Uma Dança para Liberdade: Redescobrindo Identidades
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Book preview
Uma Dança para Liberdade - Janaína Perez Reis
Editora Appris Ltda.
1ª Edição - Copyright© 2019 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.
Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.
Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS
Ao meu querido companheiro de vida e de dança, Italo Trindade, com quem compartilhei os mais lindos movimentos do corpo e da alma.
AGRADECIMENTOS
Agradeço às 21 mulheres que permitiram que eu me apropriasse de parte dos cotidianos de suas vidas vigiadas.
Agradeço pela confiabilidade depositada em mim, o que me permitiu captar as falas de um silêncio que muitos não querem ouvir.
Agradeço pela oportunidade da respiração profunda que dávamos de olhos fechados, pela qual os pensamentos voavam para os além muros.
Ao meu querido professor Edmar Reis Thiengo, grande orientador nessa caminhada, que me fez imergir nos meus mais profundos sentimentos na busca da união dos meus eus
. Enquanto caminhava, por vezes em uma ou outra estrada, ele já estava lá, na encruzilhada, perguntando: por que não andar nas duas ao mesmo tempo? Possibilite-se! Segui suas orientações e, de duas estradas, fizemos uma. Obrigada.
Ao meu marido, por todo apoio, carinho e preocupação comigo, pelo seu aconchego quando retornava ao lar após as aulas dadas.
Ao meu filho, que mesmo em tenra idade compreendia minhas ausências presentes.
Ao Coronel Osíris, Berbel e demais funcionários do CPTF, pois sem eles este livro não seria concluído, sequer iniciado.
PREFÁCIO
Prazer é a palavra que traduz a agradável emoção que me envolveu quando recebi o convite para prefaciar esta obra. Palavra muitas vezes discriminada ou proibida, o prazer, que pode ser físico ou moral, invadiu-me de forma tal que imediatamente senti vontade de sentar e relatar essa alegria, júbilo, contentamento, satisfação e muito mais, tão mais que se torna difícil traduzir em palavras tais sentimentos.
Vi-me, então, num presídio. No meu presídio, que é meu corpo! É dele e com ele que me liberto e vivo toda a possibilidade de liberdade. É nele e com ele que me reconheço, que me percebo, que me sinto e que me mostro por inteiro, se assim me reconheço. Infelizmente, nossa sociedade tem historicamente mostrado que meu corpo não nos representa, talvez por isso, retraímo-nos, escondemo-nos, condenamo-nos e nos mutilamos ou somos mutilados. Felizmente, aprendemos a burlar a ordem, afinal [...] uma sociedade só encontra existência nos corpos pulsantes dos seres humanos que a constituem: ela é vísceras, nervos, sentidos, neurônios [...]
.¹
Transporto-me, então, para o presídio feminino, local onde esta pesquisa se realiza, e sinto as presidiárias que nem se percebem mulheres. Seus corpos não lhes pertencem, visto que não o sentem e nem deles cuidam. Ir e vir de um bloco a outro, cercadas por muros e grades; um banho de sol na hora marcada, diante de olhares atentos e fuzis em riste; números as identificam, um uniforme as tornam iguais; matematicamente falando, são objetos de contagem e representam quantidade, nada além; presídio é presídio, ou seja, lugar frio quando se trata de relações e, nesse contexto, as detentas são assim representadas. Como mudar essa realidade? Como é possível fazer com que essas pessoas se vejam mulheres, com desejos, com corpos pulsantes e vibrantes?
A resposta a essas e outras perguntas dá-se por intermédio da prazerosa leitura da obra Uma dança para liberdade: redescobrindo identidades, que foi produzido no interior de um presídio feminino na cidade de Teixeira de Freitas, Bahia, por Janaína Perez Reis, pesquisadora e dançarina de balé clássico, que resolveu fazer um pas de deux num palco diferenciado da vida, para mostrar que o corpo, de quem quer que seja e em qualquer circunstância, é a representação de algo, pois tem uma singularidade que impressiona.
A dança foi o instrumento utilizado para trazer a essas criaturas um pouco de si mesmas. Por estar ligada às capacidades criativas e motoras do indivíduo, operando, portanto, metamorfoses, ao transformar ritmos da natureza e ritmos biológicos em ritmos voluntários, harmonizando a natureza e atribuindo poder para dominá-la.²
Janaína dançou e fez dançar! Dançou e dialogou! Dançou e transformou! Quem mais se transformou nesse caminhar não sei se foram a mulheres detentas, se foi Janaína ou se fui eu mesmo, que estive tão envolvido nesse processo e agora, nesta releitura, vejo-me livre de muitas amarras.
Ao apostar na potência dessa experiência, na potência do vivido, esta obra ajuda-nos a compreender um pouco mais do humano, portanto, de nós mesmos. Aproveite e dance um pouco mais. Dança é movimento, não somente do corpo, mas também da alma, afinal, dança é, sobretudo, vida.
Assim, convido você a ler, dançar e se emocionar.
Edmar Reis Thiengo
Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo
Mestrado em Educação em Ciências e Matemática
Referências
GARAUDY, R. Dançar a vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
RODRIGUES, J.C. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.
APRESENTAÇÃO
Este livro tem como objetivo analisar a dança como forma de resgate da cidadania e identidade das encarceradas. Para isso, foram realizadas aulas de dança nas dependências do Conjunto Penal de Teixeira de Freitas, no estado da Bahia, para 21 internas, sendo captados sentimentos, sensações e expectativas nesse contexto por meio de entrevistas, relatos das participantes e diários elaborados pela autora, mediante uma pesquisa participativa. A obra traça um diálogo sobre o paradoxo entre as conquistas científico-jurídicas e a realidade do sistema prisional repressivo existente nas unidades prisionais pela perspectiva da dança.
LISTA DE ABREVIATURAS
ICPR Institute for Criminal Policy Research.
STF Supremo Tribunal Federal.
STJ Superior Tribunal de Justiça.
ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade.
ADPF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos.
ONU Organização das Nações Unidas.
PIDCP Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
OEA Organização dos Estados Americanos.
PUCRS Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
CPTF Conjunto Penal de Teixeira de Freitas.
PREFEM Presídio Feminino de Aracaju.
LEP Lei de Execução Penal.
CP Código Penal.
CF Constituição Federal.
DEPEN Departamento Penitenciário Nacional.
CNJ Conselho Nacional de Justiça.
RHC Recurso Ordinário em Habeas Corpus.
Sumário
1
UMA DANÇA INTRODUTÓRIA: INSPIRAÇÃO E ASPIRAÇÃO
1.1 PLANEJANDO UM ESPETÁCULO: OS PASSOS DESSA DANÇA
1.2 DANÇA DE RUA – DANÇA DE PRISÃO: UM OLHAR NECESSÁRIO
2
CORPO DE BAILE: QUEM DANÇA COMIGO?
2.1 PENAS E SISTEMAS PRISIONAIS: O DESCORTINAR DA HISTÓRIA
2.2 SINGULARIDADE INDIVIDUAL NA RELAÇÃO COM O OUTRO
2.3 A DANÇA E A RESSIGNIFICAÇÃO DA LIBERDADE
2.4 REMIÇÃO DA PENA: UMA DANÇA SOLITÁRIA
3
ABRAM-SE AS CORTINAS
3.1 DANÇA COMO RESSIGNIFICAÇÃO DA IDENTIDADE
3.2 A DANÇA PROMOVENDO A LIBERDADE E O EMPODERAMENTO DO CORPO
3.3 DANÇA: DISTRAÇÃO E LEVEZA
3.4 DANÇA COMO ATIVIDADE EDUCACIONAL
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIA
ENTREVISTAS
ENTREVISTA MELISSA
ENTREVISTA ROSA
ENTREVISTA ASHLEY
ENTREVISTA ANA CLARA
ENTREVISTA MARGARIDA
ENTREVISTA JASMIN
ENTREVISTA KETELYN
ENTREVISTA HORTÊNCIA
ENTREVISTA MARCELA
ENTREVISTA LU AISLA
ENTREVISTA EDUARDA
ENTREVISTA MANUELA
ENTREVISTA VITÓRIA
ENTREVISTA MÁRCIA
ENTREVISTA IASMIM
ENTREVISTA COLETIVA
1
UMA DANÇA INTRODUTÓRIA: INSPIRAÇÃO E ASPIRAÇÃO
Baila Comigo
Se Deus quiser
Um dia acabo voando
Tão banal assim
Como um pardal
Meio de contrabando
Desviar de estilingue
Deixar que me xinguem
E tomar banho de sol
Banho de sol!
Banho de sol!
Banho de sol!
Baila comigo!
Como se baila na tribo
Baila comigo!
Lá no meu esconderijo
Rita Lee
Este foi meu convite inicial às presidiárias do Conjunto Penal de Teixeira de Freitas: bailam comigo? Venham bailar comigo, assim, de forma descompromissada, como quem baila na tribo? Bailem comigo sem amarras, sem estruturas, sem medo, como um pardal a bailar? Então, bailam comigo? Bailem comigo e deixem a alegria tomar conta do seu corpo. E nem precisam vir para meu esconderijo. Eu vou para o de vocês. Isso mesmo, se quiserem, eu vou. Bailem comigo e depois, se preciso, vamos juntas tomar banho de sol, banho de sol, banho de sol...
Esse convite às presidiárias foi feito porque gostaria muito que elas tivessem a oportunidade de experimentar um pouco do que a vida me proporcionou por meio da dança. Desde que me entendo por gente, eu danço; dançava sozinha, dançava para minha família, dançava para brincar e sonhar. Acredito que danço desde o ventre da minha mãe. No entanto, após meu nascimento, o primeiro contato efetivo que tive com aulas de dança, mais especificamente com o balé, foi aos 6 anos, no Colégio Santa Inez, no qual estudava na pré-escola. Não me lembro da ocasião, mas minha mãe diz que fui eu quem pediu para fazer aulas de balé.
Minha mãe me inscreveu nas aulas porque era disso que eu gostava. Além dela, amigos e familiares comentavam que eu levava jeito
para dançar. A partir de então, nunca mais parei de dançar. Fiquei nesse colégio por dois anos e, após minha família e eu mudarmos de bairro e escola, passei a fazer aulas de balé e jazz perto de minha casa, na Escola de Dança Elisabeth Santos, no ano de 1993.
Aos 9 anos fui destaque em minha primeira apresentação nessa escola, no Teatro Bruno Kiefer, na Casa de Cultura Mário Quintana. Nesse espetáculo, dançávamos uma valsa com tutu longo de tule. Aquela atmosfera, o palco, as luzes, deixaram-me completamente fascinada. Nessa dança, uma colega e eu usávamos figurinos de cor azul, enquanto as demais de cor vermelha, e, em determinado momento da coreografia, fazíamos um duo ao centro. Essa foi minha primeira participação de destaque em uma coreografia e, após essa apresentação, houve uma reviravolta em minha vida: não fui mais a mesma pessoa, abriu-se um mundo à minha frente.
Aos 11 anos de idade, minha mãe resolveu que deveria fazer aulas de balé em uma escola de danças renomada na cidade, o Ballet Gutierrez, no qual passei minha pré-adolescência e adolescência. Nela, comecei meus estudos de balé clássico de forma mais aprofundada. Logo no segundo ano de balé ganhei meu primeiro solo e, a partir de então, a diretora me autorizou a fazer todas as aulas que eu quisesse sem implicar em aumento do valor da mensalidade. Na época, meus pais não tinham condições financeiras de pagar os valores das mensalidades e fiquei com muito medo de não poder continuar meus estudos, mas as mensalidades eram anotadas em uma ficha