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Escapando ao meu destino
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Escapando ao meu destino
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Escapando ao meu destino

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About this ebook

Valeria perseguia um sonho e encontrou um pesadelo.

Valeria, uma jovem de 19 anos, tem dislexia e vive em um rancho de família. Ela tem um sonho: escapar das obrigações familiares e viver como modelo, longe da sua granja. Um dia, ela sai de casa para demonstrar aos seus que é capaz de fazer outros trabalhos, caindo em mãos equivocadas.

Suspense, intriga, erotismo, drama, narcotráfico... o melhor thriller psicológico do momento.

LanguagePortuguês
PublisherBadPress
Release dateMay 16, 2019
ISBN9781393951940
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    Escapando ao meu destino - Manuel Delprieto

    ESCAPANDO

    AO MEU

    DESTINO

    ––––––––

    MANUEL DELPRIETO

    © De toda a obra: Manuel Delprieto

    Segunda edição revisada: dezembro de 2018

    Inscrita no Registro da Propiedade Intelectual com o número: 1809118334484

    Desenho da capa: Mónica Escoda

    Boneco do livro: Antonia García. servigraf.garcia@gmail.com

    ––––––––

    Todos os direitos desta obra são reservados, pelo que fica proibida a sua reprodução, ainda que seja parcial, por qualquer meio, eletrônico ou físico, sem o devido consentimento de seu autor:

    Manuel Delprieto.

    Contato: manueldelprieto@gmail.com

    À minha filha Daniela,

    à minha esposa Brilli

    e aos meus pais.

    Obrigado por seu carinho!

    Índice

    Índice...........................................................................................................................4

    Prólogo........................................................................................................................6

    EpitÁfio: O PrincÍpio dO fiM.........................................................................................7

    1. DO rancho À cidadE....................................................................................................9

    2. a oportunidadE que esperaVa.....................................................................................14

    3. UMa difícil decisÃO..................................................................................................18

    4. PaIXÃO NO cenote...................................................................................................24

    5. Mamma Chloe..........................................................................................................31

    6. FormaÇÃO, vocaÇÃO E talento..................................................................................36

    7. SeGreDos turVos......................................................................................................42

    8. O Escuro brilHo dos diamantes...................................................................................47

    9. Quando O mundo se DESMORONA............................................................................52

    10. NOSSO primeIrO ENCONTRO..................................................................................63

    11. ExSudando emoÇÕes..............................................................................................73

    12. Bondage................................................................................................................80

    13. Diamantes glaÇados................................................................................................85

    14. Um oasis na EscuridÃO............................................................................................90

    15. TROCA de CASAIs..................................................................................................96

    16. SOB os tentáculos dO Kraken.................................................................................106

    17. O PORÃo.............................................................................................................113

    18. O instinto dos animaIs...........................................................................................124

    19. a noITe das máscaras.............................................................................................132

    20. O beIJo de SingapurA............................................................................................139

    21. Entre ratOs..........................................................................................................148

    22. UMa mOrte inesperada..........................................................................................159

    23. Quando afloraM os sentimentos..............................................................................166

    24. O FIo dos títeres...................................................................................................174

    25. Hora de atuar.......................................................................................................181

    26. DaNos colateraIs...................................................................................................187

    27. DoIs coraÇÕEs para odiar.......................................................................................194

    28. O peso das aÇÕes.................................................................................................200

    29. O testE de GRAVIDEZ...........................................................................................204

    30. MiNHA festa de ANIVERSÁRIO..............................................................................210

    31. O dIa EM que OLHEI Nos oLHos DO destino............................................................220

    32. a vida desde O cÉU................................................................................................231

    Agradecimentos.........................................................................................................234

    Sobre O autor............................................................................................................235

    Prólogo

    Quando pensei em esgrimir esta história, propus-me a escrever um romance daqueles que ficam impregnados na memória para sempre e perduram na lembrança durante anos. Procurei mil histórias, mil lugares onde desenvolver a aventura que queria expor e encontrei um lugar onde os sentimentos, a malícia e a coragem vivem de mãos dadas: México.

    A história que transcende a seguir, eu a desenhei me assessorando através de recortes de notícias de jornais locais, onde os fatos superam a ficção aquí narrada. Muitas das cenas, torturas e circunstâncias são fruto da realidade que acontece atualmente no país centroamericano.

    Sem pressa, enfoquei um argumento lento que fosse evoluindo conforme vão sucedendo os capítulos, para que a história que se narra seja diluída como um doce licor em nosso paladar, difícil de se esquecer.

    Escapando ao meu destino é minha primeira obra de profundo cunho social, ainda que seus personagens não sejam reais e o cenário fictício. Trata-se de um ambiente atual que nos envolve a todos. Um romance que forjei com muito entusiasmo.

    Espero que desfrutem de sua leitura; e, se gostarem, recomendem-na. Claro, não contem o seu final.

    ––––––––

    Manuel Delprieto

    Epitáfio: O Princípio do fim

    Até hoje, ainda me pergunto se estou viva ou morta. É difícil apagar da minha mente aquela lembrança da minha mãe depositando flores sobre o meu túmulo. E ainda que ela tenha me respondido quando lhe falei, talvez eu seja apenas uma alma penada, das muitas que pululam por este velho rancho.

    Não sei com exatidão se em algum momento me deram um tiro na cabeça, golpearam-me com algum objeto de ferro ou se, simplesmente, saí ilesa daquele inferno. A verdade é que, desde que aconteceu todo aquele calvário pelo que passei, eu me sinto em paz, em harmonia comigo mesma, pois aprendi uma lição depois de ter sofrido tanto maltrato: amar a mim mesma.

    E se hoje conto esta história é porque preciso falar, contar-lhes como foi o meu declínio pessoal. O bilhete mortal que me vendeu o destino quando eu era tão somente uma menina rancheira, e tentava escapar ao meu destino.

    Tudo começou quando, um dia, chegou em casa um filme: "Ikiru", de Akira Kurosawa. Veio das mãos da minha prima Isabel, que era muito aficionada em cinema. Eu mal tinha treze anos quando aquele poema, cantado pela voz de Takashi Shimura, tocou a fibra mais delicada da minha mente, entremesclou-se com os meus sonhos e gritou no mais profundo do meu peito:

    "A vida é curta, apaixone-se garota,

    antes que o vermelho dos lábios desapareça,

    antes que o sangue quente se esfrie.

    Não terá nunca assegurada a vida de amanhã.

    A vida é curta, apaixone-se garota,

    antes que a cor negra do cabelo perca a sua força,

    antes que a chama do coração se apague.

    Não voltará nunca a se repetir o dia de hoje..."

    Talvez soe estúpido que o poema de um filme em preto e branco fosse a espora que regesse o meu ritmo de vida a partir daquele dia, mas assim foi.

    Desde então os concursos de beleza se converteram em minha paixão, melhor dizendo, em minha obsessão. Eu os observava todos os anos pela televisão, sonhando em desfilar naquela passarela cheia de luzes, com vestidos de lantejoulas e cercada de aplausos. E, em meu afã por me ver ali, fiz muitas coisas, já que a ação impulsiona a conseguir resultados: matriculei-me na escola de Arte Dramática; consultei com nutricionistas; poupava as moedas de meu almoço para poder comprar maquiagens e, inclusive, trabalhei como recepcionista para marcas comerciais em diferentes hipermercados, dando meus primeiros passos. Apesar de que minha mãe não via inconveniente em relação à minha vocação, meu pai acreditava que era desperdiçar meu tempo e que, em vez disso, deveria pensar seriamente sobre em que gostaria de me dedicar dentro dos trabalhos do rancho.

    Minha dislexia tinha se tornado um inimigo a combater no meu dia a dia. Mal podia desempenhar um trabalho escrito sem cometer algum erro ou anotar alguma cifra numérica trocada de ordem.

    Meu pai, don Gustavo, era um sujeito moldado à antiga. Eles pertenciam à terceira geração, haviam herdado um vasto terreno formado por vários hectares de campo, onde as cabeças de gado bovino pastassem livremente. Aquele rancho pecuarista havia mantido uma rigorosa e respeitada disciplina hermética uma vez que, unicamente, era cuidado por pessoal proveniente da família, por sangue direto ou por casamentos arranjados e enlaçados por separação de bens. Tanto a mamãe quanto o papai, quando escutavam os meus sonhos, sempre os atribuíam à adolescência, mas os anos passavam e eu continuava firme no meu propósito.

    Não havia argumento nem reflexão que valesse em um cara a cara com o meu pai; toda conversa se tornava um pulso estéril, de onde tirávamos o pior de nós mesmos. Meu pai nunca dava seu braço a torcer, ante qualquer ideia vanguardista que golpeasse sua dura mioleira composta por tijolos de pensamentos conservadores. Mas aquilo não era o pior, o mais entediante era ouvir a batida história sobre como seu avô havia levantado aquele rancho do nada; e não havia cigarro ou tequila que o calasse; era a máxima imagem de poderio Méndez e a maior força de vontade no mundo, aos olhos de meu pai.

    Eu sabia que se não acedia rapidamente aos desejos de minha mãe de abaixar a cabeça em cada sermão, ele ficaria contando seus contos durante mais de três horas. Assim que, cravava minha vista no chão de lajotas pardas, e me deixavam me retirar quando respondia favoravelmente ao primeiro Está me entendendo, pirralha?.

    As terras do rancho O sumidouro do Diabo foram a bênção da família Méndez: amplas, férteis. E, naquela época, baratas. O desenvolvimento do campo por parte do meu bisavô e depois pelo meu avô havia dado seus frutos, resultando a longo prazo em uma empresa muito próspera. Estávamos a poucos quilômetros do rio, em terras onde se colhiam bananas, limões, café e, principalmente, cacau. Havia outros cultivos mas estes eram, basicamente, para o consumo de todos os trabalhadores e familiares. As vinte cabeças de gado, com o passar de três gerações, haviam se tornado um centenar, fazendo do negócio de venda de leite uma idéia vencedora por parte de minha família paterna. Por parte da família da dona Irene, minha mãe, trouxeram sua família para estabelecer uma aliança territorial e comercial, com o fim de levar adiante o rebanho caprino e bovino, ao que se dedicavam já havia vários anos. O terreno se estendia por vários hectares e o cercado demonstrava que o rancho não tinha sido explorado em sua máxima capacidade. Era tão grande que até mesmo os funcionários alheios à família tinham umas casinhas modestas onde eles e suas famílias viviam de maneira confortável.

    Não podia negar que na parte econômica tivéssemos carências, mas a essência do problema era simples: não me via servindo como granjeira no negócio da família. Eu aspirava algo mais, longe do suor e da pele curtida pelo sol. Talvez o fato de ter um rosto pouco moreno, uns olhos bonitos e um corpo restrito de carboidratos e gorduras trans, catapultavam-me à busca de uma vida cômoda, em hotéis de luxo e jantares com pessoas interessantes, que não estivessem porfiando sobre como tosquiar animais ou quais adubos eram mais apropriados para o cultivo. Não sei até que ponto eu poderia ser estranha em minha família -nem sequer minha prima Isabel, dois anos mais velha que eu, conseguia me compreender-, mas havia algo, um ponto de rebeldia em mim que fazia com que quanto mais me negavam as coisas, mais me empenhava em ir atrás delas. E como ditava o verso daquele filme:

    "Não terá nunca assegurada a vida de amanhã.

    A vida é curta, apaixone-se garota..."

    1. Do rancho à cidade

    Em algum rancho de Chiapas, no México

    Na madrugada notei como uma mão acariciava meus seios desnudos. Na minha casa do rancho dizem que habitam almas penadas, entre outros entes, mas o espírito que me tocou era tão verdadeiro e real como eu. E mais, tem nome e sobrenome: Raúl Cabrera, que tem um costume muito peculiar em suas visitas, que era me deixar uma rosa vermelha junto ao travesseiro.

    Lembro-me das cortinas dançando ao blues do vento, a terra úmida do rancho, e a vidraça aberta escancarada emoldurando um belo amanhecer. Dizem que os últimos instantes de vida com alguma pessoa se gravam na mente de uma maneira nítida e inapagável, e talvez essa seja a razão pela qual hoje eu conto esta história, que não quero nem posso apagar de minhas lembranças.

    Aquela calorosa manhã do início de março mudaria o rumo da minha vida para sempre. Como todos os dias, levantei-me tarde; Lavei o rosto e, com uma maquiagem suave, desci para comer alguma coisa. Meu pai don Gustavo -que era assim como eu o chamava-, bebia com goles longos o seu enésimo café, encharcando seu bigodão na xícara. Normalmente, ele não esperava que eu me levantasse para ir trabalhar mas, devido à alta estima que ele tinha do negócio, hoje haveria reunião familiar no pátio principal da casa e uma de suas prioridades era me convencer de que formasse parte da planilha de trabalho.

    Dona Irene, minha mãe, constantemente falava comigo para me fazer partícipe em alguma ideia em benefício do rancho e para que, dessa maneira, minhas brigas com o meu pai amainassem. Eu respondia taxativamente que a única coisa que eu poderia gostar de um negócio rural era a criação de equinos e o mundo do hipismo. De fato, tinha uma égua alazã, Balenciaga, de nome como o desenhista parisiense. Ela era o único vínculo que me unia ao trabalho pecuário; assim que a doma e a equitação eram a única coisa que me retinham, de uma maneira mais ou menos fácil, de poder estar rodeada por pessoas endinheiradas que conseguiriam me tirar do odioso rancho.

    Aos meus dezenove anos, sonhava em voar do negócio da família. Tinha tomado tanto asco a tudo, que detestava tudo o que tinha a ver com o rancho: odiava o cheiro de esterco, os carros velhos, as camisas xadrez, os chapéus, as moscas. Mas, sobretudo, odiava que predestinassem minha vida, de acordo ao desejo de meus pais.

    -Valeria, preciso que tome as rédeas de sua vida, e que assuma uma posição. Paguei por sua carreira de marketing com o fim que fizesse algo proveitoso em prol da empresa. Ainda assim, vejo que teremos de colocar alguém em seu lugar. Estou pensando em sua prima Isabelita.

    -Por mim, é como se colocar seu rosto nas caixas de leite!! Não sei se falo em latim ou em maia iucateque. Meu projeto de vida está fora deste lote rural! -soltei indignada.

    -Logo mais teremos o almoço de família, e virão os quarenta membros com todos os seus filhos. Assim que não se perca muito, Valeria.

    -Poxa vida, eu me esquecia. Que divertido! -ironizei.

    -O que prefere? Ajudar-me a limpar um pouco o pátio ou ir comprar as verduras que faltam para a cozinha? -minha mãe me deu a escolher,.

    Tinha que ver o Raúl mais tarde e queria estar janota para ele, assim que nos meus planos não entravam estragar as minhas unhas de gel. Além disso, minhas tias estariam prestes a chegar e não tinha vontade de ouvi-las dizer que eu fazia tudo errado, e depois acabasse de babá de todos os meus primos pequenos.

    -Vou fazer as compras na cidade. Dê-me a lista! -eu me ofereci.

    Sair do rancho era bastante tedioso, estava longe da civilização. Éramos como maias modernos, só que agora conduzíamos veículos motorizados. Mas os varões continuavam tendo mais privilégios que garotas. Mal completei a maioridade, obrigaram-me tirar a carteira de motorista e me passaram uma das Pick-up Tornado mais velhas que eles tinham, nem um pouco glamourosa, já que o reluzente Dodge Dakota era para o meu irmão Miguel. O bom sempre era para ele, pelo mero fato de ser homem.

    Após conduzir durante uma hora e quinze minutos, ainda não tinha chegado à cidade. Minha Tornado com treze anos estava a ponto de sofrer um enfarte do miocárdio. O calor sobre o asfalto estava para fritar um ovo sobre o capô e o ar condicionado havia ficado sem gás, de modo que ligar a fusão para receber ar fervente diretamente no rosto não era a melhor opção. O rádio era fastidioso, o CD da Katy Perry parecia que estava prestando seus últimos serviços, o da Sia me fazia lembrar de um ex do ginásio e o rádio só captava emissoras com canções sertanejas.

    Maldita seja! Duas horas de estrada escutando a menina do exorcista. Nem USB, nem novo equipamento, nem entrada auxiliar para conectar meu iPhone. Assim fica complicado encontrar o homem dos meus sonhos! Praguejei naquele forno andante, implorando a Deus por clemência.

    Encontrar o par perfeito, era um pensamento que me deprimia. Pois para um garoto de rancho seria algo normal aparecer em um encontro com este carro cheio de respingos de barro, e com o pára-choque amarrado com fita adesiva. No entanto, para um sofisticado jovem da cidade, era vergonhoso. Corria à boca miúda que eu era uma garota rude, com bigode e pouca higiene. Esse era o injusto rótulo que me seguia por ser do campo, mas eu lutava para mudar a minha aparência: tingia o meu cabelo de loiro escuro e me maquiava em um tom mais claro que o original; garotas assim como eu são chamadas: gueritas de rancho.

    A questão das ofertas de trabalho se complicava, devido à minha dislexia. Era uma mancha no meu currículo de trabalho. Não importa ter estudos nem ser trabalhadora ou assumir responsabilidades, ninguém queria uma pessoa que mudasse as palavras de ordem, que confundisse esquerda com direita ou lesse uma frase mal escrita sem perceber os erros de ortografia. O pior era que subestimavam a sua inteligência, como se tivesse algum tipo de atraso -parecia tudo tão injusto-, como se por inverter espelhando uma letra b ou uma e, eu já não fosse capaz nem de dobrar roupas.

    A frustração, na metade da minha catarse, levou-me a um ato impulsivo que eu expressei esmurrando com o punho justamente onde estava o leitor de CD. E comecei a escutar como se a agulha de um fonógrafo pulasse de linha em linha em um disco de acetato; ali eu soube que já poderia me despedir de continuar os restantes vinte minutos do caminho com algum som que fosse do meu mínimo agrado.

    Gritei de desespero, sem me dar conta de que havia um buraco na estrada e que estava pisando fundo no acelerador; um carro patrulha da polícia vinha na pista contrária e, devido à minha distração, encontrei-me com eles frente a frente. Esquerda e direita se mesclaram em minha mente disléxica, vertiginosamente pisei fundo o pedal do freio tão forte que o pedal quase saiu por baixo do veículo. As marcas dos pneus queimaram o gasto pavimento; enquanto isso, os agentes fizeram uma manobra impossível se esquivando do robusto pára-choque da minha Pick-up. O carro patrulha ligou as sirenes naquela desértica estrada e, de arma na mão, saíram dois policiais dispostos a abater a esta kamikaze de rancho, cuja vida ia se despencando.

    -Saia do veículo imediatamente! E não faça nenhuma bobagem! -advertiram os policias.

    Meu rímel havia escorrido pelas lágrimas e meu brilho labial estava derretido um pouco devido ao calor.

    -Isto realmente dá nojo! -disse, enquanto procurava na minha bolsa por lenços descartáveis para limpar aquele desastre cosmético; naqueles momentos meu celular começou a tocar, era o Raúl.

    Rejeitei a ligação, saí com o olhar baixo, acompanhada do barulho das dobradiças da velha porta do meu carro. Se alguma vez pensei em me humilhar, aquela situação superava ao verbo.

    -Mãos para cima! -requereu um dos policiais uniformizados.

    Ao levantar as mãos, olhei nos olhos daqueles que me levariam de cabeça ao calabouço. Mas um deles, o mais jovem, começou a sorrir. Seus dentes eram pérolas brilhantes, com uma tez angulosa que se encaixava perfeitamente na camisa de algodão branco que despontava de sua camisa azul. Seu torso se marcava como uma escultura naquela vestimenta ajustada. Sobre o peito de suas camisas havia um bordado com os seus nomes.

    -Jamais pensei que deste carro caindo aos pedaços saísse um anjo! -disse o agente chamado Flores, acotovelando seu amigo em tom de provocação.

    -Com razão queria suicidar, andar neste carro é uma penitência! -espetou o mais bonito.

    Não podia acreditar, estava prestes a desfalecer ali memo, e eles estavam zombando de mim. Sem dúvida, algo estava errado na minha vida.

    -Senhorita, existem financeiras muito boas que lhe permitem pagar o carro em confortáveis parcelas. A senhora sabe sobre esses serviços? -ironizou o agente mais baixinho, usando aquela voz sedutora que faltava ao seu belo companheiro para ser perfeito.

    -Estúpidos! Estou prestes a vomitar de susto e vocês estão com piadinhas.

    -Temos o direito de rir, sobrevivemos a uma tentativa de homicídio. A propósito, sou o Sargento Omar Espinosa e este é o meu parceiro Facundo Flores.

    -Sinto muito de verdade, eu me distraí com o rádio, colocando um CD -eu me desculpei.

    -Os Tornado têm rádio? Pensei que eles tinham um gramofone de série -ironizou o Flores.

    A atitude daqueles dois agentes se tornava pedante no meio daquela estrada secundária, onde o sol da manhã abrasava tudo o que se encontrava sob seu domínio. Então ambos se aperceberam de meu rosto de terror e deixaram as brincadeiras de lado, para se tornarem profissionais.

    -Vamos lá, garotinha. Você dirigia em direção contrária de encontro a dois policiais, e a uma velocidade não adequada para a via. Qual o motivo de tanta pressa? -perguntou o mais moreno.

    -Havia um buraco no chão, bati a roda e perdi o controle -mudei o argumento.

    -Documentação? -requereu o agente bonito, entalhado naquele uniforme azul-marinho, com a bandeira tricolor no braço esquerdo.

    Eu me virei para pegar a documentação e, naquele instante, escutei um comentário sobre o meu traseiro. No porta-luvas havia uma infinidade de ferramentas, guimbas e cartões de visita. Ao me virar, ali estavam os dois hipnotizados com um sorriso perverso, possivelmente estavam drogados.

    -Vamos ver de onde saiu este anjo caído. -dilucidou com ares de mistério o sargento, enquanto agarrava com força a minha documentação.

    Em seu dedo polegar luzia um anel de prata com uma lula coberta por pequenos diamantes, o que lhe dava uma aparência de malvadão. Supus que era bijuteria, pois o salário médio de um policial não dava para diamantes, apesar de que dispor todas as noites daquele corpo de academia, suponho que compensaria seu escasso salário.

    -Aposto cem pesos que você é parente chegada da Jennifer Lopez! -asseverou o simpático agente, com seu sorriso amarelado.

    -Mora no rancho Sumidouro do Diabo. Isso fica longe daqui -testificou o Omar.

    -Leite os diamantes? Esse leite tem uma boa reputação. Tem algum brick de cortesia para as suas vítimas?

    Não era novidade para mim o assunto dos subornos. A maioria dos agentes comutariam a sua multa por alguns pesos. Mas o problema era que eu tinha apenas a quantia da compra e algumas moedas para poder estacionar. Era ridículo.

    -Com o que você trabalha? -xeretou o Flores.

    -Eu me preparo para ser modelo e desenhista -eu os respondi cotundente, certa do que queria.

    -Outra que sonha em acabar com um gordo milionário -espetou o Flores, sem que eu gostasse do seu tom.

    - Algo a esconder? Porte de armas, drogas, anel de casada? Terei que revistá-la: ponha-se contra o capô, com as pernas separadas -disse o musculoso agente.

    Sem dúvida, aquela dupla de policiais cômicos pareciam ter vindo de um filme de Woody Allen. Ainda que, realmente, o sargento Espinosa me lembrava um galã de telenovela. Agora eu o tinha em minhas costas, subindo com leves toques por cima da minha legging branca, ao longo das minhas pernas. A lataria do capô derretia minhas impressões digitais, mas não superava aos seus dedos que me abrasavam as pernas com seu firme tato.

    -Plaft! -finalizou a revista com uma suculenta palmada nas nádegas.

    -que demônios está fazendo? -eu me virei irritada-. Acha que esse uniforme lhe dá o direito de me manusear?!

    -Acabou de pagar a sua dívida com a lei! -acrescentou o bonitão sorrindo com aqueles dentes perolados, entregando-me a documentação.

    -Então é isso? Não vão me sancionar? -estranhei.

    -Mentiria se dissesse que não desfrutaria em algemá-la. Mas com as imagens que nos presenteou, não seria cavalheiresco de minha parte -acrescentou o Omar Espinosa.

    -Adeus bombom. E reconsidere! Não desperdice sua vida sem deixar, pelo menos, descendência nas Chiapas. Meus filhos têm o direito de encontrar uma pirralhinha decente! -espetou o Flores sorridente.

    Estava no acostamento, fora do carro, e o shock ao que me havia submetido a situação me deixou uns cinco minutos refletindo sobre o que havia acabado de acontecer.

    A sequência era contraproducente: suicídio, multa, bonitão, engraçado, presa, palmada. Por um momento, preferi que tivessem me levado a um escuro calabouço e tivessem me privado de retornar ao rancho por uma temporada. Suponho que me despertar vendo aquele sorriso do sargento me faria suportável a estância atrás das grades.

    Uma vez assimilada a situação, retoquei a maquiagem e me dispus, mais uma vez, a chegar à cidade. Girei a chave do contato e coloquei rumo ao meu destino, sem música e com o coração cavalgando sob o meu peito. Naquele instante, uma nova mensagem chegou ao meu celular, era o Raúl: Precisamos conversar, é muito importante, espero por você no cenote, por volta das 4.

    E agora, o que quereria o inoportuno do meu namorado?, pensei. Tinha a habilidade de me ligar quando eu estava sentada na privada, dirigindo ou em uma reunião de trabalho. Respondi com um emoticon de uma mão com o polegar para cima. E embora seu tom gramatical parecia mais sério que o normal, não deixava de me perguntar às vezes se éramos namorados ou apenas trepamigos.

    Nós nos vemos às escondidas, como se nossa relação fosse um segredo, pensava. Mas o certo é que, nos costumes retrógrados dos Méndez, os varões tinham que pedir nossas mãos aos nossos pais, e ele, de momento, não o havia feito.

    2. A oportunidade que esperava

    Por fim, cheguei à cidade sem maiores dificuldades, embora o desafio daquele nefasto dia começaria uma vez alcançado o centro da cidade, onde o engarrafamento provocaria que o calor se incrementasse muito além dos níveis normais suportáveis para alguém com maquiagem a prova d'água

    Antes de chegar àquele inferno, passei outros vinte minutos tentando chegar ao meu destino. Encontrar um estacionamento livre era, estatisticamente, impossível. Os estacionamentos públicos estão cada dia mais em alta como negócio rentável nos arredores da praça, devido a que a concentração dos negócios pecuários havia se trasladado a um novo edifício que substituía o velho mercado.

    E, quando menos esperava, finalmente surgiu o milagre e consegui estacionar.

    Assim que saí do carro, tirei da bolsa os óculos de sol e esperei até que o encarregado do estacionamento marcasse o meu bilhete de estacionamento com uma impressora matricial que parecia ter sido adquirida nos anos cinquenta. Enquanto isso, recebi um novo WhatsApp do Raúl, com uma mensagem misteriosa: Quero ser eu quem lhe explique cara a cara.

    As mensagens iam tomando um tom preocupante. O que quererá me dizer? -ia pensando-. Vai terminar comigo?

    Transitar pela cidade me apaixonava, havia gente interessante e variada, não como no campo onde os pais e os filhos parecem clones campestres.

    O amálgama urbanita sempre me surpreendia, ajudava-me a captar idéias, a descobrir qual era a vestimenta de moda e os looks que arrasavam pelas ruas; a mistureba urbanita sempre foi comigo. E não há maior satisfação, para mim, que passear contemplando os mostruários, cheirar os perfumes que se entremesclam com o ar da rua, saborear o rico aroma que desprendem as xícaras de café nos terraços dos bares e o cheiro dos fornos das padarias, observando as novas possibilidades de emprego que se oferecem nas ruas. Talvez o fato de viver em isolamento rural potenciava meus sentidos como se fosse uma grávida de fino olfato.

    E, acima de tudo, se algo me estimulava a aguentar quase hora e meia daquele trajeto infernal, era o poder conhecer àquele rapaz elegante, charmoso e milionário que me tiraria do rancho para sempre. No fundo, era estranho: as pessoas iam para o campo respirar o ar puro, e eu escapava do campo para respirar este oxigênio adulterado.

    Sendo franca, eu tinha um certo vício por chamar a atenção, e por isso vinha acompanhada com minhas botas vaqueiras de lantejoulas e ajustada legging branca, que entalhavam este corpo trabalhado desde a puberdade. As cantadas mais clássicas não demoravam a chegar. Já era um completo hino de boas-vindas em minha incursão urbanita:

    A queda doeu? Esses anjinhos têm as bundinhas cada dia mais lindas. Queria ser um encanador para destampar seu buraco. [...]

    Após ouvir uma pequena dose de bajulações anti-libidos, decidi colocar os fones de ouvido do celular e tocar a todo volume minha canção favorita: "Tiktok", de Kesha.

    É impossível, tão sequer, pensar em responder a eles pedindo respeito. Eram asquerosos de aparência e, para finalizar, são covardes de gangues que em algum momento podem se sentir atacados. A melhor maneira era ignorá-los.

    Olhei para a tela do meu celular, eram apenas 12:35 pm e o dia começava a me parecer um asco. Mas a aventura ainda não tinha terminado, ainda tinha que ir à central de víveres para comprar os vegetais e as especiarias que não cultivávamos nas terras. O mercado estava repleto de gente, mulheres fazendo as compras para suas famílias, eram como robôs automatizados por seus maridos. Prendi a respiração ao passar pelo açougue e peguei algumas verduras que estavam bem em frente ao cheiro de carne morta.

    Em seguida, desliguei a música e procurei nas prateleiras por tudo o que haviam me pedido. Fui para a área de importações, um lugar que, acima de tudo, parecia o território onde os saqueadores de caminhões nas fronteiras iam vender seus produtos. Uma batidinha em uma caixa, uma embalagem com cores diferentes da apresentação original ou uma falha na impressão, fazia com que o valor dos produtos cosméticos baixassem quase cinquenta por cento do valor original de mercado. Ali, naquela seção puramente feminina, encontravam-se dois homens elegantes e bonitos, que removiam as caixas imitando o meu gesto. Pareciam a segurança do presidente do México, pelo porte de suas costas e aqueles revólveres escondidos sob o paletó que mostravam, sem querer, toda vez que pegavam um produto.

    -Saia do seu esconderijo, seu pilantra!! -irrompeu, violentamente, um jovem com um lenço no rosto e uma flamejante pistola na mão-. Este território não é do Marcos Cruz o Kraken!

    Imediatamente, as bancas de peixe e açougue se desbarataram e logo se unificaram, como se fossem um rebanho em uma mesma direção. Fiquei sozinha, com a cesta de compras na mão e o coração batendo a mil, junto àqueles dois morenos, que cheiravam deliciosamente. Um deles, de olhar marrom avermelhado, fez para mim um gesto de silêncio com o dedo e ambos se agacharam à altura das minhas coxas; eu os tinha, praticamente, nas virilhas ofegando. Um pela frente e outro por detrás de mim, com as mãos aferradas às minhas pernas. O stand chegava à minha cintura, e eles se sentiram seguros naquela trincheira de batons, tinturas e lápis de olho; Se não fosse pela situação, aquilo seria a preliminar de um bom sonho erótico.

    -Você viu por aqui dois pendejos[1] morenos, vestidos de terno? -o sicário me interrogou, apontando-me de longe.

    Eu os tinha ali embaixo: um homem elegante e um jovem muito atraente, ambos agarrados às minhas pernas. Eu tinha apenas que dizer a ele que estavam ali, mas possivelmente aquelas balas não distinguiriam um tão improvisado trio.

    -Sss... sim! -titubeei-. Foram pela outra porta, agorinha mesmo!

    O pistoleiro, vestindo uma calça de moletom e uma camiseta branca, correu como alma que o diabo leva, na direção indicada.

    Os dois sujeitos se levantaram, sem perder de vista o sicário que se perdia entre as bancas de comida empilhadas, e começaram a me sussurrar, cada um em um ouvido, como se eu fosse uma pequena central telefônica:

    -Leonardo, vamos sair daqui. Voltemos para Tuxtla Gutiérrez de uma puta vez.

    -Nem pensar, seu pai me contratou para lhe ensinar o negócio. E acabar com os contra faz parte do plano. Entende, Alexander? Um dia, você será o chefe.

    -Posso ir agora? Tenho o carro estacionado em zona de pagamento -interrompi seus leves murmúrios que, apesar da tensa situação, eram para mim agradáveis.

    -Perdoe-nos, bela dama! Obrigado por nos salvar a vida -o trintão de rosto varonil tirou um maço de notas e as colocou perto da minha mão-. Tome, pegue uma nota de quinhentos pelo seu serviço de encobrimento.

    Em um gesto impulsivo, talvez destilado pela situação, peguei a nota cor de café que se deslizou, e nada mais, do resto de papéis encurvados. Leonardo, assim se chamava o que me deu a gorgeta, enfiou-as em seu bolso e saiu à caça daquele mascarado.

    Sem sombra de dúvidas, nunca havia estado no meio de um tiroteio de narcotraficantes, nunca havia tido dois homens tão bonitos tão perto de minhas zonas erógenas, mas tampouco uma nota de quinhentos pesos sobre a palma da minha mão.

    No anverso pude ver, pela primeira vez, aquela pintura de Diego Rivera: O desnudo com gansos-patolas, na que uma modelo posava de costas diante de algumas flores. Então soube o que significava ser objeto de olhares, com um corpo que ficaria imortalizado para sempre, impresso em uma tela de papel de algodão. Sim, realmente me provocou inveja.

    Uma vez normalizada a situação no mercado, as filas de barraquinhas voltaram a se recompor, sem deixar de cochichar sobre o acontecido. Muitos reprovavam a minha atitude; outros falavam sobre essas cenas que eram tão cotidianas no país e da falta de possibilidades em Chiapas para prosperar.

    O rugido das sirenes da polícia penetrou no mercado, alertando sobre a presença dos agentes e, possivelmente, de alguma ambulância. Algum dos três sicários deve ter sido assassinado, mas as pessoas estavam tão acostumadas com a violência e os tiroteios que nem sequer saíram para ver que tragédia havia acontecido.

    Enquanto isso, a curiosidade quicava em minha mente sobre o ou os candidatos da parca: Leonardo, Alexander ou o sicário mascarado?, eu me perguntava.

    Quando cheguei ao balcão da minha usual banca de confiança, percebi que havia um estranho anúncio na coluna, preso com fita adesiva industrial e com alguns pequenos papeizinhos cortados para que se arrancasse somente o número de telefone escrito neles:

    SONHA EM SER UMA GRANDE ESTRELA?

    A casa de modelos de Mamma Chloe abre suas portas em Tuxtla Gutiérrez.

    Vagas limitadas.

    ...

    Não se requer experiência prévia.

    ESCOLA PARA MODELOS.

    PEGUE UM FOLHETO, E CONQUISTE A VIDA DE GLAMOUR QUE  MERECE.

    A peixeira, Inés, tinha o rosto tão branco como filetes de bacalhau, pois nunca era agradável que em seu local de trabalho entrasse, dia sim e dia não, um pistoleiro disposto a esvaziar o seu carregador, sob o argumento de um simples ajuste contas. O narcotráfico se fazia presente nos meios de comunicação, açambarcando as desagradáveis manchetes dos jornais locais.

    -Inés, saberia me dizer algo sobre este anúncio? -perguntei à balconista.

    -Não sei, Valeria. Quando cheguei, já estava. Está cerca de três dias aí pendurado. Muitos o veem, mas ninguém diz nada. Quem pode conseguir um bom sujeito após dar à luz? - brincou a Ines.

    Depois de um dia de cães: com um frustrado acidente de carro, uma palmada em minha moral e após ser a chacota daquela dupla de policiais, encontrei um bilhete premiado para o sucesso. Não quis pensar muito, a oportunidade que tanto havia desejado estava à minha frente, em um lugar inesperado. Sem mais, peguei um dos papéis cortados com o número de telefone impresso e o arranquei; deveria ligar o antes possível. Então pedi a ela um pouco de pescado para mesclar com as verduras e o arroz e, quando se distanciou, arranquei todo o anúncio e fiz uma bola que foi direto para a minha bolsa. Paguei e saí do mercado, quitei a taxa de estacionamento e comecei a minha viagem de regresso ao rancho; sem música nem ar condicionado, mas com uma ilusão que, de momento, anestesiou os infortúnios das primeiras horas da manhã.

    -De novo, a cidade tinha me oferecido uma nova oportunidade para escapar do tedioso futuro que me aguardava no rancho, sob as ordens de meu pai.

    3. Uma difícil decisão

    Assentei as sacolas na mesa da cozinha, feliz porque ainda não haviam chegado as alcaguetes das minhas tias. Guardei o pescado na geladeira e separei os vegetais; em seguida, acomodei as especiarias nos potes e pendurei as ervas para que se secassem. Uma vez terminado esse trabalho eu fui para o meu quarto, liguei o iPhone e com a track list a todo volume, comecei a revisar o meu guarda-roupa. Era estranho o efeito inspirador que provocavam aquelas canções em inglês, sem saber o que realmente diziam.

    Minha seção de coletes já se achava desatualizada e não me sentia com vontade de usar nenhum overall. Os vestidos não estavam dentro da categoria roupa diária, uma vez que eu sempre gostava de comprar vestidos de festa caríssimos e que de maneira alguma usaria em uma granja. Minhas calças eram muito variadas e meus shorts sempre tinham aquele ar campesino a desbotado e esfiapado, mas cada um com um padrão, corte ou remendo diferente -sempre gostei de fazer a diferença-. Eu tinha a trabalheira de personalizá-los com o fim de estar na vanguarda. Depois de me vestir com uma camisa de olanes e um short de ganga desbotado com patch-style, coloquei as minhas botas com tiras de couro e conchas de madrepérola, feitas por mim mesma. Logo depois um toque de maquiagem leve e um rabo de cavalo alto, com passadores para evitar que a franja me caísse na testa.

    Enquanto isso, os vapores da cozinha se faziam evidentes desde a janela; os rapazes começavam a colocar as mesas e as cadeiras para as quase cinquenta pessoas que formavam parte da lista de familiares assistentes. Meu trabalho não era outro que o de receber os convidados com um falso sorriso.

    O rádio tocava em diferentes pontos da casa. Era uma das manias do meu pai, ter sempre uma emissora como um sussurro onipotente. De repente, escuta-se um anúncio:

    "Informação minuto-a-Minuto. São 3:00 da tarde e estas são as notícias do flash informativo -ouve-se a voz de uma locutora, muito suave em comparação com a profunda do anunciador do corte noticiante-. A frente fria número dezessete, que está entrando pelo lado sudoeste do Oceano Atlântico, ganhou força devido às correntes de ar quente que se encontram nas proximidades do sul do país. Os meteorologistas comunicaram que se transformou em um tufão de nível três e se recomenda às famílias próximas às zonas dos rios do Estado que tomem suas precauções com respeito a deslizamentos, transbordamentos ou, caso sua vivenda não conte com os meios necessários, seguir o protocolo de evacuação e se dirigir ao ponto de reunião mais próximo, ou ao atribuído à sua localidade. Prognostica-se que começaremos a sentir os efeitos do furacão a partir de amanhã, por volta do meio-dia. Continuaremos informando sobre qualquer mudança na direção do agora chamado furacão 'Emilio'. Continuem nos sintonizando para mais informações."

    O murmúrio não tardou em chegar e a mesa se completou com todos os assistentes, exceto os cabeças de família que ultimavam seus trabalhos. Minhas tias começaram a fazer das suas, dando com a língua nos dentes.

    -Na verdade, espero que o furacão se desvie. Não tivemos nenhum problema com o clima ultimamente e não temos as reservas necessárias para nos resguardar sem precauções -comentou a tia Rosalba, sentando-se perto do fogão.

    -O difícil será encontrar um abrigo para os animais que guardamos no velho celeiro. Teremos que reuni-los e amarrá-los todos eles, e separar os machos das fêmeas. Há algumas que estão entrando no cio e não estão bem desenvolvidas para isso -comentou nervosa a prima Imelda.

    -Parem de pensar nisso e ponhamos mãos à obra! -disse minha mãe com umas fortes palmas, entrando na sala, olhando com desdém para as outras-. Os Méndez sobreviveram a toda catástrofe que a inclemência do tempo os apresentou. Somos muitos, somos fortes e estamos preparados. Depois de terminar o nosso almoço, prepararemos marmitas para aguentar o primeiro dia, e reuniremos as conservas que temos entre todos e as repartiremos equitativamente. Ficarmos nervosos não nos ajudará em nada. Valeria! Por favor, ligue para o seu pai, ele está no escritório, diga-lhe que junte os rapazes e

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