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As feridas mais profundas: uma história do trabalho e do ambiente do açúcar no Nordeste do Brasil
As feridas mais profundas: uma história do trabalho e do ambiente do açúcar no Nordeste do Brasil
As feridas mais profundas: uma história do trabalho e do ambiente do açúcar no Nordeste do Brasil
Ebook566 pages7 hours

As feridas mais profundas: uma história do trabalho e do ambiente do açúcar no Nordeste do Brasil

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About this ebook

Neste livro, Thomas D. Rogers analisa as mudanças sociais e ambientais em quatro séculos da história de Pernambuco, um dos principais centros da produção açucareira no Brasil. A obra enfoca principalmente o período que se inicia com a abolição do regime escravista e vai até o século XX. Revisitando de forma crítica a bibliografia canônica sobre o tema, com destaque para a obra de Gilberto Freyre, Rogers realiza um profundo mergulho no cenário agrícola pernambucano do último século e no quanto ele é tributário dessa história.
LanguagePortuguês
PublisherEditora Unesp
Release dateApr 19, 2017
ISBN9788595460294
As feridas mais profundas: uma história do trabalho e do ambiente do açúcar no Nordeste do Brasil

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    As feridas mais profundas - Thomas D. Rogers

    p.92.

    [41] Parte I

    A paisagem da Zona da Mata até os anos 1930

    [43] Capítulo 1

    Um verde eterno: a longue durée da Zona da Mata

    Contemplando a floresta durante uma excursão a um canavial, nos anos 1810, o negociante de algodão francês L. F. Tollenare descreveu o que via como um verde eterno, uma vegetação ativa que não descansa nunca, inumeráveis frutos e flores em cima uns dos outros, adornando as encostas até o alto. As árvores lhe pareceram tão densas e os arbustos tão cerrados que ele considerou quase mística a sublime e virgem natureza de Pernambuco.¹ Na época da visita de Tollenare, a planície costeira que ele via era área de cultivo de cana havia mais de 250 anos. Suas palavras dizem bem sobre a riqueza daquela região e sobre os limites da área cultivada apesar do uso continuado. Já sujeita ao impacto humano de longo prazo, a paisagem que Tollenare admirou continuaria a ser transformada no curso dos dois séculos seguintes. Para entender a dinâmica da mudança ambiental e social no século XX, é imprescindível observá-la, primeiro, dessa perspectiva de longo prazo.

    Este livro descreve um espaço, uma zona terrestre nas latitudes tropicais ao longo da costa oriental da América do Sul. Desde a chegada dos primeiros humanos que desceram pelo istmo entre o continente e a América do Norte até o estabelecimento de colonizadores europeus e escravos africanos, culminando na população brasileira relativamente densa de hoje, o local tem sido transformado em paisagem. O povo, enquanto molda fisicamente a paisagem, dá-lhe também contornos de significado e compreensão. Os processos físicos [44] têm precedência no capítulo, que descreve a colonização, o início da produção açucareira e seu rápido crescimento, a difusão posterior da cultura algodoeira e, finalmente, a retomada da ênfase na cana ao final do século XIX.

    Na primeira seção do capítulo, percorro a história natural da faixa costeira de Pernambuco que passou a ser chamada de Zona da Mata. Na segunda, mostro as transformações que ela sofreu nos três primeiros séculos de colonização europeia. Na terceira, contemplo um momento de transição, quando o açúcar recuou e o algodão tomou por algum tempo seu lugar. Esse episódio foi seguido por um ressurgimento da cana incrementado por novos engenhos e as estradas de ferro: as novas tecnologias romperam o equilíbrio entre a natureza e a sociedade dedicada à exploração agrícola, pendendo decisivamente para a última.²

    Da mata à Zona da Mata

    Um promontório coberto de florestas saudou os primeiros visitantes à faixa do Nordeste brasileiro que se tornaria Pernambuco. Depois de cruzar o Equador, os marinheiros europeus esperavam cobrir os oito graus de latitude até Pernambuco em dois dias. Passaram então a buscar o cabo conhecido em todo o mundo como Santo Agostinho, que os guiaria ao porto do Recife, 20 quilômetros ao norte, seguindo a linha costeira. Ponto de referência confiável por superar em altura todos os montes que pontilhavam a costa próxima, o cabo de Santo Agostinho podia muito bem ter sido avistado por um marinheiro espanhol vários meses antes da descoberta do Brasil, em 1500, por Pedro Álvares Cabral. Com o cabo orientando-os em direção aos portos naturais de Pernambuco, os marinheiros começaram a percorrer o restante da costa, também coberta por matas em sua maior parte e recortado aqui e ali por áreas baixas pantanosas.³

    [45] A floresta, em Pernambuco, era contínua. A do cabo de Santo Agostinho fazia parte do extremo norte da grande Mata Atlântica, que no momento da chegada dos europeus cobria cerca de 1 milhão de quilômetros quadrados da costa oriental da América do Sul, estendendo-se do cabo até o paralelo 28 sul. A Mata Atlântica avançava uns 100 quilômetros para o interior a partir do cabo e era quase toda folhosa, úmida e semidecídua. Ao norte do cabo, assumia um caráter um tanto diferente, com árvores decíduas mais abundantes e cerradas que as espécies maiores, de crescimento rápido, do sul. Em certas ocasiões, a Mata Atlântica se estendeu tão longe que encontrou sua gigantesca irmã do norte, a Floresta Amazônica, no ponto em que essa se estendia para o sul a partir de sua rasa bacia. As florestas ao norte do cabo são formações equatoriais, remanescentes da Floresta Amazônica que recuou há milhares de anos. Do cabo para o sul, predominam as formações orientais ou atlânticas – uma floresta úmida e exuberante, constituída por grandes árvores com folhagem escura, trepadeiras, vegetação rasteira e epífitas.⁴ Essa ampla distinção ecológica entre o sul úmido e o norte seco teria consequências sociais no século XX.

    As florestas deixavam os primeiros visitantes europeus maravilhados. As árvores eram tão altas que um texto hiperbólico do início dos anos 1600 garantia: mesmo uma flecha lançada de um grande arco por um braço forte não atingiria sua copa. Além disso, eram tão grossas que deviam datar da época do dilúvio bíblico.⁵ As cores impressionavam – as flores vermelho-brilhantes do pau-brasil; o verde e azul-escuro da arara; e o vermelho, branco e preto da igbigboboca, uma cobra mais comprida do que a altura de um homem.⁶ [46] Comparando Pernambuco com as paisagens alpinas da Europa, Tollenare observou que se a natureza, aqui, é mais calma e silenciosa, sua decoração é mais deslumbrante; a opulência da vegetação luxuriante compensa a ausência de extremos topográficos. As orlas mais secas da floresta abrigavam incontáveis pássaros, alguns de plumagem magnífica e tamanho considerável. No interior relativamente mais frio e úmido da floresta, não se ouviam tantos cantos de aves, entre as quais as espécies noturnas eram mais comuns. Ao chegar ao coração da mata, os visitantes sentiam ao mesmo tempo admiração e medo. Em muitos lugares, as trepadeiras criavam uma teia tão densa que impediam a passagem dos homens.⁷

    A Mata Atlântica era riquíssima para os padrões de uma floresta tropical e a profusão de espécies confundia os europeus, que se esforçavam por entendê-la. Nomes indígenas difíceis de reproduzir eram o que os cronistas europeus tinham à mão para catalogar árvores, arbustos, ervas, pássaros, cobras, mamíferos, peixes e monstros marinhos. A lista de árvores, só por si, já era impressionante: araticu, riacho das serras, mamajuba, acicapugá, visgueiro, sopocerana, iribica, camaçari, pau-d’arco, jenipapeiro, pau-ferro, tatajuba. Tollenare registrou todas elas (e muitas mais) por causa de suas utilidades específicas – a solidez era boa para os eixos das moendas, a resistência à água para as caixas de açúcar, a tinta orgânica para se obter a cor amarela.⁸ Os europeus descobriram o umbu, uma fruta com gosto de figo que faz cair os dentes; o caju, uma noz saborosa e de textura rica melhor que as de Portugal; a jiboia, uma cobra que poderia engolir um gamo inteiro e subir até o alto das árvores mais depressa do que um homem conseguiria correr, como se estivesse nadando em água. O jesuíta Fernão Cardim encheu páginas e páginas com esse tipo de observação, um valioso registro do ambiente que explorou no final do século XVI.⁹

    Os portugueses encontraram povos do grande grupo linguístico tupi-guarani, que haviam alcançado a costa vindos do interior por volta do final do primeiro milênio.¹⁰ Essas sociedades praticavam a agricultura rotativa de [47] corte e queima nas orlas das florestas e às margens dos rios que corriam para o interior.¹¹ Os portugueses logo chamaram os habitantes dessas terras de caetés, palavra que significa floresta virgem ou verdadeira.¹² Graças a essa conexão eponímica entre o povo e as árvores, a identificação da floresta com a região se completou: os portugueses lhe deram o nome de Zona da Mata. Essa expressão perdurou por séculos, pois a floresta luxuriante era o traço mais característico da região. Só hoje o nome soa como um flagrante anacronismo, aplicado a um espaço agrícola que foi desmatado quase por completo.

    As árvores abundantes e de numerosas espécies dependem do solo e da água disponíveis. Do cabo para o sul, colinas quebram a uniformidade da paisagem, separadas umas das outras por riachos que, a intervalos regulares, desaguam no Atlântico. É a formação geológica conhecida como mar de outeiros: elevações muito parecidas e espaçadas por igual, chamadas muito apropriadamente de metades de laranjas.¹³ De natureza basicamente sedimentar, as colinas foram formadas pela água que abria caminho em meio ao sedimento durante a lenta drenagem da área no período quaternário. Escalonadas em três camadas, as colinas se apresentam mais erodidas na Zona da Mata propriamente dita, enquanto morros de formação menos regular, menos erodidos e mais altos marcham para o interior. Os morros próximos à costa erguem-se de 100 a 600 metros acima do nível do mar, tendendo geralmente para a altitude mais baixa.¹⁴ Nos cimos e encostas, o solo costuma ser profundo, mas não particularmente fértil, e mais arenoso que o do fundo dos vales, ricos em argila e bem drenados. Entre os morros, nas chamadas várzeas, o solo é profundo e enriquecido pela matéria orgânica depositada por numerosos regatos. Como no resto da região, é ligeiramente ácido.¹⁵ O mais valorizado era o das várzeas férteis e irrigadas, o massapê, terra negra e forte, segundo um manual agrícola de fins do século XVII, excelente para a cana. No século XIX, plantava-se a cana quase exclusivamente nos vales.¹⁶ A maciez e fertilidade das terras de massapê entraram para a mitologia regional [48] e os plantadores procuravam se estabelecer onde havia esse solo altamente

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