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Bioética: Fundamentos Teóricos e Aplicações
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Ebook393 pages7 hours

Bioética: Fundamentos Teóricos e Aplicações

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O livro Bioética: fundamentos teóricos e aplicações reúne textos de especialistas na área que pretendem promover uma compreensão mais abrangente da Bioética, que seja capaz de enfrentar, de forma diferenciada, os principais desafios éticos do mundo globalizado. A inclusão do outro, seja ele humano ou não, em toda a sua diversidade é o fio condutor que orienta os autores na conquista de um olhar e uma escuta mais apurados das demandas que perpassam as diversas formas de vida que povoam a contemporaneidade.
LanguagePortuguês
Release dateFeb 15, 2018
ISBN9788547306915
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    Bioética - Maria Clara Dias

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2017 do autor

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E TRANSDISCIPLINARIDADE

    APRESENTAÇÃO

    A Bioética é uma área aparentemente recente e que tem despertado um crescente interesse não apenas no ambiente acadêmico, mas em diversos setores da sociedade, como, por exemplo, entre os profissionais da saúde. Digo aparentemente recente porque tudo depende menos do título dado a essa área e mais do recorte temático que pretendemos traçar.

    Para alguns, a Bioética é a ética aplicada à área da saúde – especificamente à saúde dos seres humanos – e nasceu na segunda metade do século XX. Para os que assim pensam, devemos dizer que este livro irá decepcioná-los. Nosso objetivo é mostrar que a Bioética é bem mais do que isso. Ela é a ética aplicada e, nesse sentido, uma prática milenar que, tal qual a Deusa Hebe, possui o dom da eterna juventude e reveste-se a cada dia com novas questões.

    Enquanto ética aplicada, a Bioética é essencialmente multidisciplinar. Ou seja, ela perpassa diversas áreas do saber, gerando questionamentos e respostas próprios a uma tomada de posição ética acerca dos seres humanos e de suas relações com as demais formas de existência.

    Foi dessa percepção interdisciplinar e ampliada de Bioética que nasceu, em 2010, o Programa de Pós-graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (PPGBIOS). Um programa de pós-graduação stricto sensu em associação, que reúne profissionais de diversas áreas e quatro grandes universidades do estado do Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

    Este livro é o resultado de uma experiência de seis anos no PPGBIOS, detectando o crescente interesse pela Bioética e a necessidade de garantir uma percepção ampliada de seus temas, esperando que, de alguma forma, isso contamine o ensino da Bioética no Brasil. Foi assim que idealizamos um livro que contivesse menos a história da Bioética e mais seus fundamentos teóricos e aplicações.

    Introduzir o leitor nos fundamentos teóricos da Bioética é fundamental para que possamos conquistar a concepção ampliada que desejamos defender. É nesse sentido que este livro inicia com uma discussão filosófica sobre a ética, das características de um discurso normativo em geral e do discurso moral, em particular, e suas pretensões de validade.

    No segundo capítulo, o debate moral é ampliado para o âmbito político, a partir de uma análise de diferentes teorias de justiça e da forma com que elas nos permitem lidar com os temas da inclusão e da garantia de direitos básicos.

    O terceiro capítulo trata de um tema fundamental para qualquer investigação que vise a produzir algum saber sobre os seres humanos na sua integralidade, como agente ou objeto de pesquisa. Trata-se de um capítulo sobre o conceito de pessoa, no qual se procura explorar algumas interpretações desse conceito na literatura filosófica para, finalmente, distinguir pessoas – enquanto indivíduos capazes de eleger para si uma forma de vida moral – e aqueles aos quais devemos consideração moral, aqui denominados concernidos morais. Com esses três capítulos, pretendemos resgatar o pilar filosófico da Bioética.

    O quarto capítulo aborda a Bioética no contexto da saúde coletiva. Trata-se, assim, de um capítulo que nos remete a outro pilar da Bioética: a saúde coletiva. Com esse capítulo, o leitor será introduzido no nascimento oficial da saúde coletiva e da Bioética, na segunda metade do século XX, e acompanhará uma trajetória da Bioética que hoje extrapola o âmbito da saúde.

    Seguindo ainda com o foco na saúde, o quinto capítulo introduz as correntes Bioéticas para a resolução de conflitos no âmbito da clínica médica.

    O sexto capítulo inaugura a série dos grandes tópicos da Bioética com o tema início de vida. Nesse capítulo, o leitor encontrará uma análise da questão do aborto, da reprodução assistida e uma breve introdução ao tema da manipulação genética.

    O sétimo capítulo discute o tema fim de vida, apresentando, inicialmente, um estado da arte da questão da morte no contexto das tecnologias de sustentação da vida. Na segunda parte do capítulo, é retomada a discussão filosófica sobre pessoa e inserida a questão moral acerca da decisão sobre o fim da vida.

    O oitavo capítulo prossegue na análise do modo como a biotecnologia impacta a sociedade contemporânea e gera dilemas éticos acerca da possibilidade de aprimorar os seres humanos, repercutindo não apenas em nossas aspirações pessoais, mas na nossa própria concepção do que somos.

    O nono capítulo introduz a Bioética no âmbito das questões de gênero e, mais especificamente, no cerne do feminismo. Procuramos, assim, romper com uma interpretação das questões éticas que negligencia relações de poder que subjazem a toda forma de discurso hegemônico. Esse capítulo faz com que seja assumido um olhar crítico que exige a constante revisão e desconstrução das ideologias.

    O décimo capítulo introduz o concernido ausente nas concepções morais, de justiça e, consequentemente, de Bioética tradicionais, a saber, os animais não humanos.

    O décimo primeiro capítulo narra a experiência de um dos mais promissores campos de aplicação Bioética: os comitês de ética em pesquisa e das normativas que definem a sua atuação.

    O décimo segundo capítulo extrapola a discussão Bioética e discute a produção científica em geral, sob um paradigma ético. Esse capítulo contém informações sobre parâmetros de conduta do pesquisador, que deveriam ser amplamente difundidas já nos bancos escolares.

    Para concluir, o último capítulo fala do ensino da Bioética na formação universitária, oferecendo uma reflexão sobre o lugar da Bioética nos cursos de graduação e discutindo abordagens pedagógicas, capazes de promover a formação de profissionais mais sensíveis, empáticos e livres de preconceitos.

    Para a elaboração do material contido neste livro, contei com a participação dos meus colegas e professores do PPGBIOS, Carlos Dimas Ribeiro, Alexandre Costa, Fabio Gomes de Oliveira, Murilo Vilaça, Michelle Bandeira, e de minha doutoranda, Suane Soares. A eles agradeço, mais uma vez, por participarem e apostarem comigo neste projeto de construção de uma Bioética mais inclusiva e mais próxima do que supomos serem as demandas reais, dos seres cuja voz queremos fazer ressoar junto a nossos alunos e junto à sociedade brasileira.

    Sumário

    1

    ÉTICA: O INÍCIO DE UMA TRAJETÓRIA

    Maria Clara Dias

    2

    JUSTIÇA: DA ÉTICA À POLÍTICA

    Maria Clara Dias

    3

    O CONCEITO DE PESSOA

    Maria Clara Dias

    4

    BIOÉTICA E SAÚDE COLETIVA

    Carlos Dimas Ribeiro

    5

    BIOÉTICA CLÍNICA

    Alexandre Costa

    6

    INÍCIO DE VIDA

    Alexandre Costa

    7

    FIM DE VIDA

    Alexandre Costa e Maria Clara Dias

    8

    BIOTECNOLOGIA E APRIMORAMENTO HUMANO

    Maria Clara Dias e Murilo Mariano Vilaça

    9

    Questões de gênero

    Maria Clara Dias e Suane Felippe Soares

    10

    A ÉTICA E OS ANIMAIS NÃO HUMANOS

    Fabio A. G. Oliveira

    11

    ÉTICA EM PESQUISA

    Alexandre Costa

    12

    INTEGRIDADE EM PESQUISA

    Murilo Mariano Vilaça

    13

    O ENSINO DA BIOÉTICA

    Michelle Cecille B. Teixeira

    Referências

    Sobre os autores

    1

    ÉTICA: O INÍCIO DE UMA TRAJETÓRIA

    Maria Clara Dias

    1.1 ÉTICA E/OU MORAL: UMA INTRODUÇÃO TERMINOLÓGICA

    Ao ouvirmos falar de ética e moral, ocorre-nos, muitas vezes, indagar acerca das semelhanças ou não de ambos os termos. Quanto a sua origem histórica, ética e moral podem ser consideradas sinônimos. Ética tem sua origem no termo grego éthikos, cuja tradução latina vem a ser moralis, da qual deriva o termo moral. O radical grego ethos possui basicamente dois sentidos. Em sua primeira acepção, êthos (longo) diz respeito às faculdades do caráter. Ética seria, assim, o estudo das faculdades do caráter. Em sua segunda acepção, éthos (curto) diz respeito aos costumes. A tradução de éthikos por moralis faz jus à essa segunda acepção, sendo o radical mos também uma referência aos usos ou costumes. A tradução latina deixaria, portanto, à margem da discussão ética questões diretamente relativas à constituição do caráter.

    A ética na tradição grega deve fornecer as diretrizes para que possamos desfrutar de uma vida plena. Ela prescreve uma dietética do bem viver. Nesse sentido, deverá ditar as regras que estabelecem a relação do indivíduo para consigo mesmo e para com os demais. A prática ideal de esportes, a iniciação musical, a alimentação bem como a vida sexual e afetiva de cada cidadão deveriam estar cuidadosamente relacionadas dentre as prescrições éticas. A moral, tal como se impõe a nós na modernidade, deve ser compreendida antes de mais nada como o conjunto das regras ou princípios que orientam a vida social, ou melhor, que prescrevem o nosso modo de agir frente aos demais. Com isso, a moral restringe seu âmbito de aplicação, deixando de lado a esfera da vida privada. Questões que dizem respeito exclusivamente a projetos individuais, ou seja, que não interferem no bem-estar comum ou nos deveres relativos ao outro, já não pertencem à alçada da moral. Essa distinção fará com que alguns autores modernos, tal como Hegel, ou contemporâneos, como, por exemplo, Habermas, optem por retomar um uso diferenciado dos dois termos, no qual a ética estaria relacionada ao mundo da vida em geral e a moral, aos sistemas que prescrevem a conduta de um indivíduo frente aos demais.

    A distinção entre ética e moral mais presente no âmbito específico da filosofia diz respeito à ética enquanto disciplina filosófica que discuti questões práticas, ou seja, sistemas normativos e ações deles derivadas e moral enquanto objeto da própria ética. A moral corresponderia ao conjunto de regras que prescreve nossos deveres mais fundamentais em relação aos demais indivíduos.

    Desvinculada das questões relacionadas à boa vida e às escolhas individuais, a moral é frequentemente vivenciada como algo imposto a nós, contrariando, assim, nossos desejos mais imediatos. Por que então devemos considerar necessário fazer jus a seus mandamentos? De onde vem a autoridade reclamada por seus princípios? Chegamos, dessa forma, ao que parece ser uma das questões fundamentais da filosofia prática, a saber: a questão da fundamentação dos juízos morais.

    1.2 PERSPECTIVAS DE FUNDAMENTAÇÃO DA MORAL

    Quando somos indagados acerca do valor de nossas crenças, costumamos responder apelando a princípios que conferem legitimidade às mesmas. Se acreditamos que, ao nível do mar, a água ferverá a 100 graus centígrados, é porque já realizamos inúmeras vezes um tal experimento e até hoje observamos uma regularidade entre o aquecimento da água e seu processo de ebulição. Ao afirmarmos que dois mais dois é igual a quatro ou que a soma dos quatro ângulos de um quadrado equivale a 360 graus, estamos expressando um conhecimento das relações matemáticas. Enquanto certos fenômenos puderem ser observados e/ou tais relações estiverem valendo, teremos uma base segura para resgatar a pretensão de validade de tais crenças.

    Há, contudo, enunciados que não expressam nossa crença acerca das leis que regem o mundo sensível, mas sim a crença em um determinado modo de agir, que parece ser, até certo ponto, independente de constatações empíricas. Se chover, haverá um aumento da umidade relativa do ar. A chuva poderá também favorecer a plantação, mas, quer chova, quer permaneça sol, acredito que não deva infringir dor inutilmente a outros seres humanos, acredito que deva manter minhas promessas e que não deva dispor do que não me pertence. Mas de onde provêm tais crenças? Haverá um fato distinto no mundo no qual esteja baseada minha compreensão do que devo fazer? Haverá no fundo de cada um de nós algum sentimento que determine nosso modo de agir? Se não formos capazes de determinar as regras que orientam a nossa conduta, jamais poderemos supor que um tal âmbito do nosso discurso possua qualquer fundamento. Apenas poderíamos descrever nossas ações, assim como descrevemos fenômenos do mundo natural, mas não poderíamos supor que algo prescreva uma determinada conduta, ou seja, poderíamos apenas constatar que agimos de tal e tal modo, porém não que devamos agir de uma forma determinada.

    Essa distinção entre o modo como as coisas são e o modo como devem ser foi filosoficamente descrita por meio da distinção entre enunciados assertivos e enunciados normativos. Os primeiros pertencem ao âmbito do nosso discurso que concerne à verdade. Os segundos pertencem ao chamado discurso moral. Se considero que tudo aquilo que é não é senão o que me parece, elimino qualquer possível distinção entre realidade e fantasia, entre o universo de meus estados subjetivos e um acordo intersubjetivo acerca de nossas experiências. Se considero que meus desejos e interesses individuais devam ser a única fonte de determinação da minha conduta, elimino qualquer possibilidade de um acordo comum acerca de normas morais, ou seja, sobre regras que prescrevam o agir de um indivíduo com relação aos demais.

    Dizer que a linguagem da moral possui caráter prescritivo significa, portanto, afirmar que ela não se limita à descrição ou análise do modo como as coisas são, mas dita o modo como devem ser. Desse modo, parece, pelo menos à primeira vista, inútil buscar nas evidências empíricas o correlato ou fundamento de seus enunciados. Contudo, seu caráter prescritivo torna ainda mais patente a necessidade de um fundamento. Um sistema moral exige, muitas vezes, que contrariemos nossos próprios desejos ou interesses particulares. Como então explicar que o caráter prescritivo de um enunciado moral tenha algum poder sobre nós? De onde vem a autoridade reclamada pelos princípios morais? Tal questão ocupa até hoje um lugar de destaque na ética.

    Mas antes de passarmos à apresentação das principais tentativas de fundamentação da moralidade, é importante traçarmos um recorte entre o que denominaremos aqui uma concepção moral tradicional e a moral moderna. A moral tradicional é aquela que repousa sobre a crença em uma autoridade. Por que devemos aceitar tais e tais mandamentos? Porque refletem a vontade divina, a vontade de um governante ou de qualquer indivíduo no qual reconhecemos uma autoridade, nossos pais, ídolos etc. A moral moderna recusa a transcendência e questiona o fundamento de autoridade. Será para ela que dirigiremos agora a pergunta: por que devemos, então, aceitar um princípio moral?

    Na história da filosofia, teremos um extenso repertório de respostas a essa questão. Porque faz parte de nossa natureza, dirão. Mas, de que natureza?, perguntaríamos. Da nossa natureza enquanto filhos de Deus; enquanto seres que desfrutam do sentimento de compaixão para com os demais ou enquanto seres livres, dotados de razão. No primeiro caso, verificamos, mais uma vez, a crença em uma entidade transcendente como fundamento da moralidade. Tentaremos agora analisar as duas alternativas restantes.

    A primeira delas apela para a nossa natureza enquanto seres sensíveis, capazes, portanto, de sentir prazer e dor e de se deixar afetar pelo sofrimento alheio. Dentro dessa perspectiva, a investigação sobre o modo como devemos agir deve ser compreendida como uma investigação das ações ou normas que promovem o bem-estar ou a satisfação dos indivíduos e da coletividade. Tais ações serão, então, ditas virtuosas, justas ou ainda corretas. Em contraposição, serão consideradas injustas ou incorretas as ações ou normas que promovem sofrimento, devendo, portanto, ser evitadas.

    Essa perspectiva, adotada pelos principais representantes do empirismo, como, por exemplo, o filósofo escocês David Hume¹, será sistematizada mais tarde sob o título de utilitarismo. A perspectiva utilitarista se caracteriza por adotar, como critério para o reconhecimento de uma ação ou regra como moral, sua contribuição para o maior montante possível de satisfação, para o maior número de envolvidos. Moral é, portanto, o que é mais desejável, o que produz maior satisfação, o que mais favorece a sociedade como um todo.

    Como, no entanto, saber o que proporciona maior satisfação para outros indivíduos e por que levar em conta a satisfação de outros indivíduos para avaliação do valor de nossas ações? A essas questões, os utilitaristas respondem com recurso a um sentimento, a saber, a compaixão ou simpatia. Tal sentimento exprimiria nossa capacidade de sentir com o outro, em outras palavras, de nos colocarmos no lugar do outro, o que não apenas nos tornaria capazes de identificar seu sofrimento e/ou sua satisfação, mas, sobretudo, faria com que seus sentimentos passassem a desempenhar um papel na nossa tomada de decisão.

    Mas para que a perspectiva utilitarista possa fornecer uma resposta à questão originalmente colocada, qual seja, a questão da fundamentação do caráter prescritivo dos nossos juízos morais, seria antes necessário provar que, de fato, possuímos uma tal natureza, ou seja, que buscamos o prazer e evitamos a dor e, sobretudo, que possuímos um tal sentimento que faz com que, ao agirmos, não levemos em consideração apenas nossa própria satisfação, mas a de todos os demais. Caso isso possa ser feito, restaria ainda saber se o princípio fornecido pelos utilitaristas como critério de moralidade – o princípio do maior montante de satisfação (Benthan/Mill), ou uma de suas variantes contemporâneas, como, por exemplo, o princípio da igual consideração dos interesses preferenciais de cada indivíduo (Singer) – pode realmente ser aceito como aquele que melhor resgata nossas pretensões morais.

    Passemos, agora, à analise da segunda alternativa. Fundamentar o caráter prescritivo da moralidade no conceito de ser racional não deixa de ser, até hoje, a mais engenhosa tentativa de fundamentação da moral. Somos livres quando somos capazes de nos deixar guiar unicamente pela razão, ou seja, quando somos capazes de abstrair de todos os móbiles sensíveis que determinam o agir, diria Kant em sua Fundamentação à metafísica dos costumes². Ora, quando extrairmos das normas que orientam a nossa conduta todo e qualquer conteúdo de determinação empírico/subjetiva, só nos restará eleger como norma aqueles princípios que possam ser igualmente reconhecidos por todos. Para avaliarmos o valor moral de uma norma, deveremos submetê-la, portanto, ao que Kant denominará Princípio de Universalização. Normas morais serão, assim, princípios de determinação da conduta que possam ser reconhecidos como universalmente válidos. O reconhecimento de tais princípios será realizado com base apenas em um critério formal, ou seja, sua capacidade de satisfazer ou não ao princípio de universalização, dispensando, portanto, qualquer investigação acerca das possíveis consequências das ações ou normas adotadas.

    Na Crítica da razão prática³, a argumentação kantiana seguirá os seguintes passos. Em primeiro lugar, devemos reconhecer que somos conscientes do nosso agir. Isso significa ser capaz de refletir sobre nossas ações. Mas se somos capazes de refletir sobre o nosso agir, devemos ser igualmente capazes de justificá-lo. Uma ação deve ser justificada com base em normas. Normas, por sua vez, só podem ser justificadas com base em um princípio: o princípio de universalização das máximas. Com isso, segue-se que, ao aceitar a capacidade de agir de forma refletida, comprometemo-nos igualmente com o agir de acordo com princípios morais, ou seja, normas que possam ser reconhecidas como válidas por todos.

    Se queremos, por exemplo, avaliar se nossa decisão de não pagar os impostos devidos ao governo é ou não moralmente aceitável, deveríamos perguntar se podemos igualmente querer universalizar tal conduta, ou seja, querer que todos os demais ajam da mesma forma. Ora, o pagamento de impostos visa à garantia de certos benefícios dos quais não gostaríamos de abrir mão. Ainda que o nosso interesse individual seja o de estarmos excluídos de tal obrigação, não podemos pretender que o mesmo valha para todos os demais, pois isso extinguiria os impostos, acarretando a supressão dos referidos benefícios. Isso mostra que nosso interesse puramente individual, nesse caso, não pode ser universalizado, sem que um benefício desejado por nós, benefício este que, para nós, justifica a própria existência dos impostos, seja por sua vez suprimido. Desejar a universalização de nossa conduta poderia, assim, ser interpretada como uma forma de autocontradição relativa ao nosso set motivacional, ou seja, ao conjunto de crenças e desejos/interesses que determinam nossas ações.

    Mas por que ser livre ou ser capaz de refletir, ou seja, ser racional, deve já conter em si o comprometimento com o agir moral, ou seja, com a adoção de um ponto de vista imparcial, universalista, diante das regras de determinação de nossa conduta e das possíveis consequências de sua aplicação? A fundamentação kantiana parece, portanto, estar comprometida com um conceito de razão nem um pouco trivial, o que, consequentemente, compromete sua própria validade.

    Uma tentativa de fundamentação análoga é proposta por dois filósofos alemães: Apel e Habermas. Em Habermas⁴, o conceito kantiano de uma razão pura prática, capaz de determinar a própria vontade, será substituído pelo conceito de razão comunicacional. Nossa capacidade de refletir sobre as nossas ações cederá lugar à capacidade de integrar um discurso de fundamentação racional. Os princípios subjacentes a esse discurso serão os chamados princípios da Ética do Discurso.

    Habermas caracteriza o agir comunicacional como sendo uma forma de interação na qual os participantes se comprometem de antemão com certas regras, sem as quais a própria comunicação estaria ameaçada. Sua antítese seria o chamado agir estratégico, no qual qualquer procedimento é avaliado tendo em vista apenas sua eficácia para o alcance dos fins almejados. As regras que possibilitam um discurso racional são aquelas que caracterizam uma situação de fala ideal, ou seja, uma situação constituída de agentes puramente racionais, em condição de igualdade, para as quais não precisamos encontrar exemplos na história. Os princípios da situação de fala ideal fornecem a garantia de que apenas o reconhecimento do poder coercitivo de bons argumentos seja responsável pelo alcance de um acordo entre opiniões dissonantes. Tais princípios deverão, portanto, impedir que elementos externos ao discurso possam interferir no curso da argumentação.

    Ao elucidar as regras pressupostas por todo e qualquer discurso de fundamentação racional, Habermas pretende mostrar que, ao tomar parte no discurso, por conseguinte, ao aceitar as regras da argumentação, nosso interlocutor acaba por se comprometer com o próprio princípio de universalização kantiano. Em outras palavras, Habermas pretende provar que o princípio de universalização é uma regra básica ou um princípio constitutivo da própria argumentação. Assim sendo, todos aqueles que aceitam tomar parte no discurso já pressupõem tal princípio. Tomar parte na discussão e recusar tal princípio caracterizaria o que denominamos uma contradição performativa, ou seja, uma situação na qual nossas próprias ações contradizem o conteúdo de nossos proferimentos.

    Nossa pergunta pode ser então recolocada: por que devemos aceitar que ser racional, agora no sentido de ser capaz de integrar um discurso racional, já nos comprometa com a aceitação de um princípio moral? Será que Kant ou Habermas poderiam questionar a racionalidade de Hitler, seu poder de refletir coerentemente sobre a escolha de meios adequados a seus fins, por mais imoral que tenham sido suas ações?

    Reconhecidas as dificuldades de fundamentarmos o caráter universal de princípios morais que, muitas vezes, aceitamos trivialmente no nosso cotidiano, talvez devêssemos voltar o nosso olhar para a relação entre normas e valores. É para isso que nos alertam defensores da chamada Ética das Virtudes, ou os que se autodenominam neoaristotélicos.

    Para Aristóteles, tal como na tradição grega em geral, a ética deveria fornecer as diretrizes para que pudéssemos desfrutar de uma vida plena, uma vida feliz. Felicidade para Aristóteles não era, contudo, sinônimo de satisfação dos prazeres, mas sim a realização de certas disposições de caráter então denominadas virtudes. A realização das disposições de caráter adequado era reconhecida como sendo a melhor forma de se alcançar a felicidade e de contribuir para a realização plena da pólis (cidade). Cada um era, antes de tudo, um cidadão da pólis e a sua felicidade era compreendida a partir da realização de sua função nela. Dentro dessa perspectiva, os valores da pólis determinavam que ações deveriam ser consideradas virtuosas e que personalidades deveriam ser consagradas como paradigma de uma vida ética. Para o homem grego, não haveria qualquer oposição entre o bem de cada cidadão e o bem da coletividade.

    Neoaristotélicos buscam hoje estreitar os laços entre os valores de cada grupo cultural e as normas morais por eles defendidas, criticando, com isso, o ideal de um princípio moral que perpasse todas as diferenças culturais. Quanto a nossa pergunta original acerca da aceitação de princípios morais, eles contestariam: só podemos respondê-la como parte integrante da questão acerca da vida que elegemos viver, a vida que julgamos digna de ser vivida, em outras palavras, a questão acerca do que signifique para nos uma vida feliz.

    1.3 FUNDAMENTAÇÃO X JUSTIFICAÇÃO

    Vimos até aqui que nossos juízos morais possuem um caráter prescritivo. Eles estabelecem como devemos agir. Um tal dever precisa, contudo, poder ser justificado, caso contrário estaríamos erguendo, com nossos juízos morais, uma pretensão ilegítima. Ora, se todas as alternativas até então fornecidas de fundamentação foram de algum modo abandonadas, não teremos que abandonar também uma tal pretensão? Minha resposta é negativa, mas, para esclarecê-la, deve antes distinguir duas questões: a primeira diz respeito à tentativa de fundamentação

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