta é uma odisseia impossível de largar, que atravessa os Estados Unidos desde a rica comunidade gay da Califórnia aos modestos lares do Meio-Oeste, onde famílias se condoíam pela perda de seus filhos, chegando a uma decadente South Beach, na Flórida.

Favores vulgares é ao mesmo tempo uma obra-prima do jornalismo investigativo e um fascinante relato sobre um sociopata, seus crimes e os mistérios que ele deixou para trás.
LanguagePortuguês
Release dateNov 5, 2018
ISBN9788554126193
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    Book preview

    Favores vulgares - Maureen Orth

    Strauss.

    NOTA À EDIÇÃO BRASILEIRA

    Favores vulgares foi publicado originalmente nos Estados Unidos em 1999, quando a epidemia de Aids, que dizimou quase meio milhão de americanos entre 1980 e 2000, começava a arrefecer, mas a retórica anti-LGBT ainda se mantinha. O silêncio do presidente Reagan e o rótulo de câncer gay atribuído à doença ainda ecoavam, e seriam necessários mais quatro anos para que a homossexualidade fosse descriminalizada em todo o país, em 2003.

    Maureen Orth, autora deste livro, é uma jornalista premiada por seu trabalho de reportagem. Para Favores vulgares, ela se consultou com inúmeras instituições pró-LGBT. Uma delas foi a Gay & Lesbian Alliance Against Defamation [Aliança Gay e Lésbica contra a Difamação – GLAAD], que à época do assassinato de Gianni Versace, quando os crimes de Andrew Cunanan estampavam as primeiras páginas de todos os jornais, se juntou a organizações nacionais para informar a imprensa sobre a maneira mais respeitosa de anunciar esses acontecimentos.

    Por mais esforços que tenham sido feitos, porém, Favores vulgares é um produto de seu tempo. Aids, promiscuidade, prostituição, criminalidade e uso de drogas ainda eram vistos como parte de um mesmo estilo de vida homossexual nos anos 1990. Essas ideias perpassam o livro, às vezes de maneira latente em afirmações aparentemente inócuas da autora, às vezes até mesmo em depoimentos de membros das comunidades LGBT da época, e refletem a maneira como a homossexualidade era vista e representada naquele período.

    É fundamental, portanto, que não se perca de vista o contexto em que esses discursos foram produzidos e publicados pela primeira vez. Desse modo, para além de uma emocionante narrativa jornalística e de uma análise intrigante sobre o perfil de Andrew Cunanan, Favores vulgares nos oferece um relance valioso sobre os desafios enfrentados pela comunidade LGBT no final do século XX e, por contraste, daquilo que já foi conquistado desde então.

    PRÓLOGO

    O telefone tocou por volta de 1 da manhã, e o meu marido atendeu sonolento.

    A Maureen Orth está? É a Maureen Orth, a escritora? A voz masculina era insistente.

    Quem está falando?

    Eu quero falar sobre a matéria que ela escreveu. Uma pausa e então um clique.

    Acho que era ele, meu marido falou.

    Quem?

    O cara sobre quem você está escrevendo.

    O quê? Você quer dizer Andrew Cunanan?

    Estranho, meu marido disse. Então ele se virou e voltou a dormir. Mas eu já estava completamente desperta a essa altura.

    Cerca de dez dias depois, horas após Gianni Versace, o famoso designer de moda e ícone gay, ter sido assassinado, o telefone tocou outra vez perto de 1 da manhã. Eu já tinha um voo marcado para Miami na manhã seguinte, para cobrir o assassinato de Versace, porque o principal suspeito era Andrew Cunanan. Nesse tempo eu já havia escrito sobre Cunanan por quase dois meses na revista Vanity Fair – a publicação favorita dele. Também descobri que ele havia conhecido Versace muitos anos antes e que era suspeito de matar outras quatro pessoas, incluindo seu melhor amigo e o único homem que ele disse já ter amado.

    Alô, a Maureen Orth tá aí? Meu marido reconheceu aquela mesma voz de homem. Quem deseja? Mas a voz do outro lado pensou bem antes de responder. O som de fundo daquela ligação de longa distância foi cortado abruptamente. Eu nunca vou saber se foi assim que perdi o furo jornalístico da minha vida.

    Sob qualquer outra circunstância, aparecer na Vanity Fair teria sido o sonho de Andrew Cunanan se realizando. Mas, naquele ponto, no início de julho de 1997, ele estava prestes a se tornar o alvo de uma das maiores caçadas na história do FBI. Havia milhares de pessoas atrás dele, e ainda assim ninguém sabia onde ele estava.

    O corpo de Andrew Cunanan foi encontrado nove dias depois, na marina que se tornaria infame em Miami Beach. Além disso, a repercussão de seus crimes e sua cruel e trágica jornada através da América reverberou por meses. O que começou erroneamente na mídia como briga de amantes gays, confinada em um mundo homossexual restrito, mas aberto, cresceu à medida que os crimes de Cunanan se tornaram mais cruéis e ousados, lançando-o para a primeira página das publicações tradicionais – em todos os telejornais e nas capas das revistas Time e Newsweek. Contudo, antes que Andrew Cunanan matasse Gianni Versace e ganhasse notoriedade mundial, ele já havia cruzado um universo gay paralelo na América da atualidade – indo do ventre sórdido e movido a drogas do submundo até o mundo privilegiado e erudito dos ricos e dos não assumidos.

    Andrew se encaixava em qualquer lugar. Sabia falar sobre arte e arquitetura, e era uma enciclopédia ambulante de marcas e status. Sustentado por amantes, conseguiu chegar ao Palácio Gritti em Veneza e a uma casa em Cap-Ferrat. Mas então se apaixonou por um jovem e trabalhador arquiteto – ao que tudo indica, porque os velhos ricos que o bancavam não deram a ele a Mercedes que ele queria – e deixou para trás o mundo de mimos que sempre desejou.

    Não importava o quanto Andrew Cunanan tivesse, ele sempre queria mais – mais drogas, sexo mais pervertido, vinhos melhores. Ele começou a acreditar de alguma forma que merecia isso. E por que não? Era sempre a pessoa mais animada da festa, o garoto mais esperto na mesa. Mas aos 27 anos de idade ele também era um pesadelo narcisista de egocentrismo vaidoso, um mentiroso patológico experiente que criava realidades alternativas para si mesmo e era esperto o suficiente para se dar bem. Andrew se fez indispensável nos círculos superficiais e ingênuos que frequentava. Espreitando sob seu charme, porém, uma psicose sinistra cozinhava a fogo lento, auxiliada por seus hábitos de consumir pornografia violenta, combinada ao uso de metanfetamina, cocaína e várias outras drogas tão comuns em alguns círculos gays de hoje – mas sobre as quais pouco se fala. Qualquer um que já usou metanfetamina e teve uma fase ruim consegue olhar para a situação [e compreender], argumenta Joe Sullivan, um ex-usuário que conheceu Andrew em San Diego. Eu não consigo acreditar que ninguém associou um surto de metanfetamina a essa história.

    À medida que eu noticiava a história de Andrew Cunanan, ficou por minha conta desfiar as mentiras e desembaraçar as contradições – ele não revelava seus segredos facilmente. Começou sua vida como um belo menino de ascendência italiana e filipina, com um QI de 147. Mas o casamento de seus pais era desesperadamente triste, e eles contavam com o filho mais novo para salvá-los. Sob tremenda pressão, o talentoso garoto nunca foi capaz de formar uma personalidade adulta coerente. Quanto mais eu aprendia sobre ele, mais me entristecia em ver como as drogas e o sexo ilícito embruteceram seus instintos, como a prostituição o deixou preguiçoso e despreparado em muitos níveis. Quando a situação apertou, ele não tinha recursos profissionais ou morais nos quais se apoiar. Foi seduzido por um mundo de ganância, insensibilidade e pornografia que oferecia os valores superficiais da juventude, da beleza e do dinheiro como os maiores objetivos de uma vida feliz. No fim, Andrew Cunanan, tão ágil e esperto, o produto de uma mãe católica fanática e de um pai materialista igualmente fanático, sucumbiu à sua maldade sombria e infligiu uma dor imensurável aos outros.

    Ao seguir o caminho torpe de Andrew Cunanan, fiquei fascinada com a ideia de que eu não estava simplesmente noticiando a história de um jovem ensandecido e sua violência. Eu também estava fazendo uma odisseia pela América do fim do século XX, quando novas comunidades haviam se formado nas últimas duas décadas, quando o politicamente correto paralisava muitos aspectos da lei e da mídia, quando o dinheiro encerrava discussões. Algumas coisas, contudo, são perenes, como a habilidade das famílias poderosas de impedir que a verdade venha à tona e de manter seus segredos escondidos.

    Através das minhas viagens eu vi que a população gay, como um grupo coeso, está em estados dinâmicos e alternados de formação política. Sua habilidade de se organizar localmente afeta diretamente sua influência sobre a força policial. Teria sido difícil para Andrew passar despercebido em São Francisco e Nova York. Por outro lado, em South Beach, uma meca para turistas, a grande comunidade gay não exige muito em termos de proteção. De fato, muitas vezes parece que estão em constante negação sobre precisarem de proteção contra qualquer coisa, inclusive no sexo.

    Para além dos limites de South Beach, encontrei por todo o país sinais de negação do uso generalizado de drogas, bem como das estruturas que permitiam a expansão desse uso, tanto por parte da comunidade gay quanto dos agentes da lei, que pareciam desconfortáveis em abordar certos assuntos por medo de serem tachados de homofóbicos. Se o FBI conhecesse mais a comunidade gay do sul da Flórida, por exemplo, Andrew Cunanan, um dos criminosos mais procurados, não teria conseguido viver livremente no Hotel Normandy Plaza por quase dois meses, nem abandonar uma caminhonete vermelha roubada num estacionamento por várias semanas. Do jeito que aconteceu, essa caçada nacional que custou milhões de dólares rendeu poucos frutos. Kevin Rickett, o jovem e vigoroso agente do FBI que ficou responsável pela Equipe de Busca do Fugitivo do Minnesota, a qual liderou a investigação nacional, me disse: Não tivemos muitos momentos de sucesso na investigação porque nunca chegamos perto dele. A gente nunca esteve na cola.

    A história, que ia de um lado para o outro do país, me levou continuamente para lugares que eu nunca teria imaginado. Eu não tinha a menor ideia do impacto profundo do caso de O.J. Simpson sobre os promotores locais e estaduais, que agora estavam relutantes em acusar suspeitos de assassinato sem evidências circunstanciais incontestáveis. O caso de O.J. contaminou tudo, me contou Paul Scrimshaw, o detetive principal de Miami Beach durante a investigação Versace. Todo mundo está com medo, ninguém quer ficar mal na fita. Toda a investigação está manchada por causa de O.J. O advogado de defesa de Simpson, Barry Scheck, deveria ser enforcado e esquartejado.

    Foi encorajador ver o FBI, pelo menos nacionalmente, fazer um verdadeiro esforço no final para reparar sua fraqueza inicial. Os crimes de Andrew Cunanan acabaram se tornando catalizadores de uma mudança positiva, levando à implementação de novas práticas e ajudando a criar maior cooperação entre as forças policiais, bem como entre a polícia e a comunidade gay. Contudo, até hoje, embora existam mecanismos para encontrar um carro desaparecido, não existe um para encontrar uma pessoa desaparecida.

    Andrew Cunanan também alimentou a era da cobertura exagerada e sensacionalista de crimes, da mesma forma que O.J. A produtora do programa Hard Copy, Santina Leuci, diz: Cunanan tinha todos os ingredientes de uma boa história: sexo, violência e um assassino em série. E ele está foragido, com toda a força policial atrás dele, um país inteiro esperando que ele seja pego. O que acontece quando uma história se torna a mais popular do país? De repente eu estava no meio de um tsunami. A mídia sensacionalista é o equivalente moderno dos circos de horrores do passado. Nós temos aberrações televisionadas 24 horas por dia, que podemos assistir juntos todos os dias e todas as noites, e todo ano alguém é alçado ao posto de atração principal. Andrew Cunanan – "Ele é gay! Ele é doente! Ele mata ricos e famosos!" – ocupou esse espaço por um tempo, até ser substituído por uma princesa.

    Eu fiquei chocada de ver a quantidade de dinheiro envolvido e a rapidez com que ele passa de mão em mão quando uma história assim explode. Um jornalista de publicação impressa tradicional não tem a menor chance. Um tipo de frenesi toma conta de tudo, e a cobertura da mídia influencia a investigação policial e a resposta política; qualquer um pode participar dos funerais com todo o elenco de famílias e policiais assediados, seja através da televisão, dos jornais, das revistas ou da internet. É uma novela global que se desenrola dia e noite. As famílias sobrecarregadas são forçadas a alimentar bestas famintas. Os policiais e os políticos, também.

    Eu nunca vou me esquecer do dia em que estava sentada num bar misto –um para gays e lésbicas – no coração do bairro Castro, em São Francisco, com um habitante local muito inteligente, Doug Conaway, que concentrou minha atenção numa grade ao lado de um banco do outro lado da rua. Estava coberta de buquês de flores mortas, que haviam sido colocados ali para comemorar o funeral da princesa Diana. Os buquês, ele falou, eram uma forma de a vizinhança participar da agitação. E a vizinhança, ao que tudo indicava, tinha um sentimento parecido em relação a Andrew.

    Quando eu cheguei em casa e ouvi que Versace tinha sido baleado e que estavam suspeitando de Cunanan, pensei ‘Deus do céu, ele morava aqui no bairro’, confidenciou Conaway. "Se não fosse por Cunanan a gente não teria visto Diana no funeral de Versace, então alguém do nosso bairro fez isso acontecer. Mas então, quando o corpo dele foi encontrado, eu fiquei desapontado. O que eu deveria voltar a fazer? Reforma de financiamento de campanhas eleitorais?

    Graças à morte de Diana, está sendo como uma série de TV. A morte dela nos deu tanta coisa para fazer por aqui. Ele me olhou secamente, decidiu que estava com tudo e continuou. E se Elton John tiver Aids, e Liz Taylor for visitar o leito dele e tiver um derrame e morrer, e o Michael Jackson for no funeral dela e cair de cara no chão, todo mundo vai se sentir conectado.

    Quando terminei a minha reportagem, cheguei à conclusão de que estivera numa longa e estranha viagem, da Academia Naval dos Estados Unidos, em Annapolis, até o quartel-general do FBI, em Washington; das plantações de milho no Meio-Oeste até os arranha-céus de Chicago; da loja de artigos sexuais Mr. S Leather, em São Francisco, até a Ópera de São Francisco. Andei nas praias aristocráticas e não assumidas de La Jolla e me diverti com o despojamento gay de South Beach. Eu me encontrei com oficiais da lei poderosos, traficantes de metanfetamina, detetives de homicídio, dominadores sadomasoquistas e personal trainers. Algumas das minhas fontes estavam na cadeia. Eu conhecia chefes de polícia e garotos de programa que cobravam 10 mil dólares por um fim de semana – até mesmo o pianista dos bordéis. Andrew Cunanan sacudiu todos esses mundos.

    Depois que ele morreu, eu tentei juntar os cacos.

    1

    MÃE

    Os restos mortais de Andrew Cunanan foram enterrados em uma sepultura de mármore num mausoléu ensolarado no Cemitério da Sagrada Cruz, em San Diego, pago com dinheiro que sua mãe recebeu por conceder uma entrevista ao programa Hard Copy, da rede Paramount. A segurança foi reforçada naquele dia para manter a imprensa afastada. Apenas um carro, com uma placa autorizada previamente, teve permissão para se aproximar do local. O FBI estava alerta. Já faziam seis semanas desde que Andrew Cunanan, um jovem de 27 anos, andara calmamente e atirara em Gianni Versace, à queima-roupa, nos degraus da mansão do designer de moda italiano, em Miami Beach, dando início à maior e mais malsucedida caçada humana em solo americano.

    Agora, muitos dias depois, em 29 de agosto de 1997, dois dias antes do que seria o vigésimo oitavo aniversário de Andrew, uma missa pelas almas está sendo realizada na capela do cemitério por todos aqueles que morreram na semana anterior. Nessa ocasião não há FBI ou qualquer cobertura da mídia à vista. A mãe de Andrew, MaryAnn Schillaci Cunanan, convidou amigos e velhos conhecidos que conviviam com Andrew como um rapaz estudioso, não como o psicótico gigolô gay das manchetes. Cerca de quinze pessoas apareceram, incluindo o padrinho filipino de Andrew, Delfin Labao, um homem de 86 anos. Nenhum de seus três irmãos, que moram a certa distância e que já compareceram ao velório familiar, estão aqui; nem seu pai, que fugiu para as Filipinas em 1988 após cair em desgraça, deixando sua família para trás. Modesto Pete Cunanan nunca mais voltou aos Estados Unidos.

    MaryAnn chegou cedo para acender as velas na lápide ainda sem nome do filho. Ela prefere acreditar – apesar das montanhas de evidência – que o caçula de seus quatro filhos não era um assassino em série sexualmente sádico. Ela se recusa a acreditar que ele matou cinco pessoas inocentes antes de apontar uma arma calibre .40 para si mesmo. MaryAnn está, obviamente, muito frágil, alternando entre a tagarelice e a estupefação, à beira de um completo desequilíbrio emocional. Na maior parte do tempo ela aparenta brandura e luz, mas seu humor pode mudar rapidamente.

    Ela está vestindo uma camisa amarela de Andrew e uma calça azul de rayon estampado. Ela segue para o banco da primeira fileira, segurando uma caneca de plástico com água gelada para tomar seus remédios. Tira do bolso santinhos em homenagem a Andrew e os distribui. Na parte da frente há uma foto de Jesus ou Maria. Na parte de trás está escrito:

    Em memória de Andrew P. Cunanan,

    31 de agosto de 1969 – 23 de julho de 1997

    Eu gostaria que as lembranças sobre mim

    Fossem de alegria...

    Eu gostaria de deixar um eco

    De tempos felizes e risonhos

    O nome de Andrew Cunanan não aparece na lista manuscrita afixada atrás da igreja para indicar os indivíduos por quem a missa está sendo celebrada. Na verdade, quando o padre lê seu nome, ele o faz como MaryAnn informou: Andrew Cunanan Schillaci. Os outros adoradores, que também perderam entes queridos, não têm a menor ideia de que uma alma infame está recebendo orações hoje.

    Por coincidência, o evangelho do dia, de São Marcos, é a história da decapitação de João Batista.

    Ninguém vai sair cortando a cabeça de ninguém, o monsenhor Francis Pattison diz calmamente no púlpito. Talvez ele não saiba que a terceira vítima de Andrew, Lee Miglin, o magnata imobiliário de Chicago, teve sua garganta brutalmente cortada com um arco de serra de poda. E por que as pessoas fazem isso?’, pergunta o padre. Dizer que existe mal no mundo ou que o diabo mandou fazer isso ou aquilo é a desculpa mais esfarrapada que existe. Você precisa aceitar a responsabilidade do que fez."

    MaryAnn Cunanan mantém o olhar adiante.

    E por que Andrew matou cinco pessoas antes de se matar numa casa flutuante vedada com tábuas em Miami Beach? O FBI conduziu mais de mil entrevistas, mas ainda dizem saber pouco. Os amigos de escola de Andrew e as centenas de pessoas que interagiram com ele em sua curta vida parecem perplexos. A mãe dele acredita que tudo o que aconteceu com seu filho foi uma armação e que agora ele é um santo no céu.

    Os olhos escuros de MaryAnn brilham quando ela abraça aqueles que vieram para o funeral. Uma mulher bem vestida enfia dinheiro na mão dela.

    Ponto final, sussurra a irmã Dolores, a antiga catequista de Andrew na Paróquia Santa Rosa de Lima, perto de Chula Vista, assim que se aproxima de MaryAnn. Ela incentiva a mulher a pensar em outras coisas e descansar. Você precisa de um ponto final.

    Mas há dor demais para isso.

    2

    INFÂNCIA

    MaryAnn Cunanan doa todo o dinheiro que ganha – para taxistas, para a igreja, para qualquer um. Na rua empoeirada em que vive sozinha, num velho bangalô de um quarto em National City, longe dos outros três filhos, ela torrou milhares de dólares para transformar um pedaço de terra perto de sua casa num memorial para Andrew.

    Após a missa pelas almas na Sagrada Cruz, MaryAnn volta pra casa e guia visitas pelo lote, que contém alguns cactos tristes e um pé murcho de manjericão. Então ela entra, coloca sua dentadura no bolso e começa a falar e a fumar sem parar – exigindo atenção constante, mudando de ideia a todo o instante sobre o que quer almoçar, pedindo para que as visitas procurem garfos na gaveta com os broches.

    Uma das coisas grotescas da cultura de tabloide em que vivemos é que não importa quão horrível seja o crime cometido por um indivíduo, a família é sempre tentada a ganhar dinheiro com a tragédia. E foi assim que aconteceu com os Cunanan, incluindo MaryAnn. Deslumbrados e confusos, eles foram assediados para aparecer em público, seduzidos com buquês e limusines pelos canais de TV, caçados por repórteres oferecendo dinheiro, por produtores ávidos em oferecer acordos para livros fajutos e filmes de televisão, e por advogados que estavam mais do que felizes em agir como agentes e rascunhar contratos, entregando os direitos exclusivos da família sobre a história da vida de Andrew. Nesse caso, os direitos seriam sobre a história de um filho e de um irmão que a família já não conhecia mais, mas, do ponto de vista da mídia, quanto mais sórdido e sensacionalista, melhor.

    Embora eles não tivessem falado com Andrew por boa parte de uma década, Elena e Christopher Cunanan, seus irmãos mais velhos, assinaram um contrato para um livro e tentaram incluir sua imprevisível mãe no acordo. Eles não falam sobre publicação a menos que sejam pagos, e, dessa forma, não participariam deste livro. Pouco depois da morte de Andrew, MaryAnn começou a viajar com um advogado que poderia monitorar as declarações dela. Somente Gina, filha dela, se recusou a vender suas memórias.

    A sala de estar de MaryAnn é mobiliada com quatro velhas cadeiras dobráveis de madeira, uma velha cadeira de escritório, uma cadeira de bambu dos anos 1960 com uma almofada desbotada, um ventilador quebrado, um toca-fitas e um aparelho de TV novo. Mas aquilo que captura os olhos é o altar para Andrew, onde ela mantém uma vela acessa, fotos de família de um tempo mais feliz, cartões que pessoas mandaram, imagens de santos e um rosário abençoado pelo Papa.

    Embora esteja fortemente medicada e mantenha apenas uma breve lucidez nas conversas relacionadas ao filho mais novo, existe uma perspicácia assustadora em MaryAnn. E uma postura desafiadora. Ela é siciliana, conta, e orgulhosa de ser do povo. Foi ao programa de Larry King para descrever Andrew como belo, inteligente, brilhante... Dotado... Eu só quero me lembrar das coisas boas. Ela está sob cuidados psiquiátricos há anos e foi aposentada por invalidez pelo governo, recebendo uma pensão. Tentou suicídio mais de uma vez depois da morte de Andrew. Uma hora ela pode ser doce e aconchegante, de modo quase excessivo, e na outra é resmungona e amarga, olhando feio para visitas. "Você sabe o que significa malocchio? Estou te dando isso agora." Ela contorce seu rosto até virar uma máscara satânica. É assustador. O filho dela, Christopher, a descreveu da seguinte maneira ao jornal San Diego Union-Tribune: Ela é muito vulnerável e emocionalmente frágil. Ela não está bem mentalmente.

    MaryAnn Schillaci era filha de imigrantes. Seus pais chegaram em Ohio vindos de Palermo, em 1928, e ela gosta de alardear que seu pai era da máfia. Ela se considera uma filha de menopausa, que sua mãe gerou tarde na vida. O pai, ela conta, era dono de uma barbearia e tinha parte em um bar. Quando criança ela era mimada e superprotegida, e sua maior felicidade era ser colocada em cima da mesa para dançar e se apresentar. MaryAnn começou a acreditar que o fato de ter sido gerada tão tarde fez com que ela nascesse com um defeito e um lado sombrio que ela luta para controlar. Assim como muitos filhos de imigrantes, ela não falava inglês até ir para a escola, mas, assim que começa a falar, faz poucas pausas. Estou falando demais?, pergunta. Preciso tomar um remédio? Meu marido me batia para me fazer parar. Ele dizia que não conseguia pensar.

    Hoje sua vida é cheia de estranhos – agentes do FBI, advogados prometendo contratos, agentes de televisão e amigos de Andrew De Silva, nome que Andrew usava nos bares gays da cidade, que MaryAnn visita às vezes. Ela diz para quem quiser ouvir que o filho não foi responsável pela morte de Gianni Versace. Afirma que a onda de assassinatos foi uma armação da máfia: Andrew conheceu Versace através do sexo sadomasoquista, ela diz. Mas os detalhes ficam vagos daí em diante.

    Em seu luto, MaryAnn se tornou protetora e arquivista de Andrew. Ela coleciona roupas e propriedades dele e doa suas camisas para quem ela gosta. Diz, cheia de animação, que "a Vanity Fair era a revista favorita do Andrew", então corre para o quarto e volta com um exemplar da Vogue,um item surpreendente quando olhamos ao redor. Eu comprei isso porque foi daqui que Andrew comprou todas as roupas dele. Ela queria dizer que ele vestia alta costura. De uma forma curiosa, ela se orgulha da notoriedade dele e fica imaginando quem o interpretaria num filme. Ela diz que tem esperanças de que seu filho Christopher faça isso, mas ele não sabe atuar. Pensa também no antigo nadador olímpico Greg Louganis.

    Questionada sobre quando percebeu que Andrew era gay, ela rebate: Na hora em que ele nasceu, idiota. Alguns minutos depois ela se corrige, dizendo que soube no aniversário de 16 anos dele, pelo jeito como ele colocou um suéter rosa. De fato, sua homossexualidade não podia ser abordada em casa. MaryAnn parece admitir isso ao dizer que você pode orar o quanto quiser e rezar quantos rosários quiser, mas eles têm vontade própria. Espere até o seu filho ter 16. Assim que eles aprendem a dirigir, eles não te pertencem mais.

    Por anos, MaryAnn e seu marido viveram por meio dos dois filhos mais novos, especialmente Andrew, porque eles não tinham vida emocional juntos, de acordo com um vizinho. MaryAnn diz que Andrew era meu conselheiro matrimonial. A gente costumava andar pelo quarteirão e ele me explicava as coisas. Andrew se tornou o confidente dos pais. Apesar da aridez da união, MaryAnn afirma que nunca se divorciou do marido. Depois de dar depoimentos pouco elogiosos a respeito de várias pessoas ao seu redor – com exceção de Andrew –, ela começa a ficar cansada. Desaparece no quarto e volta usando uma meia-calça branca e uma camisa do Vila Sésamo, com os personagens Beto e Ênio na frente. Ela está carregando um boneco do Beto.

    O medicamento a deixa sonolenta. Ela fecha os olhos, mas antes de fazer isso revela: Eu sou de escorpião. Tenho um lado sombrio, que tento vencer com a bondade. Eu já tive o bem e o mal, mas o bem é maior do que o mal... Se eu estiver com os meus óculos. Onde estão os meus óculos?. Ela procura impacientemente pelos óculos de um azul espelhado, os encontra e coloca. Se eu estiver com os meus óculos, então eu sou boa, porque ninguém pode me ver.

    MaryAnn quer tirar fotos antes de as visitas irem embora. Ela imita estrelas de cinema, posando com a mão na cintura, virando de lado, jogando a cabeça para trás. Exige saber: Quem sou eu? Você não se lembra da Silvana Mangano? Não se lembra da Anna Magnani?. Enquanto se recorda dessas atrizes italianas dos anos 1950 e 1960, MaryAnn começa a ficar hostil. "Eu sou feia, mas ainda sou uma atriz, não é?, ela implora. Não é?"

    Então ela anuncia que precisamos nos levantar, juntar as mãos e cantar louve o Senhor porque ele é maravilhoso. MaryAnn faz todo mundo erguer e abaixar os braços, entrar no meio do círculo e voltar. Você não está cantando direito, ela rosna impaciente, exercendo seu controle. Está mexendo os braços rápido demais! MaryAnn dança para dentro e para fora do círculo, com um cigarro preso firmemente nas gengivas, e quando olha para algum visitante, seus olhos estão cheios de ódio.

    Andrew Philip, o bebê mimado, estava destinado a realizar os sonhos de seus pais incompatíveis. A mãe de MaryAnn morreu quando ela tinha 19 anos, e a jovem se mudou para o sul da Califórnia para morar com o irmão. Ela afirma que a cunhada não apreciava os beijos e abraços cheios de afeição que ela e o irmão, criados num lar caloroso e cheio de demonstrações de afeto, compartilhavam um com o outro. MaryAnn sabia que não era bem-vinda. Ela trabalhava como telefonista e garçonete num bar em Long Beach, naquela época uma cidade de marinheiros, quarenta quilômetros ao sudoeste de Los Angeles. Certa noite no bar, em 1961, ela ergueu os olhos e seu coração parou. Pete Cunanan, onze anos mais velho do que ela, acabara de entrar. Ele estava com um paletó branco e eu achei que ele se parecia com uma versão filipina de Errol Flynn.

    Pete Cunanan sabia que levava jeito com as mulheres, e assim ele e MaryAnn dançaram a noite inteira. Pete era um militar de carreira que entrou para a Marinha assim que imigrou de sua vila em Baliuag, a cerca de quarenta quilômetros de Manila, dez anos antes. Tinha uma voz forte e um jeito astuto. Ele era parte da equipe do hospital naval e trabalhava duro, muito ciente das hierarquias e do status. Para cimentar seus grandes sonhos e sua ambição desmedida, estava tendo aulas sobre gerenciamento financeiro; mais tarde, iria para a escola noturna e, por fim, faria dois mestrados em Administração de Negócios e Finanças Médicas. Ele tinha orgulho do seu passado militar. Pete acreditava em manter uma aparência impecável – ele queria ser um maioral.

    Baixo e forte, tinha um bigode fino e, mais tarde, uma unha de cinco centímetros no dedo mindinho. Haviam rumores de que ele era descendente de uma tribo de guerreiros e que havia sido parte de uma guerrilha durante a Segunda Guerra Mundial. A divertida MaryAnn, de cabelos escuros, olhos grandes e uma risada cortante, colocava meias no sutiã para ficar mais atraente para ele. Embora ela estivesse prometida para alguém em casa e mandasse dinheiro para Ohio toda semana para ajudar a pagar o casamento, ela foi atraída por Pete instantaneamente.

    MaryAnn estava grávida de seis semanas quando ela e Pete se casaram. O primeiro filho deles, Christopher, nasceu em agosto de 1961. Pouco depois, Pete foi transferido para o hospital naval em St. Albans, Nova York, onde MaryAnn deu à luz a Elena, uma menina loira de olhos azuis, em 1963. A família se mudou para Newport, Rhode Island, em 1966, e quando a Guerra do Vietnã começou a esquentar, Pete se tornou parte da Primeira Companhia Médica, Primeira Divisão Marinha. As frotas navais, que desembarcavam nas praias vindo dos navios, contavam com o hospital para cuidar dos seus feridos. MaryAnn ficou para trás com os dois bebês, mas, mesmo antes de Pete ir embora, o casamento deles já estava infeliz.

    Pete estava convencido da infidelidade de sua esposa. Hoje ele diz abertamente que ela é mãe de quatro, eu sou pai de três. O padrinho de Andrew, Delfin Labao, que vem da mesma cidade que Pete nas Filipinas e é chamado de tio Del pelas crianças Cunanan, conhece o casal desde sempre. Ele confirma que Pete acredita que Elena não é filha dele. Pete logo passou a tratar a esposa com desgosto absoluto. Ele abusou muito dela, diz Labao. Era um casamento muito ruim.

    Pete Cunanan nega ter sido fisicamente abusivo com a esposa, mas MaryAnn insiste que ele batia nela e puxava seu cabelo. A forte crença de Pete na infidelidade dela o encheu de uma fúria que o fazia acreditar que podia se comportar como quisesse. MaryAnn, que nunca foi muito sã, se tornou frágil e dependente com o passar do tempo, ainda que fosse manipuladora e passivo-agressiva ao mesmo tempo. A falta de dinheiro era uma fonte constante de atrito.

    MaryAnn gastava de forma desenfreada, e não hesitava em regular sexo para conseguir o que queria do marido. Eu usei sexo para forçá-lo a comprar as mobílias da sala de jantar, diz. Ela mimava as crianças com aulas de piano e brinquedos. Ela gastava dinheiro feito louca, informa Pete. Eu tinha três contas no banco, mas só uma com o endereço de casa. Se ela suspeitasse que eu estava escondendo dinheiro, faria birra o dia inteiro. Sua atitude despreocupada em relação ao dinheiro e os sonhos de grandeza de Pete eram uma combinação perigosa não apenas para a conta bancária da família, mas também para a atenção das crianças. Enquanto isso, MaryAnn continuou a engravidar.

    Em 1967, enquanto Pete estava com a Companhia, a segunda filha do casal, Regina, nasceu. Alguns meses antes do aniversário de Gina, em outubro, os Cunanan compraram sua primeira casa, por 12.500 dólares, na alegre National City, na área de estaleiros em San Diego. Espremida entre duas rodovias, a comunidade era bem diferente daquela que Andrew descreveria como sua origem tempos depois. Na época em que Andrew nasceu, dois anos depois, Pete havia sido transferido para o Hospital Naval em San Diego.

    O nascimento de Andrew não foi fácil. Delfin Labao conta que MaryAnn perdeu muito sangue e sofreu de depressão pós-parto alguns meses depois, um caso tão severo que ela nem conseguia pentear os cabelos. Ela precisou ser hospitalizada por três meses e era incapaz de cuidar do bebê. Foi o primeiro de muitos esgotamentos nervosos. Pete diz que tentou segurar as pontas cuidando como podia do bebê, que quase nunca chorava. A experiência criou um laço inquebrável. Eu criei aquele menino desde o berço, afirma Pete Cunanan. Eu troquei as fraldas dele e enchi as mamadeiras. Certa vez, quando ainda era um bebê, Andrew queimou os pés ao pisar num aquecedor que estava no chão, mas Pete o pegou e o beijou, maravilhado de ver que a criança não chorava. Andrew foi o favorito do pai desde o início. Pete arrumou um segundo emprego como técnico de laboratório para dar conta das despesas de quatro crianças e uma esposa incapacitada por sofrimento mental.

    Christopher e Elena, os dois filhos mais velhos, tiveram uma criação diferente daquela de Gina e Andrew. Sua mãe os chama de moleques de rua. Eles não tiveram as vantagens que os mais novos tiveram. Para todos os irmãos, deve ter parecido que Andrew era o favorito. Os irmãos o chamavam de a ovelha branca. Enquanto Christopher foi deixado para se virar sozinho, Elena, loira e bonita, começou a ter aulas de dança com uma senhora conhecida na vizinhança como Vovó Dançante, e assim a dança se tornou parte da vida da garota. Gina, também atraente, mas mais intelectual e moleca, não competia com a irmã mais velha. Ela cresceu recatada e cheia de segredos. Andrew, desde o início, era o príncipe encantado.

    Quando Andrew tinha 3 anos de idade, Pete se aposentou da Marinha com uma pensão integral depois de vinte anos como assessor de departamento. Seu sonho era se tornar corretor de ações. Enquanto trabalhava como técnico de laboratório, ele continuou estudando Administração de Negócios e, eventualmente, conseguiu um bacharelado em 1976 e um mestrado em Administração de Negócios em 1977. A meta era ascensão social dali em diante, Pete se vangloria. Onde houvesse gente rica, eu estaria lá!

    Quando Andrew tinha 4 anos, MaryAnn considerou usar o dinheiro que havia recebido de herança do pai para começar uma nova vida sem Pete. Mas, em vez disso, com a assinatura conjunta de Pete, ela comprou uma casa maior alguns quilômetro ao leste, em Bonita, por 96 mil dólares. O rancho de três quartos, num bairro de classe média com boas escolas por perto, significava uma grande melhoria.

    Bonita, com seu nome de origem espanhola, já foi a capital mundial do limão, um paraíso de limoeiros e fazendas de laticínios. Suas pedreiras forneceram pedras para a construção do Hotel Vitoriano Del Coronado em San Diego, cujos hóspedes pegavam o trem para passar o dia fazendo piqueniques na área da Barragem de Água Doce de Bonita, conhecida como a mais alta do mundo. Em 1916, um lado da barragem quebrou por causa de uma tempestade. As chuvas foram trazidas supostamente por um semeador de chuvas profissional, que se tornou a inspiração para o filme O homem que fazia chover. Mas quando os Cunanan chegaram por lá, no início dos anos 1970, os limões já tinham desaparecido e as fazendas de laticínios estavam indo pelo mesmo caminho. Contudo, Bonita ainda era um retiro equino, rústico, com um clima ameno em um vale luxuoso, cercado por cânions que davam para o Oceano Pacífico. Casas populares estavam apenas começando a cobrir as colinas quando os Cunanan se mudaram para a Rua Watercrest, 5777, a última casa no quarteirão ao pé de uma colina, em frente a um campinho de beisebol.

    A casa dos Cunanan era um típico rancho da Califórnia, mas na estrada acima de Watercrest havia casas ricas com estábulos, onde ainda havia um ar de área rural. Muitas pessoas que moravam em Bonita tinham dinheiro, e a maior parte dos residentes mandava seus filhos para a escola pública. Como Bonita era cercada de áreas de baixa renda, como Chula Vista, e também porque a fronteira com o México estava a apenas dezesseis quilômetros dali, havia um forte sentimento de hierarquia social. Os pais de Andrew sempre cuidaram para que ele tivesse tudo o que as crianças ricas tinham.

    Andrew era uma criança bonita com uma chama precoce. Quando estava prestes a se matricular na Escola Sunnyside de Ensino Fundamental, ele era uma mistura agradável de seus pais, com uma pele que parecia permanentemente bronzeada, sobrancelhas grossas e escuras e grandes olhos castanhos. Não era aparente de imediato que tinha sangue filipino, e ele nunca disse isso na escola. Era um garoto extrovertido e alegre no jardim de infância da Srta. Bobbie Hatfield. Embora seus pais acreditassem que ele fosse um gênio, a Srta. Hatfield, que lecionava havia mais de trinta anos, não o achou excepcional. Mas tudo o que importava era o que os pais achavam.

    Parte da história familiar que os pais de Andrew e seus irmãos contam na TV – além do fato de que se consideravam uma família normal e comum de classe média americana – é que Andrew já tinha lido a Bíblia antes dos 7 anos e podia memorizar longas passagens da enciclopédia. A leitura se tornou o mundo dele bem cedo. De acordo com o pai, Andrew escapava dos tumultos em casa com os livros. Andrew tinha um jeito de se defender. Ele sorria e saía. Ele tinha uma expressão do tipo, pelo amor de Deus, mãe, pelo amor de Deus, pai. Ele pegava sua enciclopédia, deitava na cama e lia.

    Pete lidou com o sofrimento do casamento ficando fora de casa até tarde e se ausentando o máximo que podia. Em 1979, quando Andrew tinha 10 anos de idade, ele começou um treinamento para corretor de ações na empresa Merrill Lynch – motivo de grande orgulho para ele – e o comunicou sem rodeios para a família. Ei, eu podia falar... Um cara que é um corretor de ações, com aquela posição social, aquela inteligência... E eu não tenho uma aparência ruim. Pete era um disciplinador severo, e todo mundo sabia que ele estava no controle. Se as crianças estivessem assistindo TV, por exemplo, e Pete chegasse, elas sairiam da sala para que ele pudesse se sentar e jantar sozinho na mesinha em frente ao aparelho.

    MaryAnn mantinha a casa impecável por ordens dele – havia forros de plástico em cima dos tapetes – e ficava em casa na maior parte do tempo. Ela se devotava aos filhos e, quando estava sozinha com eles, as coisas eram felizes, ainda que precárias: pressão demais poderia causar um colapso. Mas os Cunanan não socializavam muito e interagiam pouco com as pessoas da área. Os vizinhos consideravam MaryAnn gentil, mas excêntrica, com seu cabelo amarrado para trás em um coque firme, vestindo várias camadas de roupas mesmo quando fazia calor, e disposta a falar a primeira coisa que passava pela sua cabeça com uma vozinha de criança. Ela tinha problemas com o peso e tentava várias dietas para emagrecer. E, diferentemente do resto da Califórnia, ela não dirigia em estradas, apenas nas ruas do bairro.

    Na maior parte das vezes, MaryAnn dirigia para ir e voltar da igreja. Ela era uma católica muito religiosa, que mandava os filhos para a missa de domingo e para as aulas de catecismo. Esperava que Andrew se tornasse padre um dia, outro ponto de conflito com Pete. Andrew acabou se tornando um coroinha, e os meandros da igreja pareciam exercer uma forte influência sobre ele.

    Dado o clima quase perfeito de Bonita, a maior parte das crianças brincava na rua o ano inteiro, pedalando bicicletas, brincando de chutar latas, capturando lagartos no cânion perto dali e jogando beisebol. Mas não Andrew. Ele preferia ficar dentro de casa com a mãe, lendo sua enciclopédia e assistindo TV. Ele amava Audrey Hepburn e Katharine Hepburn, conta MaryAnn. Outro favorito seu era o seriado Mork e Mindy, com Robin Williams. Andrew sabia recitar os diálogos insanos de Williams de cor. Scott Ulrich, um vizinho dos Cunanan, se lembra de gritar Andrew para brincar na rua – eles precisavam de mais crianças para a brincadeira. Andrew chegou até a porta, mas a mãe o puxou de volta. Você não pode fazer isso, ela falou. Ele era mais solitário, diz Ulrich. Charlie Thompson,outro vizinho, considera Andrew a personificação de um filhinho da mamãe.

    A relação de Andrew com a mãe era complicada. A personalidade dela era fragmentada e, depois de ter sido feita de capacho pelo marido por anos, MaryAnn era carente e sufocante ao mesmo tempo. Ela se vangloria de que ela e Andrew eram inseparáveis quando ele era criança. Como os pais competiam pela atenção do garoto, a proximidade de MaryAnn com Andrew enfurecia Pete. Não se pode colar em um filho daquele jeito, Pete comenta. Ela o sufocava. Ela se amarrava nele. Era esse tipo de relação... Maternal, mas de um jeito diferente.

    Talvez MaryAnn pensasse que as outras crianças fossem muito brutas, mas ao manter Andrew isolado e só para ela, para vestir e mimar, ela estava ajudando a criar uma personalidade que se via como superior, o que o pai encorajava. "A única impressão que tenho de Andrew naquela época é que ele sabia que as coisas dariam certo para ele. Ele sabia que ia ser melhor do que seus colegas, melhor do que todo mundo ao seu redor, afirma Gary Bong, um colega de classe de Andrew durante o colegial. Esse senso de superioridade era a característica marcante dele."

    Pete também despejava atenção em cima de Andrew. Eles tinham apelidos um para o outro e falavam feito crianças um com o outro mesmo quando Andrew já estava no ensino médio. Pete diz que eles se referiam a certos acontecimentos engraçados como bobinho ou cocozinho. Ele era mais do que um filho para mim. Ele era um amigo. A gente saía junto, andava por aí. Eu dizia ‘ei, moleque, vamos sair para tomar um sorvete’. Ele aprendia muito rápido... Claro, a primeira coisa que fiz com o menino foi jogar um daqueles livros de etiqueta da Amy Vanderbilt em cima dele e dizer ‘quero que memorize cada porra de ponto e vírgula aí’. Se você quer crescer nessa sociedade, precisa de algo em que se apoiar, precisa ser melhor do que o resto.

    De todos os filhos que Pete teve, ele colocou mais atenção em Andrew, talvez porque ele era muito bonito. Não era saudável, diz Delfin Labao. Pete mimou o garoto, o fez sentir que precisava ser alguém, e talvez isso tenha mexido com a cabeça do menino, feito com que ele achasse que isso era tudo na vida. Pete estava começando sua tumultuosa carreira como corretor de ações. Depois de ficar tão orgulhoso do treinamento com a Merrill Lynch, ele não ficou por lá. Saiu depois de dois anos para trabalhar com a Prudential Bache. Ele ficou lá por treze meses antes de ser demitido por desobediência, o que significa que ele quebrava as regras da empresa. Mas, ao ver a forma como tratava o filho, ninguém imaginaria que ele tinha problemas.

    Em seus passeios até a sorveteria, Pete ensinava Andrew sobre marcas e imagem. Ele sabia que eu tinha ganhado dinheiro. A gente parava numa loja e eu dizia ‘você quer aquele terno Bally, aqueles sapatos Johnston & Murphy, uma jaqueta da Cerruti? Você gosta daquele blazer? ’, e ele virava e respondia ‘meu Deus, papai, olha aquele ali!’.

    Desde cedo Andrew se vestia com ternos e roupas elegantes, muito mais formal que as crianças da sua idade. Ele gostava de ser notado. Ele sempre foi uma criança barulhenta, muito chamativa, diz Charlie Thompson. No ônibus para a escola, Andrew falava tão alto no fundo que forçava todo mundo a se virar e olhar para ele. Ele imitava as bravatas do pai, mas isso não queria dizer que se sentia seguro.

    Na Escola Bonita Vista, que começava na sétima série e terminava na nona, Andrew se tornou parte do programa Menor Mentalmente Dotado (MMD). Para entrar no curso acadêmico acelerado, o QI mínimo era 132. Na terceira série em Sunnyside, o resultado do teste de QI de Andrew foi 147.

    Bonita Vista, uma estrutura que se alastrava na colina com dez quadras de basquete e três campos de futebol e beisebol, era muito competitiva socialmente. A elite da escola era dividida entre os Socs, as crianças sociáveis, e os Estouros, as crianças espertas do programa para dotados. Andrew era um estouro, daqueles barulhentos. Preto e rosa eram as cores da moda na época em que Andrew estudou por lá, entre 1981 e 1983, e os alunos votaram em quem era o mais bem-vestido. Andrew, levando as advertências de seu pai e de Amy Vanderbilt a sério demais, estava começando a se definir cultivando uma imagem de riqueza e boa procedência. Enquanto a maior parte dos jovens usava jeans, Andrew se diferenciava ao vestir calças cáquis e camisas Izod. Vestia um colete cor de argila e sapatos Sperry Top-Siders, além de investir em mocassins. Seu objetivo era se apresentar como um estudante sofisticado, oriental, estilo garoto de colégio particular, numa área em que a maioria dos outros garotos considerava o Colorado como oriente distante.

    Quando chegou na sétima série, Andrew já havia desenvolvido um padrão e uma queda para contar histórias baseadas no que havia lido, mas embelezadas para terem mais efeito. A grandiosidade perturbadora que marcaria sua personalidade já havia começado a mostrar as garras. Ninguém sabia que ele era metade filipino, e ele nunca fez amizade com nenhum outro aluno filipino. Ele sempre quis fazer parte da turma dos ricos, diz seu colega de classe, Gary Bong. Andrew dizia no ensino médio que tinha várias ações, relembra Andreas Saucedo, ele mesmo um corretor de ações hoje em dia. Ele dizia que era dono da fábrica de chicletes Wrigley Chewing Gum e da Coca-Cola. Estava sempre dizendo ‘meu pai fez isso e eu tenho ações daquilo’. Eu pensei comigo mesmo Deus, eu quero ações!". O fato de que os pais de Andrew nunca apareceram na escola e que ninguém nunca foi convidado para sua casa o protegia. Ele costumava até mesmo esperar fora de casa se alguém fosse buscá-lo. Claramente não queria que seu mito fosse quebrado.

    Muitos dos colegas de classe de Andrew se divertiam com a habilidade dele de enganá-los e de contar histórias divertidas e cheias de acontecimentos – ele havia coletado informações o suficiente de suas leituras para se destacar na multidão. As garotas, especialmente, achavam fácil conversar com Andrew porque ele se interessava por moda e celebridades. Mas Kristen Simer nota: Mesmo naquela época ele era um mentiroso patológico. Ninguém o levava a sério. E, para alguns, ele parecia bizarro – exibido e resguardado ao mesmo tempo. Naquela época, cuidar da aparência era coisa de mulherzinha, diz Charlie Thompson. As pessoas sussurravam no pátio ‘ele é bicha’, diz Lou Jamie Morris, que conhecia Andrew desde a primeira série.

    Andrew começou a andar com Peter Wilson, um garoto atarracado, filho único, que se tornou seu parceiro e adorador. Juntos eles memorizaram o Manual oficial do Mauricinho, entendendo-o mais como uma bíblia do que como uma sátira. Em época de Natal, os dois iam para o shopping fazer compras, mas gastavam todo o dinheiro em almoços no restaurante da loja Neiman Marcus – o ápice do luxo na cabeça de Andrew. Talvez porque MaryAnn era uma boa cozinheira, Andrew, que mais tarde se tornou um conhecedor de restaurantes e uma espécie de gourmet, demonstrou um interesse precoce em culinária como uma manifestação do seu esnobismo. Quando a Sra. Wilson perguntou o que ela deveria servir no aniversário de Peter durante o Dia das Bruxas, Andrew sugeriu caranguejo rachado. Eu estava pensando em pizza, disse ela.

    Era uma festa à fantasia, e Andrew foi vestido de príncipe de Gales, com blazer azul com um brasão e um lenço de cetim. Ele sugeriu para a alta, bonita e loira Jennifer January, uma amiga do programa MMD, que ela fosse como princesa Diana. O fato de que Jennifer se parecia muito mais com Diana do que Andrew se parecia com Charles não fazia diferença – na mente de Andrew, ele era um príncipe. Ele se achava – ‘eu sou da realeza’. E ele era. Ele conseguia convencer, Jennifer diz. Eu acho que ele procurava por algo que fosse melhor do que o lugar de onde veio.

    Andrew ligou para o pai de Jennifer, um piloto naval aposentado, para perguntar se podia levar a filha dele para almoçar lagosta. O pai dela não deixou. Incapaz de aceitar não como resposta, Andrew a convidou para ter o mesmo

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