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Memórias de um paulistano
Memórias de um paulistano
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Ebook91 pages1 hour

Memórias de um paulistano

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Memórias de um paulistano relata acontecimentos da minha infância e adolescência que ficaram na lembrança. As histórias contadas aconteceram desde o começo da década de 1950 até meados dos anos 1960, época em que vivi nos bairros Lapa e Piqueri e estudei nas escolas públicas da região. As mudanças sofridas nesse período foram monumentais. A televisão, o telefone e o automóvel começaram realmente a ocupar o cotidiano. A região metropolitana de São Paulo passaria de pouco mais de dois milhões de habitantes para cerca de oito milhões. Vivíamos uma época bem diferente, com outros valores. Consumíamos menos e, talvez por isso mesmo, criávamos mais. Éramos espertos, ágeis, mas um pouco mais ingênuos. Conhecíamos nossos vizinhos e eles eram parte da nossa vida. Brincávamos com nossos amigos da rua e fazíamos boa parte dos nossos brinquedos.
LanguagePortuguês
Release dateJan 9, 2018
ISBN9788542813562
Memórias de um paulistano

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    Memórias de um paulistano - Wagner Rodrigues

    Prainha

    O erro da professora

    Para quem olhasse da Lapa de Baixo as colinas do Piqueri, era fácil visualizar um grande bloco amarelo em meio a poucas outras construções menores. Era o sobrado que pertencia a meu avô. Muito simples, mas amplo o bastante para acomodar três famílias. Possuía ainda dois acessos independentes em portões de madeira simetricamente postados. Das janelas dos quartos, o sobrado proporcionava uma vista muito agradável. Era a enorme planície do Tietê. A baixada abrigava autênticos campos de futebol de várzea, com suas lagoas e áreas de touceiras de capim onde a molecada caçava preá.

    Na época, o rio original corria sinuoso, ramificado, cortado por duas pontes que permitiam o percurso entre a Lapa de Baixo e o Piqueri.

    Debruçado na janela do quarto eu podia ver, à direita, a ponte da estrada de ferro Santos­-Jundiaí, antiga São Paulo Railway, antes de ser nacionalizada como pagamento de guerra durante o governo de Gaspar Dutra.

    Meu avô fizera carreira na ferrovia e se orgulhava de ter sido o maquinista do trem Cometa, o primeiro a descer a serra do Mar pelo sistema de cremalheiras. Foi ele, inclusive, quem fez a viagem inaugural desse percurso.

    Essa mesma janela se abria para cenas do cotidiano. Dela eu podia admirar as tempestades com seus aguaceiros barrentos a descer pelas valetas erodidas. Vez ou outra, via um bêbado cambaleante que tentava subir a rua. Um pobre rapaz epilético quase toda semana se estatelava no chão em convulsões. Felizmente era conhecido de todos e alguém sempre o socorria.

    Quase todo verão, na época certa, o Tietê inundava as redondezas. Eu podia passar horas vendo os moleques usarem as traves dos campos como trampolim. Na minha rua, à tarde, moleques desciam a ladeira nos carrinhos de rolimã feitos com engenho próprio, misto de tradição e criatividade.

    A poucos quarteirões dali ficava o Grupo Escolar Pio XII, escola pública das redondezas, onde cursei o primário a partir de 1959.

    Eu era um menino que pouco saía de casa, por índole e por excesso de zelo de minha mãe. Foi nessa escola que dei meus primeiros passos na socialização com as outras crianças do bairro. Lá, consegui meus primeiros progressos e tive meus primeiros destaques. Horrorosamente, foi lá que joguei minha primeira partida de futebol. Como não progredi muito, acabei sendo goleiro, com o tempo, até que razoável.

    Naquela época ninguém fazia pré­-escola. Alguns pais ajudavam os filhos a aprenderem alguma coisa em casa, antes do ingresso na escola formal. Muitas mães eram exclusivamente donas de casa, sem qualquer demérito, pelo contrário; mesmo na pobreza, tinham sua casa muito limpa e os serviços eram pesados. A roupa era lavada nos tanques de cimento. As brancas eram quaradas ao sol nos gramados para branquearem ainda mais, às vezes depois de ficarem de molho no anil, enxaguadas, torcidas, secadas ao sol e passadas com ferro a carvão ou elétrico. As panelas de alumínio eram areadas com sapólio e palha de aço e muitas vezes secadas ao sol para não perderem o brilho. Os assoalhos eram encerados com cera em pasta, para, depois de secos, ganharem lustro com o uso dos pesados escovões. Os frangos vinham vivos da feira e a comida era feita desde o princípio. Algumas vezes o próprio macarrão partia de farinha, água, ovos e sal, claro, além do tomate bem escolhido e de temperos colhidos na horta.

    Lembro­-me muito bem da professora mãezona, gorda e colorida. Dona Elza era especialista nos pequeninos.

    No primeiro dia de aula, Dona Elza perguntou à classe quem sabia contar até dez. Ingênuo, me voluntariei. Terminada a curta tarefa, perguntou se eu podia continuar e até quanto. Eu não tinha certeza de até quanto sabia contar, então respondi que podia contar pelo menos até cem. Terminada a tarefa maior, perguntou­-me se eu sabia escrevê­-los. Já ressabiado, disse que sim. Essa foi minha primeira lição de casa. Lembro­-me bem de resmungar a tarde toda na casa de minha tia e vizinha de como eu tinha sido idiota! Devia ter dito que só sabia escrever até dez!, dizia.

    Acho que não gostar de lição de casa já vem impresso no DNA.

    Por sorte, o primário seguiu como uma boa aventura. Meus professores eram bons instigadores da matemática e, com o tempo, fui apreciando os desafios da lógica. Os problemas me pareciam charadas a serem desvendadas, e fui aprendendo a sentir prazer naquele jogo.

    Já no quarto ano, Dona Júnia nos desafiou com o cálculo da área de uma figura complexa, com algumas poucas medidas e outras a serem deduzidas.

    Sabíamos área de quadrado, triângulo, paralelogramos e até do círculo! Mas aquilo era uma figura complexa e desafiadora. Com custo, consegui decompô­-la em formatos mais simples, cuidando de poder definir as medidas críticas para o cálculo das várias áreas, para, em seguida, somá­-las ou subtraí­-las, conforme o caso.

    Passado o tempo regulamentar, apenas dois ou três alunos tinham alguma resposta, mas todas distintas entre si e da qual tinha a professora. Assim, a solução da professora foi escrita por ela no quadro negro.

    Como não me convenci com o método na lousa, disse que havia feito de outra maneira. Dona Júnia pediu que eu fosse à frente e mostrasse minha solução. Quando terminei, a professora disse: Sua maneira está correta!.

    Não

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