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Política do ódio no Brasil
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Política do ódio no Brasil

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Em um país marcado por profundas desigualdades, o surgimento da discussão sobre os "discursos de ódio" acabou passando ao largo dos elementos de raça, classe, religião, gênero e acontecendo em razão de uma acirrada disputa política.
Neste livro, o autor toma por base a campanha presidencial de 2014, para analisar a circulação desse tipo de mensagem e os riscos que a política de ódio passou a representar diante dos contextos de escalada da polarização e de ascensão das mídias sociais como fonte de informação. Utilizando o referencial histórico de eventos onde o discurso de ódio abriu o caminho para a violência de massa, como o Holocausto, o Genocídio de Ruanda e o surgimento do Estado Islâmico, o autor examina as narrativas dos candidatos e a repercussão que elas alcançaram na mídia Facebook; além de apresentar uma proposta de metodologia para a análise dos discursos políticos em plataformas audiovisuais.
LanguagePortuguês
PublisherViseu
Release dateNov 1, 2019
ISBN9788530012953
Política do ódio no Brasil

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    Política do ódio no Brasil - Angelo Müller

    Copyright © Viseu

    Copyright © Angelo Müller

    Todos os direitos reservados.

    Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos, incluindo ainda o uso da internet, sem a permissão expressa da Editora Viseu, na pessoa de seu editor (Lei nº 9.610, de 19.2.98).

    editor: Thiago Domingues

    revisão: Angelo Müller

    projeto gráfico: BookPro

    diagramação: Rodrigo Rodrigues

    capa: Vinicius Ribeiro

    e-ISBN 978-85-300-1295-3

    Todos os direitos reservados, no Brasil, por

    Editora Viseu Ltda.

    falecom@eviseu.com

    www.eviseu.com

    Este livro é resultado da Tese de Doutorado do autor, defendida e aprovada com Louvor em março de 2019 e intitulada: Brasil Polarizado – os discursos de incitação ao ódio na campanha presidencial de 2014.

    Para Fernanda, Aurora e Rafaela;

    e por dias melhores

    AGRADECIMENTOS

    Esse livro é resultado de quatro anos de uma vivência intensa. Ao longo desse período, foram muitas as pessoas que contribuíram, cada uma à sua maneira, para levar a ideia inicial, de entender o universo do discurso de ódio no meio político, ao status de tese acadêmica¹ e, agora, livro.

    Desde os primeiros encontros em sala de aula, no Dept. de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-RS até a última disciplina cursada no Dept. de Pós-graduação em Comunicação da Escola de Comunicação, Artes e Design da PUC-RS, a antiga Famecos, passando pelo Grupo de Pesquisa em Comunicação, Emoção e Conflito (GPCEC) e pelo Centro para Estudos Ibéricos e Latino Americanos da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), tive a oportunidade de discutir o tema do discurso de ódio com colegas pesquisadores que me ajudaram substancialmente, como Mariana Oselame, Matheus Beck, Manoel Petrik, Fernando Antunes, Douglas Porto, Rodrigo Escribano e Carlos Teixeira. A eles e aos demais companheiros e amigos, agradeço por dividirem comigo suas caminhadas.

    Da mesma forma, aos meus professores na PUC-RS, Doris Haussenn, Francisco Rüdiger, Jorge Campos da Costa, Beatriz Dornelles, Cristiane Finger e, em especial, ao professor Antônio Hohlfeldt, agradeço pela pronta disposição e, principalmente, pela qualidade e relevância de suas críticas. Ao meu orientador, durante o período de doutorado-sanduíche na Universidade da Califórnia, San Diego, Daniel Hallin, bem como aos professores do Dept. de Political Sciences da UCSD, Scott Desposatto e Samuel Popkin, pelo interesse no projeto e pela calorosa acolhida. À minha banca de defesa, formada pelos professores Nythamar de Oliveira, Jairo Ferreira, João Guilherme Barone e Cristiane Mafacioli Carvalho e a todos os professores que acreditaram nesse projeto, ajudando e incentivando a exploração dessa desconfortável imensidão que se trata do conhecimento crítico, livre de paixões e dogmatismos e que tem por Rei, apenas a ciência, muito obrigado.

    Um agradecimento igualmente especial ao meu orientador, Jacques Wainberg, pela infindável fonte de ideias, críticas e direcionamentos, mas também pela confiança e amizade, que levarei para sempre comigo. Esse trabalho se baliza pela grandeza de sua produção.

    À Capes, por financiar meus estudos, desde o Mestrado, possibilitando a tranquilidade necessária para que eu escolhesse os melhores caminhos, mas acima de tudo, por possibilitar, durante esses últimos anos, que eu vivesse exclusivamente da pesquisa e para a pesquisa.

    À Clecy, minha mãe, e ao Arnildo, meu pai (in memorian), pelos exemplos de retidão e honestidade, por inspirarem a mim e minhas irmãs a buscarmos sempre o crescimento através da educação, e por terem sido, eles mesmos, incansáveis na tarefa de nos proporcionarem a melhor possível. À Fernanda, minha esposa, por ser fonte inesgotável de amor, confiança e companheirismo.

    E a todos que ajudaram a me formar como acadêmico e indivíduo crítico, e que demonstraram, na prática, que o objetivo principal da aquisição e transmissão de nosso conhecimento é contribuir para que tenhamos uma sociedade mais justa e harmoniosa, a minha continuada inspiração.

    Muito obrigado.


    1 Brasil Polarizado: Os discursos de incitação ao ódio na Campanha de 2014 (Müller, 2019).

    APRESENTAÇÃO

    Por Jaques Alkalai Wainberg

    Desde pequeno aprendemos a não dizer tudo o que pensamos. Dessa forma evitamos ferir os sentimentos dos nossos interlocutores. Resulta que a autocensura tem sido instrumento útil à civilidade. Este silêncio obsequioso serve aos fins da pacificação dos espíritos. Ocorre, no entanto, que nem sempre é isso o que acontece nos encontros comunitários.

    Este estudo faz parte de um novo tempo no qual os pesquisadores de comunicação contemplam finalmente a temática dos sentimentos sociais. Eles servem de amálgama aos clusters que se formam agora nas redes sociais. O medo, a alegria e o rancor, por exemplo, despertam as pessoas da desatenção. Essas e outras emoções também conquistam audiências para os programas jornalísticos e de entretenimento. Tanto a religião como a política dependem igualmente dessa capacidade, a da retórica estimular os sentidos, conquistar a adesão e a fidelidade da audiência. Como se sabe da história os efeitos desses discursos persuasivos nem sempre são construtivos.

    A realidade brasileira tem sido um showcase deste tipo de ocorrência. Muito embora o discurso do ódio não seja algo novo na história do país ele é agora instrumento cotidiano da política. O estudo que ora apresentamos faz ampla análise dessa temática. Ele também apresenta um método original para se medir a ofensividade das palavras.

    A moral dessa história é, ao mesmo tempo, simples e grave. Os discursos evocam argumentos e sentimentos. O corpo humano fervilha ao ser atingido por esta munição afetiva. Resulta que a radicalidade se torna instrumento das disputas irreconciliáveis e por isso mesmo perigosas. 

    O autor é um jovem talento. Pesquisador dedicado e inteligente oferece ao leitor um estudo de fôlego sobre o tema. A obra é um alerta sobre os perigos da polarização política e da intolerância. Fica claro que não só a difamação e a injúria estão à espreita. Seu principal rebento é a violência.

    As disputas eleitorais recentes, entre elas a de 2014, se tornaram no Brasil um campo de batalha nos quais palavras são disparadas como munição de parte a parte. Nos casos históricos estudados pelo autor – o do genocídio dos judeus pelos nazistas, em Darfur e no Oriente Próximo, onde as forças do Estado Islâmico atuam no combate à heresia em nome de Alá - as consequências desse tipo de manifestação foram dramáticas. Elas servem de alerta aos brasileiros.

    O que está em jogo nas disputas étnicas, religiosas, culturais e políticas são as emoções coletivas, principalmente o medo e o ódio das multidões. Elas são agitadas agora também com a militância on line e as postagens fakes de milicianos virtuais que atuam em nome de partidos políticos, corporações, governos e grupos criminosos variados. A inteligência artificial e os algoritmos são elementos novos da atualidade que permitem farejar a rede, conhecer com profundidade as crenças dos públicos facilitando ainda mais a manipulação dos sentimentos coletivos.

    Cabe por isso saudar este estudo. Ele mostra que as palavras não são inocentes. Faz também recordar os ensinamentos da infância. Ter cuidado com a forma e com o conteúdo das falas é medida de cautela e de civilização. O contrário também é verdadeiro. Seu uso malicioso tem consequências. Entre eles está, no caso brasileiro, o sectarismo, o extremismo e o discurso do ódio.

    O que o PSDB e o PT mostraram ao país nas suas disputas binárias ao longo do tempo foi a polarização nociva das emoções coletivas. Essa radicalidade ecoou pelo território nacional. As discussões familiares sobre corrupção tornaram-se igualmente apaixonadas. E os debates radiofônicos sobre esses temas têm sido embalados agora pela ironia e o sarcasmo.

    Os efeitos desse ambiente no clima de opinião pública podem ser devastadores, diz o autor. Cabe por isso recordar as palavrinhas mágicas da infância, as que aproximam as pessoas e encantam o interlocutor por sua delicadeza, mesmo nos casos nos quais o conteúdo da mensagem é a admoestação e a reprimenda.

    INTRODUÇÃO

    Um país dividido pelo partidarismo

    1.1 Justificativa

    A divisão político-ideológica que vivemos no Brasil de 2019 não é obra do acaso. Seu traçado histórico pode ser acompanhado nas diferentes tentativas de transformação da matriz política nacional. Entre projetos de governo e golpes de Estado, tais iniciativas, invariavelmente representaram a compreensão de que seria necessário suplantar a vontade dos grupos políticos de oposição, ao invés de empregar esforços a fim de alcançar alguma forma de consenso. E a eleição de Jair Bolsonaro constitui, nesse sentido, como uma das sequências que poderiam ter sido previstas, como decorrências da insistência obstinada pelo recurso à polarização.

    O ódio manifesto entre apoiadores e opositores radicais de um Presidente tampouco constitui originalidade. Mas sua presença nos discursos que circulam pelo ambiente midiático – dramaticamente ampliado durante a década atual – serve para potencializar ainda mais uma racionalidade beligerante que já vinha escalando há décadas, mas que somente agora materializaria a disputa cantada em prosa e verso, desde a redemocratização, entre dois polos políticos completamente opostos.

    A expressão discurso do ódio começou se tornar popular no Brasil na esteira dos movimentos sociais de 2013 e 2014 e também às vésperas da eleição presidencial que decidiria, através da menor margem percentual de votos de toda a história, a reeleição de Dilma Rousseff. Uma notoriedade tardia, em relação a países como Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra, Austrália, Canadá e Israel, pioneiros no tratamento dos discursos considerados de incitação ao ódio. Esse fato chamava a atenção porque, mesmo sendo um país marcado por profundas rupturas, o surgimento da expressão discurso de ódio e de suas implicações como tema de discussão no Brasil, diferentemente daqueles países, não estava vinculado a disparidades raciais, étnicas, nacionalistas, de classe ou religiosas, mas sim, a um processo de recrudescimento do radicalismo político-partidário.

    Em 2014, o Brasil viveria a maior campanha política de sua história. O volume investimento superava os R$ 5 bilhões² e o número de indivíduos cadastrados para votar atingira a marca recorde de 142 milhões de eleitores³. Aquela também seria a eleição de maior alcance e cobertura midiática, quando 97% dos domicílios no país apresentavam, pelo menos, um aparelho de TV⁴, e o volume de utilização da internet crescia exponencialmente. No início de 2014, havia 136 milhões de computadores em uso no Brasil - dois para cada três habitantes. E a estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) era de que, em 2016, o país atingisse a marca de um celular por habitante. Em sua pesquisa anual sobre consumo de mídia⁵, o instituto apontava que, pela primeira vez, o número de domicílios com acesso à rede mundial ultrapassava os 50%, e que a utilização de outros dispositivos, além do computador, para navegar na rede, havia crescido 137% durante os últimos 12 meses. O Brasil seguia uma tendência mundial, onde o telefone celular se constituía como o principal meio de navegação, e contribuía para que o total de pessoas conectadas ultrapassasse os 95 milhões (54,4% da população)⁶ por aqui. De acordo com um levantamento realizado pelo pesquisador da Universidade de Dusseldorf, Edgard Vowe (2016), naquele ano, no mundo inteiro, o número total de aparelhos ativos se equiparava ao de habitantes, ou seja, mais de sete bilhões. Destes, dois bilhões eram smartphones, o que ajudava a disseminar o acesso móvel à internet.

    Esse mesmo período também marcava a consolidação das chamadas mídias sociais como novo espaço de produção e consumo massivo de informação no Brasil. Entre 2013 e 2014, apenas a plataforma Facebook, passaria de pouco mais de 40 milhões de usuários cadastrados, para cerca de 100 milhões, o que representava mais da metade da população do país. De acordo com os dados fornecidos pela própria rede, estimava-se que 89 milhões de indivíduos a acessavam mensalmente enquanto, para 59 milhões, esse já era um hábito diário.

    A multiplicação no volume de acesso à internet, impulsionado pela utilização das plataformas de mídia social, transformou fundamentalmente a forma como a informação política passou a ser acessada. Com uma quantidade maior de pessoas conectadas, que dedicavam cada vez mais o seu tempo para as interações via rede, ocorreu um também maior envolvimento, tanto nas discussões políticas, como nos processos disponíveis de tomada de decisão coletiva (Ituassu, 2015; Henn & Vowe, 2016). E uma das principais consequências desse alargamento do ambiente político-midiático, seria uma amplificação do poder dos usuários, através das inúmeras possibilidades de disseminação e viralização de conteúdos digitais, além da criação de espaços de discussão que poderiam ser acessados por um grande número de indivíduos, independentemente de fazerem parte de suas redes diretas de influência. Essas características das novas mídias possibilitavam um alcance extraordinário, devido à conquista de novos espaços de divulgação para conteúdo informativo que iam além do escopo tradicional formado por jornal, revista, rádio e televisão.

    O aumento do número médio de interações diárias e o uso crescente da rede como plataforma para a divulgação de informações de teor político, por outro lado, também conduziria para a formação de um ambiente onde essa temática passava a se tornar cada vez mais exposta. E como era de se esperar, entre os impactos da exposição e ampliação do engajamento político, os maiores reflexos, em número e intensidade, se dariam no surgimento de conflitos vinculados a disputas políticas ou eleitorais. Através da internet e das mídias sociais, até mesmo aquelas pessoas que, anteriormente, não se interessavam por política ou evitavam a participação nesse tipo de discussão, se viram, de repente, imersas em um ambiente de antagonismo, maniqueísmo e intolerância sem precedentes, que apresentava, como argumento central, os vínculos e a identificação político-partidária. Um clima de polarização que, por um lado, descortinava a fragilidade das relações estabelecidas virtualmente, enquanto, do outro, também abalava amizades construídas durante décadas de convívio, ao fixar os posicionamentos políticos, ou a falta deles, como fiel da balança.

    Na medida em que mais indivíduos passavam a conviver de maneira participativa com a política - e com as alegrias e frustrações desse universo - se tornavam também mais abrangentes as consequências dessa participação. E esse movimento acontecia, no Brasil, justo em meio a um contexto de instabilidade institucional e insatisfação social crescentes, motivado, àquela altura, pela insatisfação com os poderes executivo e legislativo federal, e completado pela iminência de um processo eleitoral e suas possíveis mudanças nos rumos do país. Assim, o que ainda havia de civilizado nas discussões sobre política começava a dar lugar às bravatas, intolerância, sarcasmo e ofensividade, fazendo com que plataformas como o Facebook e Twitter se tornassem, cada vez mais parecidas com repositórios de narrativas revolucionárias. O clima de protesto, que se espalhava, desde meados de 2013, fazia com que as altercações políticas transitassem, progressivamente, das redes para as ruas e das ruas para as redes e, ao mesmo tempo em que a incivilidade e o extremismo escalavam nas mídias sociais, seus reflexos começavam a ser percebidos de maneira mais pronunciada, igualmente, fora delas.

    Naquele 2014, o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) se encontrariam, pela sexta vez consecutiva, como os principais aspirantes à cadeira da presidência da República. Uma tradição de disputa que atingia mais de duas décadas e já havia desenvolvido, entre os apoiadores duas siglas, um considerável repertório de narrativas, mitos, heróis, vilões e preconceitos. Retornando um pouco no tempo, percebe-se que já estávamos lidando com discursos de incitação ao ódio na construção dessa rivalidade e, além disso, que ela estava longe de ser uma novidade. Mesmo a utilização desse tipo de retórica, como nos evidencia o contexto político atual, sendo desastrosa para a vida social e política do país, a cada período histórico dado, é possível identificarmos os principais agentes ocupados em promover a divisão através dos discursos de incitação ao ódio político, rastreando sua ocorrência, até, pelo menos, o final do Segundo Império⁷.

    Se recorrer ao discurso de incitação ao ódio como ferramenta política não era novidade, o capítulo que se inaugurava, na disputa entre PT e PSDB pela presidência da República, marcaria a entrada oficial das campanhas na era das mídias sociais. Pela primeira vez, os candidatos poderiam apresentar seus perfis nas redes e utilizá-los como peça de propaganda, o que aproximaria, em muito, as campanhas dos eleitores usuários. Justamente no momento em que as oportunidades de busca e disseminação de informações e opiniões sobre política, através de plataformas como o Facebook, se tornavam maiores (Guareschi, 2014; Ituassu, 2015; Vowe & Henn, 2016), e que as ferramentas e o conhecimento necessários à produção de material para circulação nas redes estavam difundidas e ao alcance de todos, especialmente para uma nova geração de jovens usuários, mas também para experientes profissionais de marketing, acostumados a utilizar o potencial e a linguagem das redes como instrumento. Todas essas novidades acabariam contribuindo para que a polarização percebida, entre aqueles que responsabilizavam os governos do Partido dos Trabalhadores pelos problemas do país, e os que o defendiam, se tornasse ainda mais aparente.

    É inegável que, de um lado, as redes democratizaram os canais de expressão e conferiram um poder maior aos indivíduos, quando facilitaram a difusão, através de seus contatos e páginas de discussão, de posicionamentos e opiniões políticas. Mas, de outro, esse mesmo sentimento de poder, aliado à ausência dos constrangimentos da comunicação face-à-face, contribuiu para o desafogo, em forma de radicalismo, de uma grande quantidade de posicionamentos antagônicos.

    Essa nova forma de comunicar, desvinculada dos critérios da seleção jornalística e desobrigada do escrutínio dos tradicionais guardiões do portão - os gatekeepers - virtualmente permitiu, não apenas, que toda a forma de expressão fosse reproduzida, mas que, também, encontrassem seus destinatários e acirrassem um já tradicional clima de polarização. Ao potencializar a participação política, e também, permitir a circulação de mensagens carregadas de intolerância, preconceito e ódio, o resultado foi o estabelecimento de um verdadeiro frenesi político-ideológico-partidário, onde os indivíduos conduziram-se, gradativamente, na direção do afastamento de visões centristas e aglutinadoras, criando um vazio, justamente, no espaço aonde, esperava-se, deveriam emergir e ser compartilhadas as ideias de harmonia e consenso.

    A história nos mostra que, quando se fazem ausentes as ideias de entendimento, as pessoas tendem a buscar conforto naquelas coletividades onde o pensamento lhes é mais semelhante. Nestes casos, os grupos estarão predispostos a validar os valores associados ao pensamento de seus integrantes, e que representem o seu caráter de unidade; e, ao mesmo tempo, a negar ou subestimar aqueles valores de grupos e indivíduos externos, que ameaçam sua unidade. Quando isso ocorre, a sociedade, como grupo, já não existe. Até mesmo a ideia do retorno à unidade social, já passa a ocupar uma posição menor, na escala de relevância, em relação à importância da prevalência das ideias e da sobrevivência de cada grupo (Sartori, 1969; Lipset [1985], 1992).

    A dinâmica da polarização entra em curso, e escala com a diminuição da interação entre indivíduos pertencentes a coletivos distintos e com a discriminação e a disseminação de mitos negativos sobre a figura do outro (Hamelink, 2011). No momento em que os membros mais radicais passarem a cogitar, ameaçar ou, até mesmo, a praticar certos atos violentos, essa ideia sobre o conflito entre os grupos se instaura no imaginário coletivo. E da abstração para a iminência, o caminho pode ser mais curto do que se imagina. Em 1942, o cientista político Joseph Schumpeter já havia afirmado, em relação ao comportamento das massas, que elas seriam, de tal forma, suscetíveis aos chamados de seus líderes, que poderiam despertar, de uma hora para outra, os seus instintos mais animais. Diante de ambientes excessivamente polarizados, como o do Brasil de 2014, bastaria, portanto, um apelo de seus dirigentes, para que as massas alienadas entrassem em luta.

    Atualmente, cada vez mais pesquisadores (Judith Butler, 1997; Susan Benesch, 2012; Jeremy Waldron, 2012; entre outros) se ocupam da força agitadora de mensagens que circulam no ambiente midiático. Nosso estudo, por sua vez, buscou entender, partindo dos exemplos fornecidos por eventos extremos, como o nazismo, o genocídio de Ruanda e a violência perpetrada pelo Estado Islâmico, as dinâmicas que envolvem a incorporação do discurso de ódio às narrativas políticas, especialmente através do uso massivo dos meios de comunicação. Aplicando essas perspectivas ao ambiente de polarização brasileiro de 2014 (no caso, a guerra narrativa entre PT e PSDB), apresentamos ao leitor as principais características de seus cenários sociais e políticos, apontando pontos de inflexão que localizam a disputa político-partidária, vivenciada por aqui, nesse contexto de rupturas que se desenvolveram até chegarem ao genocídio.

    Mesmo não sendo este o objetivo principal deste trabalho, iremos considerar a expressão discurso de ódio ou discurso de incitação ao ódio como a expressão indicadora de um tipo de conduta linguística, deliberadamente intencional, realizada com o objetivo de segregar ou explicitar preconceitos negativos sobre pessoas ou grupos, reduzindo o seu valor e dignidade diante da sociedade, ameaçando e promovendo sua insegurança e, nos casos mais extremos, conclamando a violência e o extermínio. Ele nos interessa porque, nos últimos anos, esse tipo de narrativa, comum nos estados de guerra e conflito, passou a ser percebida no Brasil com maior frequência. Fosse em interações face-a-face ou virtuais, tanto as provocações como as reações - a posicionamentos, notícias e à miríade de informações que passaram a circular sobre os governos, partidos, movimentos sociais e, naturalmente, candidatos a cargos políticos – cada vez mais, apontavam para uma possível escalada da intolerância política.

    Após as manifestações que ocorreram no Brasil, entre 2013 e 2014, e diante da eminência de um processo eleitoral que poderia consolidar o quarto ciclo do projeto de governo elaborado pelo Partido dos Trabalhadores, o contexto político brasileiro era o de uma crise politica alimentada por uma intensa disputa pelo poder. E a jornada de nossa pesquisa partiu dessa percepção: de estarmos vivendo em uma sociedade mais polarizada, na qual a intolerância precedia o diálogo e o ódio teria se tornado a retórica dominante. Uma percepção que era compartilhada, é bem verdade, naquele momento, por boa parte dos autores ocupados com as mídias sociais e com o ambiente político.

    Ao longo de nossa jornada, ficou cada vez mais claro que a maior contribuição que este trabalho poderia dar era no sentido de alertar sobre os rumos que a política brasileira vinha adotando, já há bastante tempo, e sobre os riscos que a transformação de uma prática como essa, a da política de combate, em cultura, poderia trazer para o ambiente democrático. O interesse por evidenciar a estratégia de utilização do discurso de ódio como ferramenta política, desconsiderando os riscos que esse tipo de narrativa representa, ganhou robustez quando o autor se deparou, em 2017, já avançando meio caminho em direção à conclusão do projeto original, com um absoluto ressentimento teórico versando sobre relações comprovadas entre identidade político-partidária e violência de massa. Naquele momento, frequentando o Departamento de Ciências Políticas da Universidade da Califórnia, em San Diego (CA), e sob a orientação de pesquisadores como Daniel Hallin, Scott Desposato e Samuel Popkin, fui provocado a, pelo menos, tangenciar essa relação, no que passou a ser um dos objetivos da nossa pesquisa.

    Nossa hipótese era a de que os posicionamentos político-partidários, sustentados, durante quase 20 anos, nas ruas e, mais tarde, nas redes, teriam legitimado e potencializado o antagonismo entre PT e PSDB. E contribuindo decisivamente para isso, estaria o novo ambiente midiático. Também havia uma grande chance de que os discursos que seriam veiculados nos programas do horário gratuito de propaganda eleitoral (HGPE), na campanha que se avizinhava, tentariam tirar vantagem do ambiente político e das narrativas que eram reproduzidas pela sociedade, com o objetivo de conquistarem um maior capital eleitoral. Dessa forma, uma observação dos programas do HGPE, e sua repercussão nas redes, poderia fornecer um retrato bastante aproximado do uso político do discurso de ódio no Brasil de 2014.

    Desenvolvemos essa pesquisa, portanto, na intersecção entre os campos da Comunicação e Ciência Política, e obedecendo à tradição desta última, no que diz respeito à influência marcante dos estudos de Psicologia. Depois das primeiras observações do objeto de estudo, e após aplicarmos um aporte teórico preliminar⁸ para identificar a presença do discurso de ódio nos discursos do HGPE, bem como seus alvos e autores principais, compreendemos que as complexidades em termos tanto do tema e do objeto possibilitavam, quando não demandavam, que esta pesquisa se guiasse por caminhos analíticos qualitativos e quantitativos. Desvelar a incitação ao ódio e a ofensividade por trás de mensagens exigia continuadas releituras e perspectivas contextuais. Medir a periodicidade de tais mensagens demandava, por sua vez, seu desmembramento em categorias e elementos. Já os recursos audiovisuais que envelopavam essas mensagens, como a edição, por exemplo, bem como as entonações e expressões faciais dos falantes, conferiam, por sua vez, rudimentos essenciais que não poderiam ser deixados a descoberto.

    Ficou claro que uma escolha metodológica adequada não poderia deixar de fora estes importantes referenciais que compunham o corpo de nosso objeto. Além disso, nos deparemos com a questão da intensidade, ou seja, do quanto de ódio e ofensividade poderia haver nessas mensagens. Nosso desafio passou a ser, portanto, a busca por um método que nos permitisse, além de revelar os emissores, alvos e expressões dos discursos de ódio político, quantificar a ofensividade desses discursos. Tendo no horizonte o problema de pesquisa, que era a incivilidade, a intolerância e incitação ao ódio que circulavam nas mensagens políticas, passamos a pensar uma forma alternativa de análise, que pudesse apresentar um resultado mais tangível, e assim, permitisse que se colocasse em perspectiva dois ou mais discursos, emitidos por múltiplos atores, até mesmo, quando por intermédio de mídias diferentes ou realizados em tempos históricos diferentes. Os primeiros testes foram realizados no segundo semestre de 2015 e publicados nos anos seguintes (Müller, 2016; Wainberg & Müller, 2017). De lá para cá, ainda refinaríamos este método, que chamamos, finalmente, da Medição do Potencial de Ofensividade dos Discursos (POD).

    O método, será explicado pormenorizadamente no capítulo III, e parte de conceitos da Psicologia Social, Comunicação e Ciência Política, para estabelecer, como ponto médio, os discursos que incitam divisões do tipo nós x eles. Dessa forma, restariam, num extremo, os discursos com menor potencial de ofensividade, como as discordâncias realizadas de maneira polida e respeitosa, e no outro, aqueles extremamente ofensivos, como os discursos de ódio capazes de provocar, direta ou indiretamente, a ideia do extermínio. Considerando, também, o tempo de duração dessas mensagens, além dos recursos de edição que concorreriam para sua comunicação, foi possível ter uma noção sobre o quanto cada programa empregou esse tipo de linguagem divisiva, e comparar os pronunciamentos de PT e PSDB, além de avaliar os engajamentos dos seguidores de cada candidato na rede Facebook em perspectiva da ofensividade apresentada nos discursos. Os resultados apontam, assim, também que

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