A cadeia secreta: Diderot e o romance filosófico
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A cadeia secreta - Franklin de Mattos
A cadeia secreta
FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP
Presidente do Conselho Curador
Mário Sérgio Vasconcelos
Diretor-Presidente
Jézio Hernani Bomfim Gutierre
Superintendente Administrativo e Financeiro
William de Souza Agostinho
Conselho Editorial Acadêmico
Danilo Rothberg
João Luís Cardoso Tápias Ceccantini
Luiz Fernando Ayerbe
Marcelo Takeshi Yamashita
Maria Cristina Pereira Lima
Milton Terumitsu Sogabe
Newton La Scala Júnior
Pedro Angelo Pagni
Renata Junqueira de Souza
Rosa Maria Feiteiro Cavalari
Editores-Adjuntos
Anderson Nobara
Leandro Rodrigues
Franklin de Mattos
A cadeia secreta
Diderot e o romance filosófico
Prefácio de Marilena Chaui
À memória de Amilcar de Castro
© 2018 Editora UNESP
Direito de publicação reservados à:
Fundação Editora da Unesp (FEU)
Praça da Sé, 108
01001-900 – São Paulo – SP
Tel.: (00xx11) 3242-7171
Fax.: (0xx11) 3242-7172
www.editoraunesp.com.br
feu@editora.unesp.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior – CRB-8/9949
Índice para catálogo sistemático:
1. Filosofia francesa 194
2. Filosofia francesa 1(44)
Editora Afiliada:
Sumário
Prefácio
Advertência
CAPÍTULO 1
Três romancistas tardios
CAPÍTULO 2
A cadeia secreta
CAPÍTULO 3
Uma alegoria licenciosa das Luzes
CAPÍTULO 4
Moral em exercícios
CAPÍTULO 5
Abismos do Prefácio-anexo
CAPÍTULO 6
O paradoxo do romance
CAPÍTULO 7
O desafio de La Pommeraye
Referências
Prefácio
Quem poderia imaginar uma exposição sobre a natureza da alma como energia material e uma crítica ao dualismo cartesiano na boca da favorita de um sultão? Ou quem imaginaria que de um sonho desse sultão viesse o elogio da ciência experimental contra a esterilidade das hipóteses metafísicas, isto é, o elogio da Enciclopédia? Quem pensaria em expor uma filosofia materialista determinista contando uma intriga amorosa, provocada pelo orgulho ferido de uma mulher?
Numa escrita límpida, concisa e precisa, este livro nos oferece uma fina interpretação do nascimento de um gênero literário paradoxal, inventado pelos filósofos da Ilustração: o romance filosófico.
Por que paradoxal? Porque pretende conciliar numa articulação original teoria e eloquência, verdade e ilusão, o homem de gênio
, dotado de autodomínio racional, e o homem sensível
, que vive à mercê do diafragma
. Paradoxal também porque o romancista, enquanto filósofo, quer ser acreditado como verdadeiro, mas, enquanto poeta-dramaturgo, quer encantar, interessar, comover, persuadir, entrar furtivamente na alma
do leitor. Paradoxal, enfim, porque, para romper com os cânones aristotélicos, o novo gênero precisa exercitá-los dialeticamente a fim de que, fazendo falar as paixões, leve a poesia à mais extrema singularidade e a história à mais alta universalidade, narrando, ambas, a natureza humana. Desses paradoxos, Franklin de Mattos nos apresenta um de seus grandes teóricos e praticantes: Diderot.
O título, A cadeia secreta, é arguto, pois opera em dois registros simultâneos: é a chave para a leitura da obra literária de Diderot – o materialismo determinista ou a articulação entre necessidade natural e necessidade moral como fundamento da articulação entre filosofia e literatura; mas é também o que estrutura os ensaios de Franklin de Mattos sobre o autor de Jacques, o fatalista.
De fato, este livro se inicia com o exame da atitude ambígua de Diderot e seus contemporâneos diante do romance (capítulo 1), passa à interpretação dos modos de articulação entre filosofia e romance (capítulos 2 e 3) até chegar ao núcleo teórico do novo gênero literário ou da ficção romanesca (capítulos 4, 5 e 6) para, finalmente, explicitar o sentido da cadeia secreta como destino, fatalidade, necessidade e alcançar o neoespinosismo de Diderot (capítulo 7), ou a combinação da ordenação majestosa
da Ética – unidade, unicidade e imanência da substância – com o empirismo materialista – a unidade da matéria móvel-movente e sensível, que produz a multiplicidade dos seres numa cadeia causal contínua e necessária.
A trama urdida pelo percurso de Franklin de Mattos nos faz ver como e por que os Ilustrados aderem ao novo gênero que, de algo frívolo, grosseiro e imoral, torna-se crítica dos costumes sociais e políticos, discurso edificante que coloca as paixões a serviço do bem
para expor a identidade entre felicidade e virtude. Mostra-nos, em particular, como Diderot o realiza, ora se aproximando ora se afastando de seus contemporâneos. Do ponto de vista do conteúdo, Diderot se distancia da tradição dos moralistas franceses (ou a moral em máximas) para praticar o romance como moral em ação
, em que a equivalência de emoções deve produzir a equivalência de condutas
. Do ponto de vista formal, articula realidade e ficção graças ao emprego da polifonia de vozes e de recursos dramáticos para obter a identificação do leitor com as personagens e ao uso abundante de circunstâncias comuns para arquitetar circunstâncias extraordinárias, obtendo verossimilhança ao alicerçar o inverossímil no cotidiano, no mundo em que vivemos
, para fazer ver como o acidental é determinado pelo necessário e, sobretudo, para oferecer a universalidade por meio da singularidade, de sorte que o romance é superior à história, porque esta pinta os excepcionais
e aquele todo o coração humano
.
Vistos sob a perspectiva dessa urdidura, os capítulos 4, 5 e 6, à medida que apresentam Diderot como teórico do romance filosófico, organizam o modo de exposição dos capítulos que oferecem Diderot como romancista; os três primeiros capítulos preparam o leitor para compreender a teoria literária do autor de A religiosa, e o último é a consecução, agora compreendida, da teoria do novo gênero. Dessa maneira, para expor a cadeia secreta concebida pelo filósofo romancista, os ensaios formam uma cadeia causal invisível, que se inicia indo dos efeitos às causas (dos romances à teoria) e termina indo das causas aos efeitos (da teoria aos romances). Graças a essa fina elaboração reflexiva, vemos aparecer as ideias de matéria sensível (ou a unidade metafísica da cadeia dos seres) e de causalidade necessária como operadores filosóficos secretos tanto do conteúdo como da forma dos romances.
Esse procedimento permite a Franklin de Mattos aprofundar a articulação entre metafísica e literatura e, debruçando-se sobre Jacques, o fatalista e seu amo, oferecer uma interpretação nova para o célebre episódio de La Pommeraye. A análise tem como referência o necessitarismo espinosano e a afirmação do capitão de Jacques de que caminhamos na noite
, pois em nossa finitude ignoramos todos os anéis da cadeia de seres e acontecimentos que nos determinam. Ora, em seu orgulho, madame de La Pommeraye não só age como se possuísse tal conhecimento, mas ainda pretende encarnar o rigor do destino
. Necessariamente fracassa. Torna-se, na feliz expressão de Franklin de Mattos, a encarnação malograda do destino
. Porém, não é nova apenas essa interpretação do sentido moral e filosófico da famosa personagem, também o é a do significado da própria empreitada de Diderot, filósofo dos paradoxos: quem poderia imaginar, indaga Mattos, que o determinismo universal e a ilusão da liberdade pudessem ser expressos pelo mais caprichoso e mais livre dos gêneros literários, o romance?
Deixemos ao leitor o prazer de acompanhar as peripécias deste belo livro, que nos fala de um tempo em que a filosofia, na tradição de Sócrates e Montaigne, era o prazer da conversação. Diderot era homem da conversação. Pensava que, na cadeia única dos seres, a linguagem, energia material, nos dá o acesso ao espírito, nosso e alheio. Num momento fulgurante, analisando os procedimentos da fatura de O sobrinho de Rameau, Franklin de Mattos escreve: jamais o universal brilhou tanto em algo tão trivial quanto um bate-papo de boteco
.
No entanto, justamente ao falar de um outro tempo, este livro nos dá a pensar sobre o nosso. As perguntas que fizemos ao iniciar só parecem surpreendentes depois que a filosofia, nascida como conversação, virou profissão, tornou-se provinciana, isto é, universitária, e julgou garantir sua própria relevância apresentando as credenciais de uma disciplina particular, claramente distanciada da leviandade
literária, dotada de normas de boa conduta intelectual que, permitindo-lhe a ilusão de domesticar os paradoxos, asseguram-lhe seriedade
, a qual, quando vista bem de perto, nada mais é senão sua existência pesadamente prosaica, incapaz da leveza que transfigura o trivial e alcança o universal sem sacrificar o singular.
Marilena Chaui
Advertência
Os ensaios aqui reunidos foram escritos de modo independente, em circunstâncias as mais diversas,¹ mas em vista de um livro futuro. Os primeiros apontamentos sobre A religiosa datam de 1992, o último texto, que trata de Jacques, o fatalista, é de 2001.
Sou do tempo em que se devia escolher entre experimentalismo e realismo, e meu interesse por Diderot certamente se explica pelo desejo de recusar a alternativa. Como o leitor verá, ele foi um dos fundadores do realismo moderno e, ao mesmo tempo, um inquieto experimentador, sempre em busca de novas formas.
Daí a aparente dispersão de sua obra em geral e de seus romances em particular. Este livro procura sugerir que, por trás da desordem, há uma unidade de preocupações. Ou uma cadeia secreta, metáfora que volta e meia aparece nos melhores escritores das Luzes e que se aplica indistintamente à natureza, à linguagem, à literatura e até mesmo à arte da conversação.
Franklin de Mattos
São Paulo, novembro de 2003
_______________
1 O texto A cadeia secreta
foi publicado no Jornal de Resenhas da Folha de S. Paulo, n.68, 11 nov. 2000, como resenha para as Obras I e II de Denis Diderot (tradução, organização e notas de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2000); A alegoria licenciosa das Luzes
é uma versão ligeiramente modificada de "Livre gozo e livre exame. Ensaio sobre Les Bijoux indiscrets de Diderot", publicada em Libertinos libertários, obra organizada por Adauto Novaes (São Paulo: Companhia das Letras, 1995); "Os abismos do Prefácio-anexo" é a versão revisada da comunicação apresentada no VII Encontro Nacional de Pós-Graduação em Filosofia, realizado em Caxambu (MG), em setembro de 1998, e publicada em Rapsódia – Almanaque de Filosofia e Arte (n.1, p.7-16, 2001); O paradoxo do romance
é uma versão ampliada de "O corpo enclausurado – Sobre A religiosa de Diderot", presente na edição de O homem-máquina, organizado por Adauto Novaes (São Paulo: Companhia das Letras, 2003). Os demais ensaios são inéditos. O desafio de madame de la Pommeraye
serviu de base à prova didática do concurso de titularidade em Filosofia, realizado em 17 de dezembro de 2001, cuja banca era formada por Benedito Nunes, Bento Prado Jr., Franklin Leopoldo e Silva, Jacyntho Lins Brandão e Wander Melo Miranda.
CAPÍTULO 1
Três romancistas tardios
Voltaire, Rousseau, Diderot
Imoral, ignóbil, inverossímil
Georges May examinou certa vez as causas e os efeitos do desprestígio do romance nos séculos XVII e XVIII. As reservas então formuladas eram fundamentalmente de dois tipos: estéticas e morais. A acusação de imoralismo transparece na suspeita de que o romance constitui uma ameaça para os costumes, e deve-se principalmente à predominância que confere ao tema do amor.¹ Essa ideia surge, por exemplo, em Diderot, que associa o gênero a um passatempo ilícito (perigoso para os costumes
, dirá o autor do Elogio de Richardson). Basta lembrar o apelo dirigido à sua leitora pelo narrador de Les Bijoux indiscrets:
Zima, aproveita o momento. O agá Narkis entretém tua mãe, e tua governanta vigia no terraço o retorno de teu pai: pega, lê, não temas nada. Mas ainda que se surpreendessem Les Bijoux indiscrets atrás de teu toucador, acreditas que se espantariam? Não, Zima, não; sabe-se que o Sofá, o Tanzai e as Confissões já estiveram embaixo de teu travesseiro. Hesitas ainda? (Diderot, 1951, p.1)
É bem verdade que, segundo essa passagem, o romance não é propriamente perigoso para os costumes
, mas uma espécie de retrato da dissolução circundante e, assim, algo meio inócuo. Pouco importa: o que nos interessa é que o satanismo do narrador faz da leitura uma atividade, por assim dizer, pecaminosa.
Como se verá em seguida, o argumento moral já fora invocado contra o teatro no século XVII e, a longo prazo, inutilmente, pois as reputações de Corneille, Racine e Molière sobreviveram à crítica sem maiores arranhões. Mas o romance – ao contrário do teatro, cujo prestígio datava da Antiguidade – era sujeito a outro tipo de restrição: a estética. Assim, seus inimigos não se cansam de repetir que ele corrompe o gosto
. Em princípio, a acusação se deve