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Existe quase sempre um elo, um aro, um anel, uma fotografia, um medalhão… objeto ou ideia que nos liga a algo ou a alguém. Afinal, não somos nós gregários e elementos da tribo? De uma qualquer tribo, a qual e por vezes, apenas acidental e circunstancialmente integramos, mal conhecendo o(s) outro(s) e a ele(a) nos ligando por um qualquer fio condutor geralmente por demais invisível ao olhar e sentir do outro elo. O da união. Do comum. Da partilha. (...) A escrita é limpa. Depurada. Despojada de adereços mas fulgente como a vida. A vida sem concessões.
— Paulo Neto, director da revista literária "aquilino"
mãos
prefácio
Existe quase sempre um elo, um aro, um anel, uma fotografia, um medalhão… objeto ou ideia que nos liga a algo ou a alguém.
Afinal, não somos nós gregários e elementos da tribo? De uma qualquer tribo, a qual e por vezes, apenas acidental e circunstancialmente integramos, mal conhecendo o(s) outro(s) e a ele(a) nos ligando por um qualquer fio condutor geralmente por demais invisível ao olhar e sentir do outro elo. O da união. Do comum. Da partilha.
Short stories mais fel que mel – como as vidas – perpassadas por uma qualquer angústia, insatisfação. Disfuncionamento. Como da(s) vida(s) arredada(s) da perfeição, aqui não ficcionada.
Recorrente a temática do elo
, aparece-nos a jusante do punctum. Mas até lá, determinante e determinada, numa busca ávida do perdido. Sim, provavelmente, os contos da Patrícia Maia Noronha, isotopicamente recentram-se na perda. E num continuum, em geral frustrado, do objeto buscado pelo sujeito, ambos banais actantes.
A escrita é limpa. Depurada. Despojada de adereços, mas fulgente como a vida. A vida sem concessões. É síntona das temáticas narradas. Nela, a concisão é por vezes um soluço e o vazio… transmuta-se de substantivo em adjetivo desnecessário. No positivo ou no negativo. Que se erigem em linhas duras de escrita, sem acessórios ou (im)pertinentes esteios.
Talvez a escrita da Patrícia Maia Noronha seja uma amálgama de flashes idos, entrevistos ou vividos. Não interessa, tanto a teia entretecida se enleia na realidade, tantas vezes ficcionada.
De cada um destes 17 contos fica um ressaibo acre, de algo que também é nosso. Parte integrante ou desintegrada das nossas vidas ou das vidas contadas, inditas ou sussurradas em parca confissão. A confissão que o pejo silencia. Talvez. Ou porventura – e isso que interessa? – 17 histórias de uma realidade plausível, possível, assazmente invisível.
As vidas felizes não têm história nem interesse. Só as infelizes na sua rutura com a linearidade. E se «trair é sair da fila» (Kundera dixit), aqui a traição é uma infidelidade às normas, aquelas que em fila ordeira à ara nos conduzem. Ou as outras, as que recusamos preferindo o risco paradigmático, de uma laceração premente com um referente quase jornalisticamente percepcionado e com a objectiva – de uma grande angular – no modo de abertura
, para que toda a luz incida cruamente e desnude os contornos de um sentir, assim tornado dizer.
Nesta partilha, o quotidiano não é delicodoce. E em quanto se suspende na/da narrativa, avistará o leitor seus dramas e anseios. Ou encontrará, em desvio, a razão de só os ler, sem os viver. Espécie de cleptomania de um sofrer alheio…
Agustina Bessa-Luís, no seu Dicionário Imperfeito
, escreve que «O humor é, nas pessoas, um elemento terrivelmente desconhecido. Pode unir um povo inteiro como o não fazem os costumes e a própria língua.» O humor, nos contos de Patrícia Maia Noronha, não obstante tudo o referido, também se presentifica, doseado com mestria, até quase pudor, de forma espontânea ou cáustica, com ironia leve ou calçadeira de um sarcasmo.
Se pode ser um artifício literário para amenizar momentos de tensional relevância, será também um traço distintivo do estilo da escritora, bem-sucedido, de conferir à amargura um matiz de carinho, ou ao desespero um traço subtil de humanidade.
Na narrativa cria-se dessa forma uma descontinuidade tensional e por instantes entrevê-se algo de gaio ou esperançoso no âmago de um viver pardo ou de um existir sem tino.
Humor como estado de espírito, humor como estado de ânimo, aqui, nesta escrita, surge-nos imprevistamente, quase como «um elemento terrivelmente desconhecido», ou inesperado, mas no fundo, doseado com a expressividade adequada, como elo a unir personagens, sejam protagonistas ou banais figurantes, dando ao ser ainda a capacidade de sorrir da própria desgraça.
— Paulo Neto,
Diretor da revista literária aquilino
Editor da plataforma digital www.ruadireita.pt
Fevereiro de 2019
Reconheci-te imediatamente por causa do anel, Leonor. Tinha acabado de vestir a farda quando o doutor me chamou. «Enfermeira Sandra», disse ele, encaminhando-me para a tua cama, «muita atenção com esta paciente, vítima de acidente rodoviário com traumatismos múltiplos». Depois disso, a voz dele transformou-se num eco longínquo.
Fui acenando que sim, competente, mas só o anel, isso sim, só isso me importava. O anel antiquíssimo que a tua avó te ofereceu, horas antes de morrer, e que passaste a usar, desde esse dia, com um carinho insuportável. «É lindo, não é?», perguntaste-me, a meio da aula de físico-química. Esticavas a mão pequenina na minha direção.
O brilho da pedrinha minúscula feria-me os olhos. Escondi as minhas mãos, gordas e avermelhadas. Quando cheguei a casa, pedi à minha mãe umas luvas de plástico para usar quando lavava a loiça, o chão, a casa de banho e a cozinha. Para usar sempre que lavava. A minha mãe ameaçou um estalo, de braço no ar. «Julgas que és alguma princesa?», gritou.
As luvas custavam dinheiro. A minha mãe não era má. O que ela queria era que eu não tivesse ilusões. Passava a vida a tirar-me ilusões. Não és uma princesa. Tens a mania que és princesa. Tens de aprender como a vida custa. Eu se calhar tinha a mania.
Roubei muitas coisas em tua casa, Leonor. A primeira vez que lá fui não conseguia sair da casa de banho, lembras-te? Fiz de conta que estava mal disposta. Podia ter vivido ali para sempre, entre os azulejos dourados e a banheira infinita. Dentro dos armários, era só produtos com embalagens elegantes e nomes em estrangeiro. Experimentei-os todos. Trouxe nos bolsos um creme de corpo com brilhantes, um batom e um frasquinho de perfume minúsculo.
Sempre que ia a tua casa roubava alguma coisa. Dinheiro, discos, roupa. Nunca desconfiaste, pois não? És daquelas pessoas que nunca desconfiam de ninguém. Lembras-te daquele CD que uma vez encontraste em minha casa e que agarraste toda contente: «Olha o meu CD! Pensava que tinha desaparecido!»? Eu, cheia de fúria, tirei-to da mão e disse que o tinha comprado. Mas era teu, era mesmo teu, tinha aliás um risco na capa que tu apontaste, tentando provar que aquele era o teu disco, e eu disse, aos gritos, que «todos os CDs têm riscos».
Por mais coisas que te roubasse, Leonor, nunca nada servia. Nunca chegava. Aquele casaco de ganga (sim, fui eu, sei que o procuraste por todo o lado e até te ajudei, não foi?) ficava-me tão apertado que eu parecia duas vezes mais gorda. Mesmo assim fiquei com ele, ainda o tenho. Sempre achei que seria o anel da tua avó a peça que faltava. Esperava uma oportunidade, um pequeno deslize. Só que tu nunca o tiravas. E agora cá está ele, oferecendo-se sem qualquer resistência. Puxei e soltou-se logo da tua mão, Leonor. As tuas mãos estão magras. Tentei pô-lo no anelar mas não serviu, só coube no mindinho.
Houve um único dia em que fui a tua casa e não roubei. Tinhas insistido para que eu fosse lá jantar. «Vai ser fondue, gostas?» «Gosto», disse eu. Mentia. Mentia com todos os dentes. Eu não sabia o que era fondue. Eu não sabia uma data de coisas. Fui para casa a decorar a palavra «fondiu», o caminho todo «fondiu», «fondiu». Quando agarrei o dicionário espantei-me ao ver que «fondiu» não leva i. Fondue. No dia do jantar quis mostrar desinteresse pela comida, mas mergulhei, com um prazer incontrolável, a carne suculenta no óleo quente e nos molhos de várias cores.
Durante uma série de dias dormi com o dicionário ao meu lado, decorava uma palavra nova por dia. «É o meu livro preferido», disse, por essa altura, para te impressionar. Tu, primeiro, deste uma gargalhada, pensavas que era uma piada porque «os dicionários não são os livros preferidos de ninguém». Depois, quando eu reagi, zangada, dizendo que era o único livro que tinha em casa, esse e a bíblia, os teus olhos ficaram vermelhos. Fizeste um esforço para não chorar, percebi.
Os teus olhos, húmidos de pena, meteram-me raiva porque eu não era estúpida. Eu não tinha livros, mas eu não era estúpida.
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