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Saúde mental no contexto da realidade brasileira
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Saúde mental no contexto da realidade brasileira

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About this ebook

Todos nós, que trabalhamos pela transformação da assistência em saúde mental, lutando pela criação de redes de cuidado nessa área, encontraremos neste livro grande identificação em vários dos momentos vividos pelo autor em seu trabalho. Construir ações terapêuticas interdisciplinares, integradas com a Estratégia de Saúde da Família, atuando no território, de forma aberta e participativa, dentro desse novo processo de trabalho que é o matriciamento, não é fácil. É muito diferente das práticas em que fomos formados na realidade protegida das quatro paredes dos hospitais, na abordagem centrada na doença e não no doente, descontextualizada da vida das pessoas que necessitam do nosso cuidado. Trabalhar nessa nova lógica é angustiante e conflitivo. Transita-se todo tempo em práticas e campos desconhecidos. Quem faz o quê? Como? Onde? Com quem? Qual meu papel? Qual a minha identidade? De que forma devo abandonar identidades antigas para poder construir novas realidades?

Mais importante ainda se tornam essas reflexões por terem sido realizadas a partir da experiência em um município de pequeno porte, como a maioria dos municípios de nosso país, mas que normalmente são menos estudados, acompanhados e analisados pela Academia.

Este livro é fundamental como reflexão sobre esse processo de construir um Cuidado em Saúde Mental que seja aberto, científico e humanista, democrático e organizado. Possibilita que as dificuldades desse processo sejam conhecidas e compartilhadas, que as soluções e superações sejam apreendidas e adaptadas, e que a Fé e a Esperança, que movem os que trilham esses caminhos, sejam fortalecidas.

Sandra Fortes - Graduada em Medicina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1982). Mestrado em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995) e Doutorado em Saúde Pública, Epidemiologia e Saúde Coletiva pela Universidade do Rio de Janeiro (2004).
LanguagePortuguês
Release dateJan 1, 2017
ISBN9788547312220
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    Saúde mental no contexto da realidade brasileira - Aidecivaldo Fernandes de Jesus

    Editora Appris Ltda.

    2ª Edição - Copyright© 2017 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    Dedicatória

    Ao Doni

    Doni (Donizete) era um sujeito feio e baixinho. No rosto, além dos olhos estrábicos, tinha várias cicatrizes, em função dos graves tombos que levou, durante suas crises, e uma boca enorme onde os poucos dentes restantes estavam sobrepostos, cariados ou quebrados. Mesmo assim, insistia em se manter sempre sorrindo. Apesar dos cabelos despenteados e oleosos, sua vaidade mantinha um pente velho no bolso do paletó remendado que, às vezes, pedia para alguém usar nele mesmo.

    Não articulava bem as poucas palavras que sabia, portanto, somente com um bom tempo de convivência se conseguia entender aqueles grunhidos. Mesmo assim, persistia em ser falante e comunicativo com todos que o cercavam. Era portador de um retardo mental moderado, além de uma epilepsia que a medicina não conseguiu controlar. Às vezes, costumava fazer algumas travessuras, como cuspir os remédios só pra ver a gente lhe dar bronca. Doni era um brincalhão.

    Por outro lado, também era doce e meigo, tinha um brilho nos olhos que me mostrava sempre uma alegria em viver. O sorriso era sincero, radiante... CONTAGIANTE, então... Pra que os dentes?

    Era determinado, eu diria que até teimoso, portanto, não atendia às recomendações da equipe assistente. Constantemente era pego correndo pela enfermaria, brincando com os pacientes de esconde-esconde (de preferência da própria enfermagem, na hora dos remédios). Doni era um gozador, mas era, ao mesmo tempo, um doente mental abandonado pela família, há nove anos, num manicômio. Tinha crises convulsivas severas, acompanhadas de agitação psicomotora e agressões aos outros. Óbvio, não era inteligente, não sabia falar direito e não compreendia ordens simples.

    Doni tornou-se um paciente asilado e costumava me acompanhar durante as visitas que eu fazia à ala dos crônicos, no manicômio, em Campos de Jordão. Entrava em todos os quartos comigo, informava-me, do seu jeito, como os pacientes passaram a noite e, me pegando pelo braço, dizia a todos, entre os grunhidos: "ó, mó dotô". Ou seja, foi um dos primeiros a me considerar seu médico, apesar de, na época, eu estar somente no último ano do curso de graduação. Doni tornou-se meu companheiro e me ensinava os mistérios daquela situação institucional... Mais ainda, me transformava em um humano, apesar de sua vivência potencialmente desumana.

    Um dia, levaram-no embora para outra instituição, no interior de São Paulo. Acredite, por contenção de despesas. Revoltado, considerei a atitude ridícula e cruel. Tentei mostrar a todos o quanto seria perigosa essa transferência, pois significava seu segundo abandono pelos familiares. Doni não suportaria, eu argumentava... Admito que até briguei com meus superiores. Apesar disso, ele foi embora e nunca mais o vi, ou melhor, há anos, nos separaram.

    Naquela noite, deitado em meu quarto, confesso que, me sentindo impotente, chorei pelo Doni e jurei fazer alguma coisa para que outros donis não existissem mais. Não por causa do ser humano que era, pois era uma linda pessoa, mas por conta das condições em que vivia.

    Queira Deus que este livro e suas ideias possam contribuir para o cumprimento, em parte, dessa promessa feita há 26 anos ao meu amigo... DONI.

    Agradecimentos

    Aos meus pais e às minhas irmãs, por terem me oferecido alguns quintais onde foi possível surgir um menino curioso, um jovem com valores e um homem ansioso por um processo de ‘vir a ser’ gente de bem;

    Aos meus professores, pelo investimento, pela crença no meu potencial e pelos constantes ensinamentos à vida;

    Aos amigos, pela companhia, pelo acolhimento, afeto e pela tolerância com minhas ideias e propostas de convivência;

    À Profa Drª. Sandra Fortes, por me apresentar o tema Saúde Mental na Atenção Primária e iniciar minha capacitação para atuar no campo;

    Ao grupo de pesquisa/diretório do CNPq Análise Institucional e Saúde Coletiva, por ter me acolhido e educado sobre o quanto pode ser gratificante pesquisar na academia;

    Aos mestres do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp/SP, pelo aperfeiçoamento no aprendizado, pelas adequações e os estímulos ao processo de me tornar um pesquisador mais maduro;

    À minha orientadora, Profª. associada (livre-docente) Solange L’Abbate, pela paciência e tolerância com meus deslizes, além da sabedoria no conduzir meus obstáculos do doutorado, bem como a qualidade das preciosas orientações na investigação e, principalmente, pela honra de me permitir tê-la como efetiva parceira no projeto de pesquisa;

    À banca de defesa da tese: Profª. livre-docente Cristina Amélia Luzio, Profªs. Drªs. Heliana de Barros Conde Rodrigues, Rosana Tereza Onocko Campos e Luciane Maria Pezzato, pela generosa disponibilidade e dedicação na análise do texto/projeto;

    À Profª. Drª. Luiza Mauad, pela parceria, cumplicidade e pelos debates no campo de pesquisa;

    Aos gestores de Saúde do município de Paraisópolis/MG, pela confiança e viabilização da proposta do serviço local;

    À equipe de Saúde Mental de Paraisópolis/MG, pela coragem, inclinação e generosidade na construção conjunta do nosso cotidiano;

    Aos usuários do Serviço de Saúde Mental, pelas demandas, pela fé e predisposição ao vínculo;

    E principalmente agradeço aos meus ‘porto-seguro" nos momentos de abatimento: Sandra (minha esposa) e Luam (meu filho), sem os quais eu jamais conseguiria chegar até aqui...

    A todos vocês, minha eterna gratidão!

    Impregnação

    Na tarde dos aureolados¹

    A vida sai pelos poros.

    Os sonhos dormem cansados

    E as dores moram nos olhos.

    O sol se funde no céu

    E se faz noite com a lua.

    A forma envolve no véu

    A dimensão quase nua.

    Na tarde dos aureolados

    O rosto é estranho desenho;

    Os homens ensimesmados;

    E as rugas franzem o cenho.

    Se cruzam as paralelas

    Pela extensão dos seus rastros

    Quando a razão é janela

    Por onde fogem os astros.

    Na tarde dos aureolados

    Rosas falam entre si

    Dos seres não perfumados

    Que nunca sabem florir.

    O medo baila na mão

    Do horror, num gesto comprido,

    Assassinando a emoção

    Numa redoma de vidro.

    Na tarde dos aureolados

    As deusas são mais que lendas

    E os imortais, imolados

    Nas mesas das oferendas.

    O bem e o mal se consomem

    No mesmo ponto de atrito;

    A sombra desenha um homem:

    Ressurreição dos aflitos.

    Na tarde dos aureolados,

    Sem pranto, apenas há cruz

    De amores crucificados

    No céu, no dia e na luz.

    Os aureolados da tarde

    Olham doído e calados...

    E o sol não brilha nem arde

    Na tarde dos aureolados.

    Gildes Bezerra

    Lista de Abreviaturas

    ABP – Associação Brasileira de Psiquiatria

    ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva

    ACS – Agente Comunitário de Saúde

    ACSM – Agente Comunitário da Saúde Mental

    AI – Análise Institucional

    APS – Atenção Primária à Saúde

    CAPS – Centro de Atenção Psicossocial

    CID 10 – CP – Diretrizes diagnósticas e de tratamento para transtornos mentais em cuidados primários

    CFP – Conselho Federal de Psicologia

    CNSM – Conferência Nacional de Saúde Mental

    DI – Diário individual de pesquisa

    DQ – Diário institucional coletivo – Dom Queixote

    ESF – Estratégia Saúde da Família

    ePSF – Equipes da ESF

    eSM – Equipe da Saúde Mental

    eESMF – Equipe da Estratégia Saúde Mental da Família

    IV CNSMI – IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial

    MLA – Movimento de Luta Antimanicomial

    MS – Ministério da Saúde

    OMS – Organização Mundial da Saúde

    PS – Pronto Socorro

    PSF – Programa Saúde da Família

    SM – Saúde Mental

    SRS – Superintendência Regional de Saúde

    SMSMP – Serviço Municipal de Saúde Mental de Paraisópolis/MG

    SUS – Sistema Único de Saúde

    UBS – Unidade Básica de Saúde

    1 Nota de esclarecimento do poeta: a denominação aureolados vem do princípio de que, na Antiguidade algumas pessoas sensíveis, como os pintores, viam os santos e os loucos com uma auréola. Por exemplo, o poeta francês Baudelaire, em um pequeno conto fantástico, fala da perda da auréola de poeta.

    Prefácio

    Solange L`Abbate

    ¹

    Paraisópolis, ou simplesmente Paraíso, é uma bela cidade situada na Serra da Mantiqueira, no Sul de Minas Gerais, famosa por seus ventos fortes e também por seus picos elevados, sua cachoeira e quedas d’água e até uma represa, situada a 1.400 m., considerada a de maior altitude do país. A cidade pertence à região de Itajubá, onde vive e trabalha o médico psiquiatra Aidecivaldo Fernandes de Jesus, autor deste livro.

    Em 2005, Aidecivaldo, ou simplesmente Aidê, como costuma ser chamado, foi convidado pelo gestor municipal de saúde de Paraíso para implantar um serviço de saúde mental na cidade, após tentativa anterior de outro psiquiatra, que não havia dado certo. A princípio, a proposta era de implantação de um Centro de Atenção Psicossocial/CAPS, o que acabou não ocorrendo. Diante disso, e com anuência do gestor, Aidê decidiu traçar outra estratégia. Intuindo o quanto o processo seria desafiador e complexo, nosso autor achou por bem transformar a análise da experiência em tese de doutorado em Saúde Coletiva, que tive o privilégio de orientar. Foi essa tese que resultou neste belo livro.

    À luz de referenciais teórico-metodológicos da Análise Institucional e de um autor da Sociologia Interacionista, tendo como pano de fundo o contexto da Reforma Psiquiátrica e da Reforma Sanitária que, em 1988, deu origem, no nosso país, ao Sistema Único de Saúde/SUS, Aidê abordou de forma crítica o processo de institucionalização do serviço, percebendo o quanto tal análise poderia ser relevante para profissionais e gestores de Saúde Mental, sobretudo os que atuam em municípios de pequeno porte. Isso porque Paraisópolis é uma cidade com população estimada em 20.000 habitantes, como ocorre em cerca de 79% das cidades mineiras e em 70% dos municípios brasileiros.

    Há tempos, é praticamente unânime, o reconhecimento de que uma atenção à saúde de qualidade e resolutividade depende do trabalho integrado de diferentes profissionais numa mesma equipe. Compartilhando com tal assertiva, Aidê decidiu registrar o processo cotidiano de institucionalização do Serviço de Saúde Mental de Paraíso, a partir das suas reflexões, em um diálogo permanente com as reflexões dos trabalhadores da equipe coordenada por ele.

    Tal conversação foi registrada no Dom Queixote, denominação dada pelos próprios trabalhadores a um caderno, sempre disponível e ao alcance de todos, no qual os trabalhadores e o coordenador eram convidados a escrever livremente sobre situações vividas no dia a dia. Construiu-se assim um diário coletivo. O nome Dom Queixote lembra o famoso herói de Cervantes, que na sua maravilhosa utopia, enfrentava até moinhos de vento, mas, ao mesmo tempo, remete a uma ideia de queixa, insatisfação...

    E do que será que o autor e os profissionais se queixavam? Basicamente, das dificuldades de toda ordem que surgem a cada momento: relacionadas às dimensões do processo de trabalho, aí incluindo o relacionamento interpessoal dos profissionais; da ética na relação com os usuários, bem como das exigências trazidas pelas suas demandas; dos embates com a gestão, além de outros temas. Mas, que o leitor não pense que no Dom Queixote só havia relato de queixumes. Não! Ali também registraram-se a satisfação e alegria pelo sucesso alcançado com os esforços que tiveram êxito.

    Essa dimensão de caráter micro, circunstanciada por dados de produção do serviço, foi relacionada aos aspectos mais amplos das Reformas Psiquiátrica e Sanitária, levando em conta também a relação dos serviços de Saúde Mental com a Estratégia da Saúde da Família. Ao abordar esse contexto, Aidê dialoga com prestigiosos intelectuais da Saúde Mental e da Saúde Coletiva, expondo sempre, de forma corajosa, seu posicionamento crítico em relação a várias propostas da Política de Saúde. E, para sorte dos leitores, tudo isso é revelado no livro, em articulação com análises teóricas e com a prática da militância exercida na área da Saúde Mental, como o autor exemplifica, sobretudo nos relatos de suas participações nas Conferências Nacionais de Saúde Mental.

    Tudo isso indica que o leitor vai entrar em contato com um texto inédito e provocador. Isso porque a construção/institucionalização do Serviço de Saúde Mental de Paraisópolis se deu inteiramente articulada à própria constituição do grupo de trabalhadores de saúde e de seu coordenador, pois todos se transformaram durante o processo. Creio que isso só ocorreu porque Aidecivaldo Fernandes de Jesus ousou utilizar um método de pesquisa-intervenção no qual os participantes foram sujeitos que puderam explicitar suas implicações, e como propunha René Lourau, um autor da maior relevância para este livro, colocá-las em análise.

    Aidê tem razão ao dirigir-se, no final do texto, ao Dom Queixote:

    Enfim, prezado diário, tive mais um dia de trabalho. Sinceramente falando, muito semelhante a tantos outros: brigamos e construímos na reunião, cobramos e fomos cobrados por uma atuação clínica eficaz, escutamos algumas pessoas, não conseguimos resolver a demanda de outras, não nos foram dadas todas as condições necessárias para uma atuação, foi tenso, cansativo... Mas revigorante ao seu final. O que não quer dizer que em alguns momentos eu até chegue a pensar que mereço um descanso, ou até mesmo pense em desistir. Portanto, Queixote, só posso finalizar dizendo que muito mais que queixar a você, sua existência nos permitiu conviver mais honestamente... Não deveria ser esse o principal objetivo de todos os cotidianos?

    Este livro, lançado pela Editora Appris em 2013, teve sua primeira edição esgotada e, após uma cuidadosa revisão, está sendo apresentado em sua segunda edição. Sem dúvida, esse fato comprova não apenas a qualidade e o ineditismo da investigação realizada por Aidecivaldo Fernandes de Jesus, mas também o crescente interesse dos profissionais de saúde pela área da Saúde Mental.

    Uma ótima leitura a todos.

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    1. O debate proposto da Saúde Mental no contexto atual da Reforma Psiquiátrica

    2. O contexto macro político

    3. O cenário da pesquisa: apresentando Paraisópolis/MG

    4. Reflexões Teórico-Conceituais

    Capítulo I

    O SERVIÇO (instituído) DE SAÚDE MENTAL

    1. Uma proposta de convivência (potencialmente) instituinte

    2. A porta de entrada – acolhimento

    3. O cardápio de ofertas ao usuário

    4. O perfil do Serviço, segundo sua produtividade

    5. A rede de cuidados

    6. A proposta política institucionalizada

    Capítulo II

    A AÇÃO DOS SUJEITOS

    1. Um pesquisador implicado

    2. A construção de uma equipe

    CONCLUSÕES FINAIS

    Sobre a experiência/vivência numa pesquisa-intervenção

    Sobre o instrumento de pesquisa chamado diário

    Sobre a prática clínica em saúde mental numa cidade pequena

    Sobre a participação nos fóruns de discussão sobre a Saúde Mental

    Sobre a utilização da Análise Institucional

    Post-scriptum

    Apêndice I

    Apêndice iI

    REFERêNCIAS

    Anexo I

    Anexo II

    Introdução

    __ Se eu tomar o remédio direitinho resolve o meu problema?

    __ Talvez ajude... Mas precisamos também descobrir tudo o que está por trás desse problema.

    Diálogo com um usuário do Serviço de Saúde Mental de Paraisópolis/MG

    1. O debate proposto da Saúde Mental no contexto atual da Reforma Psiquiátrica

    Está em vigência, há alguns anos, um debate público sobre a chamada "Reforma Psiquiátrica Brasileira²". O debate foi tencionado em 2006, a partir de um posicionamento, via imprensa, da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), contrário à proposta do Ministério da Saúde (MS) para o setor.

    Segundo Pedro Gabriel Delgado (ex-coordenador nacional da Saúde Mental), em artigo-resposta publicado no jornal O Globo, em 27/07/06:

    Vivemos um importante debate no campo da psiquiatria e saúde mental no Brasil, de que é exemplo o artigo do presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Dr. Josimar França (O erro da política de saúde mental, O GLOBO, 20/7/06). O centro da discussão é: qual a melhor maneira de organizar os serviços de saúde, para garantir tratamento à imensa legião de pessoas que sofrem com sintomas — mais ou menos graves — que afetam sua saúde mental? (negritos meus)

    Tenho acompanhado essa disputa, com interesse e apreensão. Percebo que os posicionamentos dos diversos atores (psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, enfermeiros e/ou outros profissionais sanitaristas solidários à APS, líderes do Movimento de Luta Antimanicomial (MLA), políticos ligados à luta pelos direitos humanos etc.) têm sido assumidos de forma contundente, longe da consonância das ideias, dificultando, a meu ver, a difusão e operacionalização de propostas efetivas para o equacionamento da questão.

    Dessa forma, a análise da prática adquire importância ímpar no processo de construção profissional e institucional.

    Conforme salienta Gil (2006):

    a organização dos serviços não acontece ao acaso e as práticas profissionais, no seu interior, ocorrem articuladas a um corpo de ideias, a um conjunto de ações coordenadas que configuram um determinado processo de trabalho em saúde estruturado pela forma como os serviços são organizados, geridos e financiados (p. 1172).

    Para Pinheiro e Luz (2003), estudar os atores, seus discursos e práticas no cotidiano das instituições é fundamental, pois possibilita a localização de elementos objetivos e subjetivos, por meio dos quais aqueles constroem suas percepções referentes à vida social, incluindo a existência institucional.

    Também observo que, nos serviços de saúde, têm sido desenhados alguns modelos assistenciais que mais parecem externos a eles, com pouca ou nenhuma interlocução com a realidade concreta. Racionalmente pensados, esses modelos têm-se mostrado pouco efetivos no cumprimento de seus objetivos, o que reforça a ideia de que as práticas podem ser mais eficazes quando postas como potentes ferramentas de construção.

    Ressalte-se que

    a práxis destaca-se no processo de pesquisa, não como um campo de experimentação, mas como autora de eventos e fatos sociais, de representações e de comportamentos sociais, condicionando tanto sua reprodução, como a construção de uma realidade mais ampla em saúde. Uma realidade que se traduz em força de trabalho, se concretiza no cotidiano dos serviços oferecidos à população e muitas vezes se revela como o avesso dos modelos tradicionais de organização da assistência (PINHEIRO; LUZ, 2003, p. 10).

    Estamos falando de um campo institucional onde a atuação em equipe é instituída como estratégia. Daí é forçoso relembrar Alves (2001), quando diz que ao aproximarmos a Saúde Mental (SM) da Atenção Primária à Saúde (APS), evidenciam-se alguns desafios inevitáveis, dos quais o autor aponta dois como fundamentais a serem considerados: o primeiro, e mais importante, diz respeito ao formato como se organizam as equipes do PSF (ePSF) – repetindo o modelo médico biológico tradicional –, com uma hierarquia na relação de conhecimento e mando, prejudicando a efetivação de uma conquista recente no atendimento aos portadores de transtornos mentais. O segundo é trabalhar de fato em equipe multiprofissional, que tem sido a marca (ou proposta) nos serviços comunitários de saúde mental.

    Esse foi um dos principais desafios para consolidação da pesquisa que será abordada adiante. Esta, inevitavelmente, coadunou-se com as premissas apontadas por Alves (2001) e, portanto, enfrentou os principais obstáculos observados, tanto na equipe de Saúde Mental (eSM) como nas ePSF locais: a formação dos trabalhadores de saúde e a funcionalidade adequada da equipe.

    A rigor, tal desafio seria buscar na proposta instituída local sua potencialidade instituinte, favorecendo sua adequada institucionalização.

    Para Lourau, (2004a),

    Desde suas origens, a corrente institucionalista pôs ênfase na relação antagonista entre o instituinte e o instituído e nos processos ativos da institucionalização. A alienação social significa a autonomização institucional, a dominação do instituído fundada no esquecimento de suas origens, na naturalização das instituições. Produzidas pela história, elas acabam por aparecer como fixas e eternas, como algo dado, condição necessária e trans-histórica da vida das sociedades (p. 73, itálico do autor).

    O autor afirma que a dinâmica instituído/instituinte/institucionalização são momentos dialéticos comuns a toda instituição³. Sendo assim, os pressupostos da Análise Institucional (AI) foram de fundamental importância para a compreensão desse serviço. Portanto, o aprendizado efetivo, a partir das práticas realizadas, consolidou-se em um processo profícuo de reconstrução institucional.

    Afinal, conforme afirmam Pinheiro e Luz (2003):

    para tratar dessas questões sobre as práticas em saúde, o agir cotidiano nas instituições de saúde configura-se como um situs privilegiado de estudos e de construção da integralidade em saúde. Esta é entendida aqui no sentido ampliado de sua definição legal, ou seja, como uma ação social que resulta da interação democrática entre os atores no cotidiano de suas práticas na oferta do cuidado de saúde, nos diferentes níveis de atenção do sistema de saúde. Diante dessa perspectiva crítica, o cotidiano⁴ nas instituições de saúde surge como um espaço não de verificação de ideias, mas de construção de práticas, de novas formas de agir social, nas quais a integralidade pode se materializar como princípio, direito e serviço na atenção e no cuidado em saúde (p. 07).

    Por outro lado, admito a convicção de que somente a partir da articulação e adequação dos conceitos da AI com a minha práxis, tornou-se possível vivenciar com maior segurança o exercício profissional de ser pesquisador do meu próprio cotidiano institucional. Haja vista a implicação vigente e os riscos de sobreimplicação no ato de pesquisar (LOURAU, 2004c).

    Segundo aponta L’Abbate (2003)

    sem haver transformação das práticas cotidianas dos profissionais dos serviços de saúde, não haverá mudanças na forma desses serviços funcionarem, no sentido de garantir acesso, a qualidade e a resolutividade, no atendimento de saúde à população. Além disso, acrescento que, sem levar em

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