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Dermatofobia
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Ebook71 pages37 minutes

Dermatofobia

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Abra e deixe o mundo se desencantar ao seu redor, camponês do tempo. Mas veja: este livrinho é como você e eu, pele fina de palavras e um oco no peito, um meio de vento, um nada entre as páginas. Se ele vai e volta do cosmo ao caos, do sublime ao sórdido, é por ser feito da mesma espuma de tudo no universo. Esfolem-se as galáxias e que nada reste de estranho.
LanguagePortuguês
PublisherViseu
Release dateJul 1, 2019
ISBN9788530007348
Dermatofobia

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    Dermatofobia - Nemo Núlifer

    Distopia

    Você veja bem, eu não sabia meu nome. Não tinha nome, nem passado próprio. Cada dia que passava comigo era um susto novo sobre isso que eu sei que chamam por aí de eu. Minhas histórias são públicas – o âmago, não tenho. Me vi um dia podendo conversar com tudo no universo, mas sem saber o mínimo detalhe que fosse sobre mim. A verdade é só de cansaço mesmo; não queria a tarefa pesada de me construir. Não queria esse fardo, queria era a tranquilidade de um dia a dia besta. E ainda que eu me lembrasse quem eu era, ainda que eu tivesse nome, o mundo era outro, sempre outro. Caminhei por praças arruinadas, debaixo das fachadas de lojas e farmácias largadas, e não via pessoa que conversasse comigo.

    Meus próprios pés vadiavam naquelas ruas abandonadas, impelidos nem eu sabia pelo quê. Passei por um supermercado já destruído que não tinha comida nenhuma, delicadamente saqueado. Um caminhão tombado atravessava o estacionamento em que carro nenhum disputava vaga, nem atrapalhava o trânsito inexistente. Os jardins bem cuidados de ornamentais importadas já começavam a perder terreno frente à insurreição das ervas locais, com flores lilases, pequenas estrelas, embaúbas e urtigas. Eu ouvia todos os seus planos de conquista, sussurrados umas pras outras. Andei chutando o chão coalhado de plástico e lixo inorgânico, vendo as azáleas nocauteadas. Ao menos o fim de tarde tinha uma brisa agradável; ao lado de um poste partido, com os cabos largados como cabelos no chão, um flamboyant perdia as flores com o sopro da brisa. Olhei aquilo, parecendo assistir uma cena em câmera lenta, pétala a pétala sendo levada.

    Foi aí que eu vi. Um carro. Com um adesivo que dizia mais amor, por favor, o carro tinha estacionado em frente ao que tinha sido uma padaria. Atônito, cheguei perto. O cheiro do escapamento socava meu nariz como se fosse o alento de um demônio, aquele gás quente e fuligem. Mas tinha gente ali, gente como eu. Vi uma mulher dentro do carro, com uma criança no banco – que ótimo. Ela estava no motorista, virada pra trás; passava a mão na cabeça do pequeno, falando alguma coisa, a julgar pelo movimento dos lábios. Seu rosto aparentava pura ternura. Cheguei mais perto ainda, com uma mão erguida, sorrindo. Eu ouviria vozes humanas. Tomara que me conhecessem. Tomara que soubessem quem eu era. Grandes chances, talvez eu morasse ali por perto. Talvez me conhecessem mesmo.

    A mulher me olhou com olhos injetados que eu podia ver pelo vidro de trás do carro. Num movimento só, virou pro volante e deu ré com tudo em minha direção como uma besta. Eu gritei e chamei a atenção dela – ou, ou, OU! – com os braços estendidos e mãos espalmadas à frente. Ela ia me atropelar se continuasse vindo daquele jeito, ela ia... ela ia me atropelar! Pulei em cima de um canteiro.

    Um homem saía da padaria com sacos na mão, um revólver na outra. A mulher do carro

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