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Coleção Pensar Político
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Coleção Pensar Político

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A Coleção Pensar Político abrange o conteúdo de 4 livros: "2016, o ano do golpe", "Manifestações no Brasil", "Brasil em Transe: bolsonarismo, nova direita e desdemocratização" e "Lugar de mulher". Todas essas obras trazem a visão do que é o novo cenário político brasileiro, leitura que se faz extremamente necessária nesses dias que a sociedade brasileira vive.
LanguagePortuguês
Release dateDec 2, 2019
ISBN9788565505895
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    Coleção Pensar Político - Oficina Raquel

    © Adriano de Freixo et alii, 2016

    © Oficina Raquel, 2016

    EDITORES

    Raquel Menezes e Luis Maffei

    REVISÃO

    Adolfo Silva

    CAPA

    Thiago Antônio Pereira

    PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

    Julio Baptista (jcbaptista@gmail.com)

    PRODUÇÃO DE EBOOK

    S2 Books

    www.oficinaraquel.com

    oficina@oficinaraquel.com

    facebook.com/Editora-Oficina-Raquel

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    Angélica Ilacqua CRB-8/7057

    Manifestações no Brasil : as ruas em disputa / Adriano de Freixo (org.). – Rio de Janeiro : Oficina Raquel, 2016.

    88 p. (Coleção Pensar Político)

    Bibliografia

    ISBN: 978-85-65505-89-5

    1. Ciência política 2. Movimentos de protesto – Política – Brasil I. Freixo, Adriano de

    16-0294

    CDD 303.484092

    Índices para catálogo sistemático:

    1. Movimentos de protesto – Política – Brasil

    COLEÇÃO PENSAR POLÍTICO

    O início da abertura política e da chamada transição democrática, no período final da ditadura civil-militar, marcou também o começo de um ciclo político caracterizado, por um lado, pela formação de uma inédita sociedade civil e, por outro, por um processo de construção institucional que perpassaria as décadas seguintes e que teria um de seus principais marcos na promulgação da Constituição de 1988. No entanto, mais de quarenta anos depois, esse processo está longe de terminar.

    Apesar de, ao longo dessas quatro décadas, inúmeros avanços terem ocorrido, a jovem democracia brasileira se encontra longe de estar consolidada. Em uma sociedade profundamente desigual — mesmo com a notável melhora dos nossos indicadores sociais nestes primeiros anos do século XXI —, fortemente hierarquizada e marcada pela violência, real e simbólica, a tentação autoritária, muitas vezes travestida em salvacionismos, continua a ser um espectro a nos rondar e a cidadania plena ainda é um horizonte distante.

    Compreender a dinâmica política dessa sociedade tão complexa e multifacetada e as complicadas tramas e teias nela presentes é sempre um desafio para os acadêmicos e intelectuais que se propõem a fazê-lo. Afinal, como assinala o historiador francês Pierre Rosanvallon, em Por uma História do político (Alameda, 2010), o político deve ser entendido como um processo social cuja natureza não está dada de forma imediata, e ao qual devem ser restituídas a espessura e a densidade das contradições a ele subjacentes — para tentar apreendê-lo, é necessário reconstruir o modo por que indivíduos e os grupos elaboraram a compreensão de suas situações, enfrentar os rechaços e as adesões a partir dos quais eles formularam seus objetivos e, fundamentalmente, retraçar de algum modo a maneira pela qual suas visões de mundo limitaram e organizaram o campo de suas ações.

    É este desafio que a coleção Pensar político, da Oficina Raquel, se propõe a enfrentar, ao levar a um amplo público leitor os principais temas e debates da agenda política brasileira contemporânea, situando-os dentro de processos históricos mais longos e indo além das questões meramente conjunturais. Escritos em linguagem menos formal, mas sem perda do rigor acadêmico e da qualidade intelectual, os artigos que compõem cada um dos volumes da coleção — sempre articulados em torno de um eixo temático —são elaborados com o intuito de estimular a reflexão, o pensamento crítico e o debate político qualificado, vetores que são fundamentais para a construção de uma sociedade democrática e plural.

    Adriano de Freixo

    (Coordenador da coleção)

    SUMÁRIO

    Capa

    Manifestações no Brasil

    Folha de rosto

    Créditos

    Tudo à frente, nada à frente: protestos de rua e crise política no Brasil (2013-2016)

    Os movimentos de 2013 e os novos desafios da esquerda brasileira

    Liberdade e securitizações: manifestações de rua, medidas de segurança e expansão dos monitoramentos

    Os autores

    O ano do golpe

    Folha de Rosto

    Créditos

    Introdução: Sobre crises e golpes ou uma explicação para Alice

    Restauração neoliberal e dissolução da democracia

    O golpe parlamentar e a agenda que não ganha eleições

    Repercussões internacionais do Golpe de 2016

    Quatro poderes e um golpe

    A mídia e o golpe: uma profecia autocumprida

    Sobre os autores

    Lugar de mulher

    Folha de rosto

    Créditos

    Introdução

    Feminismo(s): reflexões sobre silêncios, resistências e descontinuidades

    O feminismo negro como um lugar de pertença e aprendizado

    Nem santas nem putas: estigmas comportamentais e violência de gênero

    Se nossas vidas não importam, produzam sem nós: a greve internacional de mulheres, das origens ao amanhecer do dia seguinte

    Glossário[ 257 ]

    Sobre as autoras

    Brasil em transe

    Folha de rosto

    Créditos

    Dias de um futuro (quase) esquecido: um país em transe, a democracia em colapso

    A cosmovisão da nova direita brasileira[ 259 ]

    Golpe de Estado: o conceito e sua história

    Democracia genocida

    Quem é o inimigo? Retóricas de inimizade nas rede sociais no período 2014-2017

    Há solução sem uma revolução?

    Ninguém viu, ninguém vê: comentários sobre o estado da violência na atual democracia (de poucos)

    Cidadania, semi-cidadania e democracia no Brasil contemporâneo

    Sobre os autores

    TUDO À FRENTE, NADA À FRENTE: PROTESTOS DE RUA E CRISE POLÍTICA NO BRASIL (2013-2016)

    Adriano de Freixo

    Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a era da sensatez, foi a era da tolice, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a estação da Luz, foi a estação das Trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, tínhamos tudo à nossa frente, tínhamos nada à nossa frente, íamos todos direto para o céu, íamos todos direto para o lado contrário – em suma, era um período tão parecido com o atual, que algumas de suas autoridades mais destacadas insistiam em que ele fosse recebido, para o bem ou para o mal, apenas no grau superlativo de comparação.

    (

    Charles Dickens

    , Um conto de duas cidades, 1859)

    Em junho de 2013, uma onda de gigantescas manifestações ocupou as ruas das principais cidades brasileiras, dando início a um ciclo de protestos que, em maior ou menor intensidade e com diferentes sentidos e conotações, ainda permanece no início de 2016 e parece longe de chegar ao fim. Neste ínterim, também ocorreram as eleições presidenciais de 2014, que contribuíram para polarizar ainda mais as divisões políticas existentes no país — acentuadas nos últimos anos —, fazendo com que o ano de 2015 se tonasse uma espécie de terceiro turno interminável.

    Tais divisões/disputas político-ideológicas — que muitas vezes nos remetem aos tempos da Guerra Fria —, somadas ao quadro de crise econômica, às dificuldades de articulação política do governo e de sua relação com a chamada base aliada e às denúncias de corrupção na Petrobras e em outras empresas estatais/órgãos governamentais — como decorrência principalmente da chamada Operação Lava Jato —, constituem-se nos principais elementos da profunda crise política que vem marcando o segundo mandato da Presidente Dilma Rousseff e servem de pano de fundo para esse ciclo de protestos que já dura mais de dois anos e meio.

    Assim, para melhor compreensão desse processo, parece-nos fundamental refletir sobre quais são os elementos de convergência/continuidade/descontinuidade entre as manifestações de 2013, que tiveram o seu auge em 20 de junho, quando mais de um milhão e duzentas mil pessoas tomaram as ruas do país (300 mil só no Rio de Janeiro), os protestos contra a Copa do Mundo ao longo do primeiro semestre de 2014, as manifestações contra o governo Dilma em março, abril, agosto e dezembro de 2015 (com destaque para a de 15 de março, na Avenida Paulista, que reuniu cerca de 210 mil pessoas, segundo o jornal Folha de São Paulo) e os atos pró-impeachment e antipetistas que continuam a acontecer nos primeiros meses de 2016. Tais reflexões compõem a proposta central deste breve ensaio que, longe de querer dar respostas prontas e fechadas, pretende sim lançar algumas ideias e fornecer elementos analíticos que contribuam para os debates ainda em curso sobre o tema.

    2013: o que levou multidões às ruas das cidades brasileiras?

    Desde a sua eclosão, inúmeras análises sobre as manifestações de 2013 — que se estenderam, com adesão bem menor, até a Copa de 2014 — foram feitas e publicadas, procurando explicar como um movimento que se iniciou a partir de protestos jovens de dimensões modestas contra o aumento das passagens e a péssima qualidade dos transportes públicos transformou-se na surpreendente onda que sacudiu o país e que, em seu auge, tornou-se a expressão de inúmeras demandas, muitas vezes contraditórias entre si, de segmentos sociais e grupos políticos bastante distintos.

    À época, logo após a ocorrência dos primeiros protestos, Juan Arias, correspondente do jornal espanhol El País, associava, em matéria publicada em 17/06/2013, o movimento à ascensão da chamada nova classe média, que tendo melhorado seus padrões de vida e consumo, graças ao crescimento e às políticas distributivistas da década anterior, passa a querer ainda mais, notadamente no que se refere aos serviços públicos básicos (educação, saúde, transporte), que continuavam a ser de péssima qualidade. Além disto, tais protestos externariam uma grande insatisfação desses setores com a corrupção presente nas várias esferas do setor público.

    Outras análises tendem a priorizar como principais vetores explicativos para a eclosão das manifestações de 2013 a crise da democracia de matriz liberal e a falência dos modelos clássicos de representação política. Os questionamentos à política tradicional partiriam principalmente dos jovens, tanto os com origem na classe média histórica, quanto os das regiões periféricas, vinculados aos segmentos que ascenderam socialmente nos últimos anos. Nesta perspectiva, Leonardo Sakamoto (2013, p.100) argumentava, ainda em 2013, que há um déficit de democracia participativa que precisa ser resolvido. Só votar e esperar quatro anos não adianta mais. Uma reforma política que se concentre em ferramentas de participação popular pode ser a saída. Na mesma direção caminha a análise de Maria da Glória Gohn (2014: 64-65), que — sem negar a pluralidade de fatores que levaram aos protestos de junho — afirmava que deveria se buscar nessas manifestações

    (...) os indícios de novas formas de organização política, os marcos de uma nova forma – a democracia analógica, aquela que tenta dialogar com a geração digital, que poderá combinar a democracia representativa com a democracia direta via online. Os novos movimentos sociais dos jovens são movimentos sociais e só poderão ser considerados como em transição para movimentos políticos, desde que se entenda a política de forma diferente da atualidade.

    Alguns autores do campo da esquerda também centraram suas análises no que chamaram de esgotamento do modelo petista ou lulista, baseado em políticas distributivistas e numa espécie de capitalismo de Estado [ 1 ]. No entanto, o limite desse modelo teria sido sua incapacidade e/ou falta de vontade de radicalizar essas políticas através da realização de reformas estruturais e do enfrentamento com o grande capital. Paralelamente a isto, os movimentos sociais tradicionais — que se estruturaram a partir do início do processo de redemocratização nos últimos anos da década de 1970 e que possuíam fortes vínculos com o Partido dos Trabalhadores (PT) — teriam sido cooptados pelo governo petista, inclusive com a participação de inúmeros de seus quadros nos órgãos governamentais. É nesta linha que argumenta Mauro Iasi (2013: 46) ao afirmar que

    O caminho escolhido pelo ciclo do PT e sua estratégia desarmou a classe trabalhadora e sacrificou sua independência pela escolha de uma governabilidade de cúpula na qual a ação política organizada de classe jamais foi convocada. O resultado do governo de coalizão de classes promovido pelos governos petistas não foi o esperado, isto é, um acúmulo de forças que, diante da impossibilidade de uma alternativa socialista, deveria gerar uma democratização que prepararia terreno para futuros avanços. O acordo com a burguesia na cúpula produziu na base social uma reversão na consciência de classe e uma inflexão conservadora no senso comum.

    Todas essas análises focam nos fatores que teriam levado à adesão maciça ao movimento a partir de meados de junho. No entanto, para Pablo Ortellado (2013), a explosão acontecida naquele mês seria, na verdade, o resultado do acúmulo de uma década de lutas da juventude contra o preço das passagens. Tal mobilização já tinha gerado, inclusive, grandes manifestações em diversas cidades brasileiras nos anos anteriores. A diferença é que, dessa vez, os centros dos protestos foram Rio de Janeiro e São Paulo, o que teria levado a uma maior repercussão dos mesmos e a sua posterior nacionalização. Neste sentido, o que teria levado, de fato, à eclosão dos protestos de junho teria sido essa articulação de movimentos jovens em torno da questão do transporte público nas grandes cidades. Somente após 13 de junho é que teria havido uma ampliação da pauta de reivindicações, tanto através da incorporação de outros setores aos movimentos, quanto a certa ação midiática.

    Todas essas análises chamam a atenção, de maneira implícita, para o primeiro ponto que gostaríamos de destacar sobre o ciclo de protestos iniciado em 2013: esse conjunto de manifestações é o primeiro desde o final dos anos 1970 que não tem o Partido dos Trabalhadores como um de seus principais protagonistas. Ao contrário: quase sempre o PT e/ou o governo petista foram, direta ou indiretamente, alvos de boa parte das críticas dos manifestantes. Isso ocorreu, inclusive, nas manifestações em defesa do mandato da presidente Dilma Rousseff, em dezembro de 2015, quando, ao mesmo tempo em que se fazia a denúncia do golpe articulado pelos setores de oposição, protestava-se contra as medidas do ajuste fiscal proposto pelo então ministro da Fazenda, Joaquim Levy.

    Os atores e os eventos

    Desde o início do mês de junho de 2013, o MPL (Movimento Passe Livre) vinha realizando diversas manifestações contra o aumento das passagens de ônibus, notadamente na capital paulista, dando continuidade à quase uma década de lutas em torno do transporte público nas grandes cidades, a partir da defesa da tarifa zero. Esse movimento foi fundado oficialmente em 2005, em uma plenária realizada durante o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, mas tem suas origens mais remotas na Campanha pelo Passe Livre de Florianópolis, articulada no início dos anos 2000. A Revolta do Buzú (Salvador, 2003) e as Revoltas da Catraca (Florianópolis, 2004/2005) foram decisivas para a articulação do MPL que, nos anos seguintes, estaria envolvido, direta ou indiretamente, em diversas manifestações ocorridas em diferentes capitais brasileiras, articulado ou não com outros movimentos sociais ou reações espontâneas de setores populares:

    As manifestações sempre foram muito mais amplas que o Movimento Passe Livre – que jamais se pretendeu dono de qualquer uma delas – e eclodiram, por vezes, em cidades e regiões onde nunca houve atividade do movimento. As lutas por transporte no Brasil formam um todo muito maior que o MPL. Contudo, a tomada direta e descentralizada das ruas, a radicalidade das ações e a centralidade dos aumentos tarifários dá a tônica das lutas (MPL-SP, 2013: 17).

    Assim, foi no dia 06 de junho de 2013 que ocorreu em São Paulo o primeiro protesto contra o aumento das passagens, articulado pelo MPL e por organizações estudantis, reunindo cerca de quatro mil manifestantes e sendo duramente reprimido pelas forças policiais. Manifestações menores também ocorreram em outras capitais brasileiras, como Rio de Janeiro, Natal e Goiânia. Um dia depois, um novo protesto em São Paulo, que reuniu cinco mil jovens, terminaria com quinze estudantes presos após novos confrontos com a polícia.

    Em sua capa, no dia seguinte, um dos principais jornais paulistas trazia a manchete Manifestantes causam medo, param marginal e picham ônibus. Já na matéria, publicada no caderno Cotidiano, o jornal dava ênfase aos atos de vandalismo e aos transtornos causados pela manifestação — como o grande engarrafamento de 226 km na cidade —, destacando depoimentos de cidadãos comuns sobre prejuízos que lhes foram causados pelos protestos (Folha de São Paulo, 08/06/2013). Enquanto isto, paralelamente aos atos em São Paulo, nas duas primeiras semanas de junho, manifestações em torno da questão do transporte público também ocorrem em outras cidades brasileiras: além das já citadas Rio de Janeiro, Goiânia e Natal, registram-se mobilizações em Recife e Porto Alegre, configurando a abrangência nacional dos protestos.

    Em 11 de junho, outra manifestação organizada pelo MPL toma as ruas da capital paulista, reunindo cerca de 12 mil pessoas, majoritariamente jovens. Em mais um dia de confrontos entre os manifestantes e os policiais, 20 pessoas são detidas. O tom dos noticiários televisivos e dos principais jornais brasileiros no dia seguinte é alarmista, com manchetes relatando atos de vandalismo ou a transformação da cidade de São Paulo em uma praça de guerra (O Globo, 12/06/2013). Com um novo protesto marcado para o dia 13, a cobertura midiática continuou a seguir uma linha clara de condenação e criminalização dos protestos, com a maior parte das matérias, dos editoriais e das colunas dos principais articulistas dos grandes jornais impressos e televisivos batendo na tecla da necessidade de manutenção da ordem pública.

    No dia 12, em seu comentário no Jornal da Globo, Arnaldo Jabor compara à ação dos manifestantes às do Primeiro Comando da Capital (PCC)— a conhecida facção criminosa paulista — e chama-os de revoltosos de classe média que não sabem o porquê de estarem na rua protestando, completando sua fala com a afirmação de efeito de que eles não valiam 20 centavos. Em 13 de junho, os dois principais jornais paulistas, em seus editoriais, sustentam o mesmo tipo de argumentação do comentarista da Rede Globo.

    Em um editorial intitulado Retomar a Paulista, a Folha de São Paulo refere-se ao MPL — e aos manifestantes em geral — como um grupelho formado por jovens predispostos à violência por uma ideologia pseudorrevolucionária, que buscam tirar proveito da compreensível irritação geral com o preço pago para viajar em ônibus e trens superlotados e com uma bandeira irreal, a gratuidade do transporte público, que ocultaria a intenção de vandalizar equipamentos públicos e o que se toma por símbolos do poder capitalista. Mais adiante, era pedida, de forma peremptória, a intervenção enérgica das autoridades, pois era preciso pôr um ponto final nas manifestações que prejudicavam um grande número de pessoas e finalizava afirmando que: No que toca ao vandalismo, só há um meio de combatê-lo: a força da lei. Cumpre investigar, identificar e processar os responsáveis. Como em toda forma de criminalidade, aqui também a impunidade é o maior incentivo à reincidência.

    Usando um tom ainda mais duro, o editorial Chegou a hora do basta, d’O Estado de São Paulo, inicia afirmando:

    No terceiro dia de protesto contra o aumento da tarifa dos transportes coletivos, os baderneiros que o promovem ultrapassaram todos os limites e, daqui para frente, ou as autoridades determinam que a polícia aja com maior rigor do que vem fazendo ou a capital paulista ficará entregue à desordem, o que é inaceitável.

    Algumas linhas depois, é feita a afirmação de que, ao contrário do que diziam os manifestantes, a PM vinha agindo com moderação e que as autoridades estaduais e municipais — o governador Geraldo Alckmin e o prefeito paulistano Fernando Haddad — vinham lidando de forma muito branda com o movimento, mas que finalmente eles pareciam dispostos a endurecer o jogo:

    A atitude excessivamente moderada do governador já cansava a população. Não importa se ele estava convencido de que a moderação era a atitude mais adequada, ou se, por cálculo político, evitou parecer truculento. O fato é que a população quer o fim da baderna – e isso depende do rigor das autoridades.

    E, finalmente, ao comentar as palavras condenatórias aos manifestantes proferidas pelo governador, o editorial arremata que esperava que ele passasse dessas palavras aos atos e determinasse que a PM agisse com o máximo rigor para conter a fúria dos manifestantes, antes que ela tomasse conta da cidade.

    Como que respondendo às pressões midiáticas, a repressão policial à manifestação de 13 de junho se dá de forma ainda mais violenta do que nos protestos anteriores, culminando com a detenção de cerca de 200 manifestantes e mais dezenas de feridos, dentre eles jornalistas de diversos veículos de imprensa, inclusive da Folha e do Estadão. Nesse momento, começou a acontecer a grande virada nos protestos de 2013, quando as imagens da repressão policial viralizaram nas redes sociais, chegando a seguir às mídias convencionais. A indignação de setores da opinião pública, a condenação de organizações como a Anistia Internacional e do próprio Ministério Público e a rápida mudança no tom da cobertura midiática sobre os protestos dariam a tônica dos dias seguintes.

    Como registra Ortellado (2015), é importante ressaltar que, naquele momento, os meios de comunicação reorientaram radicalmente o seu discurso, dando um novo significado às lutas relacionadas ao transporte público e procurando diversificar e ampliar a pauta das manifestações, ao mesmo tempo em que deixavam de desqualificar os manifestantes e suas reivindicações:

    (...) embora em nenhuma das manifestações até aquela do dia 13 de junho tivesse aparecido qualquer outra reivindicação que não a oposição ao aumento das passagens, as revistas, os comentaristas de TV e os jornais do fim de semana dos dias 15 e 16 afirmaram que a pauta das manifestações tinha sido ampliada.

    Esta mudança no tom da cobertura midiática dos protestos pode ser mais bem contextualizada quando se leva em conta que, a partir da ascensão de Luis Inácio Lula da Silva à presidência da República, os principais grupos de mídia brasileiros foram assumindo gradualmente uma linha editorial claramente oposicionista e crítica às políticas e programas implementados pelo governo petista. Em 2010, Maria Judith Britto, Executiva da Folha de São Paulo e presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), não hesitou em afirmar publicamente que

    A liberdade de imprensa é um bem maior que não deve ser limitado. A esse direito geral, o contraponto é sempre a questão da responsabilidade dos meios de comunicação e, obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada. E esse papel de oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma incomoda sobremaneira o governo (O Globo, 18/03/2010).

    Neste sentido, a proposição de novas pautas — majoritariamente críticas ao governo — às manifestações de 2013 ressaltam esse papel dos grupos de mídia brasileiros como atores políticos relevantes no cenário nacional, através da sua capacidade de influenciar — e mesmo moldar — as percepções da sociedade sobre determinados eventos e processos através do gatekeeper e da agenda-setting. [ 2 ] É óbvio que não se pode negar a existência de insatisfações latentes em diferentes setores da população que favoreceram a difusão dessas novas pautas, mas nos parece inquestionável a importância da mídia convencional na mudança do caráter — e da narrativa — das manifestações de junho de 2013. Assim, se as novas mídias tiveram um importante papel na mobilização da segunda onda de protestos — como já tinham tido durante os primeiros atos articulados pelo MPL —, deve-se ressaltar, porém, que boa parte do conteúdo informacional e analítico utilizado para esse mobilização foi aquele produzido pelos jornalistas e comentaristas da grande imprensa, difundidos e amplificados através do botão Compartilhar das redes sociais.

    Tendo como pano de fundo essas questões e em reação à violência policial nos protestos do dia 13, acontecem os atos de 17 de junho, em diversas cidades brasileiras. Inicia-se assim uma nova fase daquilo que os analistas midiáticos — que começavam a impor sua narrativa — já haviam batizado apressadamente de Primavera Tropical ou Primavera Brasileira, numa referência direta à Primavera Árabe e às Primaveras anteriores, ignorando, deliberadamente ou não, os contextos completamente distintos em que aconteceram os movimentos contestatórios no Oriente Médio e no norte da África e as manifestações no Brasil. A inadequação do termo Primavera para o caso brasileiro fica clara quando se leva em consideração que as revoltas no mundo árabe ocorreram contra governos autoritários que exerciam enorme controle sobre a vida dos cidadãos, limitando a liberdade de expressão e cerceando a circulação de informações, enquanto que o Brasil, mesmo com índices alarmantes de repressão policial e grande concentração midiática nas mãos de grupos privados, é uma típica democracia liberal do mundo pós-Guerra Fria, onde existem inúmeros canais para a livre expressão dos cidadãos (Rodrigues e Brancoli, 2013).

    Com grandes aglomerações no Rio (cem mil pessoas) e em São Paulo (sessenta e cinco mil), mas também em outras grandes cidades, os protestos já apresentavam uma pauta ampliada para além da questão do transporte público, com a inclusão de temas como a derrubada da PEC 37, proposta de emenda constitucional que propunha limitações na atuação do Ministério Público restringindo o seu papel investigativo, a corrupção nas diversas esferas e níveis de governo e a insatisfação com os altos gastos e a pouca transparência das grandes obras e demais preparativos para a Copa de 2014. Nesse momento, percebe-se, de forma clara, a adesão aos protestos de movimentos anticorrupção — boa parte deles de orientação conservadora e antipetista — com base nas camadas médias, que em anos anteriores já haviam tentado articular sem sucesso, apesar de certo apoio midiático, protestos contra o governo, como o movimento Cansei (2007).

    No Rio de Janeiro, a manifestação do dia 17 terminou com o confronto entre manifestantes e a PM, em frente à Assembleia Legislativa, na Praça XV, e a depredação parcial do prédio. A partir de então, ganha força na imprensa a narrativa — que seria a tônica das semanas seguintes — da existência de grupos de vândalos entre os manifestantes em contraposição à imensa maioria dos que iam aos atos de forma ordeira, expondo pacificamente as suas reivindicações. Nos dias 18, 19 e 20, em diversas capitais brasileiras, incluindo Rio de Janeiro e São Paulo, os aumentos das tarifas de ônibus são cancelados e o MPL anuncia a suspensão das manifestações, visto que, após duas semanas de intensa mobilização, os objetivos imediatos do movimento haviam sido alcançados e canais de negociação para outras demandas haviam sido abertos com o poder público.

    No entanto, em 20 de junho, novas grandes manifestações acontecem em diversas cidades brasileiras. A esta altura, inúmeras novas pautas já tinham sido incorporadas à agenda dos manifestantes, cada vez mais diversificados, incluindo, desde revindicações de caráter corporativo — como a dos procuradores da república contra a aprovação da PEC 37 —, àquela que seria a principal bandeira dos movimentos sociais nos meses seguintes: o questionamento aos altos gastos — e à pouca transparência dos mesmos — com os grandes eventos esportivos, como a Copa das Confederações (que havia começado no fim de semana anterior), a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

    Se, nos atos do dia 17, já se notava a presença de grupos de orientação mais conservadora e de conotação antipetista, nos do dia 20, tais grupos apareceram de forma muito mais eficiente e organizada, insuflando os participantes dos atos contra o PT, especificamente, e contra a esquerda de modo geral, através do discurso do apartidarismo e do não aparelhamento pela esquerda das legítimas demandas populares. Nessas manifestações, ocorreram inúmeros registros de agressões a militantes de movimentos sociais organizados e de partidos de esquerda, com bandeiras vermelhas e faixas sendo rasgadas. Esta direita que saiu às ruas incluía organizações nacionalistas de extrema-direita, skinheads, monarquistas, defensores do retorno da ditadura militar, grupos religiosos conservadores, cidadãos de classe média com um extemporâneo e caricato discurso anticomunista, um genérico sentimento anticorrupção e jovens manifestantes que mesclavam despolitização (traduzida na retórica do contra tudo e contra todos) com um liberalismo difuso e que se constituem numa das principais bases daquilo que podemos chamar de nova direita, que analisaremos mais adiante.

    No Rio de Janeiro, onde houve o maior protesto do dia, ocorrem novos e violentos enfrentamentos entre manifestantes e as forças policiais, que atingem inclusive bairros mais distantes dos locais das manifestações, como a Lapa. Também teria início o movimento Ocupa Cabral, com a montagem de um acampamento nas proximidades da residência do então governador Sérgio Cabral. Nas semanas seguintes, tal movimento seria engrossado por manifestações de moradores dos morros e de áreas periféricas da cidade, notadamente, após o desaparecimento e a morte do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, em meados de julho, por obra de policiais da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Rocinha.

    Nas manifestações que ocorreriam nos dias e nas semanas seguintes, inicia-se uma espécie de disputa pelas ruas, que coloca, de um lado, mas não necessariamente de forma unitária ou harmônica, a juventude radicalizada — parte dela já organizada em novos grupos e coletivos articulados a partir dos primeiros protestos —, organizações e partidos de esquerda, movimentos populares, sindicatos e organizações estudantis, e, do outro, os setores mais à direita e os partidos de oposição que buscaram instrumentalizar as insatisfações existentes na sociedade para enfraquecer a presidente Dilma Rousseff, que poucas semanas antes do início do protesto ostentava altos índices de popularidade e parecia caminhar para uma reeleição tranquila em 2014. Nesse momento, ganharia força na narrativa midiática a contraposição entre os manifestantes pacíficos e os vândalos, personificados pelos grupos de jovens mascarados que utilizavam a tática Black bloc e praticavam ações violentas. Através de blogs e redes sociais, organizações de direita e mesmo figuras ligadas aos partidos de oposição buscariam construir uma certa narrativa buscando associar a atuação dos Black blocs a uma ação deliberada do governo e do PT para esvaziar as manifestações, ao espantar o cidadão comum, ignorando deliberadamente o caráter antiestablishment (da qual o PT também faz parte) dos grupos que utilizavam essa tática.

    Assim, ao longo de julho e dos meses seguintes, a participação nos protestos foi caindo gradativamente, restando somente alguns focos de resistência, notadamente no Rio de Janeiro, engrossados esporadicamente por manifestações de categorias profissionais — como os professores públicos do Rio de Janeiro, por exemplo — em torno de questões específicas. Esse arrefecimento das manifestações pode ser explicado por inúmeros fatores, que vão da revogação do aumento das tarifas de transporte público às medidas propostas pelo Executivo e pelo Legislativo — mesmo que não implementadas de imediato —, passando pela ausência de uma pauta específica para o movimento após o recuo das administrações municipais e estaduais em relação às passagens de ônibus e outros modais. No entanto, a versão que ganharia força na mídia tradicional e nas redes sociais é a de que a radicalização de uma minoria de manifestantes teria afastado os cidadãos comuns, que estavam lutando pacificamente por seus direitos.Ao mesmo tempo, intensificava-se a repressão aos ativistas que ainda estavam nas ruas — com a prisão a abertura de processos contra vários deles — e a retórica, amplificada pelos principais meios de comunicação do país, de criminalização dos movimentos sociais.

    No primeiro semestre de 2014 continuariam a acontecer protestos de proporções bem menores, tendo como mote principal a realização da Copa do Mundo no Brasil e as questões diretamente relacionadas ao evento: remoção de populações por causa de grandes obras urbanas, gastos excessivos, pouca transparência nesses gastos, denúncias de corrupção, obras mal executadas ou incompletas, mecanismos de exceção previstos na Lei Geral da Copa etc. Se, em junho de 2013, a Copa das Confederações havia funcionado como um dos elementos catalisadores para as grandes manifestações, a aproximação do evento principal possibilitou a permanência da mobilização dos setores mais organizados até julho de 2014, mesmo com a intensa repressão policial aos protestos que, ainda assim, aconteceriam até o final da competição.

    É importante ressaltar que em várias partes do mundo já começam a ocorrer questionamentos à ditadura exercida pelas organizações esportivas internacionais — como a FIFA e o COI —, que faz com que elas consigam, inclusive, ter ingerência nas questões internas dos países que sediam os eventos por elas organizados através, por exemplo, da imposição de alterações nas legislações nacionais com o objetivo de remover entraves legais à realização dos mesmos. Isto ocorreu em 2013, na Áustria, quando os cidadãos de Viena se opuseram a que a cidade se candidatasse a sediar os Jogos Olímpicos de 2028, por avaliarem que os altos custos do evento, por conta das exigências do COI, não compensariam os eventuais benefícios gerados por ele. O mesmo ocorreu em 2014, quando as principais forças políticas de Estocolmo, na Suécia, se posicionaram contrariamente à candidatura da cidade para sediar os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022.

    A perplexidade e as dificuldades de reação das forças governistas e das esquerdas históricas

    Como já indicamos anteriormente, uma das principais novidades trazidas pelas manifestações de junho de 2013 foi o fato de terem sido os primeiros protestos de massa, desde os estertores da ditadura civil-militar, que não tiveram o protagonismo e/ou a hegemonia do PT e de outros atores políticos e sociais — Central Única dos Trabalhadores (CUT), União Nacional dos Estudantes (UNE), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) etc. – tradicionalmente ligados a ele e a seus aliados históricos, como o Partido Comunista do Brasil (PC do B) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB). Desta forma, a força que os protestos foram ganhando ao longo do mês — bem com os seus desdobramentos — causaram surpresa e perplexidade na esquerda institucionalizada que governava o país havia mais de uma década, o que se traduziu em movimentos erráticos e posturas ambíguas das forças progressistas históricas em relação aos manifestantes e suas reivindicações.

    Tendo começado em São Paulo — cidade administrada por Fernando Haddad, professor da USP e um dos novos rostos do PT, que emergiram a partir do desgaste de lideranças partidárias tradicionais devido ao processo do chamado mensalão —, os protestos contra o aumento das passagens do transporte público articulados pelo MPL foram recebidos de forma similar pelos dois partidos que polarizavam a cena política brasileira desde a década de 1990, o PT e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB): com a desqualificação dos manifestantes, o discurso de defesa da manutenção da ordem e a negativa em negociar as reivindicações do movimento. Nesse contexto, quadros importantes do PT, como o Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo e o Prefeito Fernando Haddad, deram declarações que reproduziam o discurso midiático sobre os protestos, rotulando-os de absurdos e criminalizando a ação dos jovens que deles participavam.

    Com o desenrolar dos acontecimentos e a intensificação dos protestos após a intensa repressão policial do dia 13 de junho, a prefeitura de São Paulo abriu negociações com o MPL e acabou revogando o aumento das tarifas. No entanto, nesse ínterim, o governo federal e o PT e seus aliados demonstravam certa paralisia e incapacidade de compreender o que estava em curso e demoraram a dar uma resposta ao que ocorria nas ruas. A partir do momento em que as manifestações tiveram sua pauta ampliada e obtiveram a adesão de segmentos direitistas declaradamente antipetistas e de setores de oposição, além do apoio dos principais grupos de mídia que procuraram dar um novo sentido a elas, a reação imediata da base de esquerda do governo foi a de denunciar a fascistização dos protestos e de convocar a militância para também ir às ruas no dia 20 de junho, vestidos de vermelho e em defesa das conquistas dos governos Lula e Dilma e da reforma política. Sintomaticamente, nesse dia foram registrados inúmeros confrontos entre os manifestantes ligados aos partidos e organizações de esquerda e os grupos de direita que tentavam dar uma nova direção aos protestos de rua.

    Porém, entre os dias 13 e 20 de junho, a presidente da República e seus assessores mais próximos transmitiam para a opinião pública, inclusive para sua própria base, a sensação de atordoamento e de um incômodo imobilismo resultante da incompreensão da real dimensão do que se passava nas ruas, mesmo após as vaias sofridas por Dilma Rousseff durante a cerimônia de abertura da Copa das Confederações, em 15 de junho. Somente no dia 18, em reunião realizada em São Paulo com a presença de Haddad, Lula, Rui Falcão, presidente nacional do PT, e do marqueteiro João Santana, a presidente articularia uma espécie de gabinete de crise a fim de traçar a estratégia para lidar com as manifestações. A tentativa do governo de sair da defensiva se traduziu em um pronunciamento de Dilma Rousseff em rede nacional, no dia 21 de junho, em que a presidente anunciou um pacto pela melhoria do transporte nas grandes cidades e dos serviços públicos em geral, nas quais se destacavam três ações principais que procuravam responder às demandas dos protestos: o investimento de 100% dos royalties do petróleo em educação; a implementação do Plano Nacional de Mobilidade Urbana, privilegiando o transporte público; e a importação de milhares de médicos do exterior para atuar na rede pública de saúde, ampliando o atendimento do SUS.

    No entanto, a presidente acabaria, mais uma vez, reproduzindo o discurso da pretensa dicotomia entre manifestantes pacíficos e vândalos, comum às forças governistas, à oposição conservadora e à grande mídia:

    Os manifestantes têm o direito e a liberdade de questionar e criticar tudo, de propor e exigir mudanças, de lutar por mais qualidade de vida, de defender com paixão suas ideias e propostas, mas precisam fazer isso de forma pacífica e ordeira. O governo e a sociedade não podem aceitar que uma minoria violenta e autoritária destrua o patrimônio público e privado, ataque templos, incendeie carros, apedreje ônibus e tente levar o caos aos nossos principais centros urbanos. Essa violência, promovida por uma pequena minoria, não pode manchar um movimento pacífico e democrático. Não podemos conviver com essa violência que envergonha o Brasil. Todas as instituições e os órgãos da Segurança Pública têm o dever de coibir, dentro dos limites da lei, toda forma de violência e vandalismo. (Portal do Planalto, 21/06/2013)

    Também no dia 21, ocorreria em São Paulo uma reunião que contou com a participação de 76 organizações de esquerda — partidos, sindicatos, movimento sociais — para avaliar as manifestações e traçar uma estratégia de atuação conjunta. Dela participaram tanto partidos e movimentos da base governista (PT, PC do B), quanto da oposição de esquerda (Partido Socialismo e Liberdade - PSOL, Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado - PSTU, Partido Comunista Brasileiro - PCB), unidos pela preocupação com a tentativa dos setores à direita de instrumentalizar os protestos para seus objetivos. Conforme registrou, à época, o jornal Brasil de Fato, os participantes da reunião reconheciam o caráter progressista das manifestações, identificando-as com a luta pela ampliação dos direitos sociais, mas ao mesmo tempo ressaltavam que

    (...) a direita organizada tenta dar os rumos do movimento, enfatizando o nacionalismo e explorando o senso comum de que as organizações políticas são a causa dos problemas do país, afirmando que as manifestações são de um povo que, unido, não precisa de partidos ou organizações. Dessa forma, a direita inicia um processo de incitação ao ódio às organizações trabalhadoras, responsáveis por construir lutas e mobilizações, para que estas sejam impedidas de participar ativamente das mobilizações com suas pautas progressistas, tentando assim acabar com o caráter de classe e de luta por direitos concretos das mobilizações. A violência, tanto verbal quanto física, esta causada por grupos de skinheads e neonazistas, que movimentos sociais, partidos e sindicatos sofreram no ato da última quinta (20/06) em São Paulo, revela bem a capacidade dessa direita em utilizar o sentimento de indignação contra a política para expulsar a classe trabalhadora organizada dos atos (Brasil de Fato, 22/06/2013).

    Nesse sentido, a violência presente em diversos protestos seria identificada com grupos de extrema-direita, que estariam manipulando a maioria dos manifestantes e que, portanto, era necessária a presença das esquerdas nas ruas para disputar a consciência das pessoas e enfrentar o avanço direitista. Ao longo das semanas seguintes, com o declínio das grandes manifestações, a esquerda histórica, governista ou não, tenta retomar as ruas através de atos como os realizados pelo MST e pelas centrais sindicais, em 11 de julho de 2013, em torno de bandeiras como a reforma política, a reforma urbana e a democratização dos meios de comunicação.

    Análises feitas à época ou a posteriori ressaltaram as perplexidades e os movimentos erráticos das esquerdas tradicionais diante dos eventos do mês de junho. Várias delas — principalmente as que identificavam a crise de representação política como uma das motivações principais, senão a principal, das manifestações — viram nisso a tradução da incompreensão de uma esquerda institucionalizada diante de novos movimentos que procuravam dar voz a uma grande massa, notadamente de jovens, que não se sentia representada politicamente e que questionava as práticas e as instituições políticas tradicionais:

    Com sua legitimidade questionada tanto de fato (pelo protagonismo) quanto de direito (pelas críticas diretas ou indiretas), ela [a esquerda institucionalizada] acusa os manifestantes de jogar o bebê fora com a água do banho. Na busca quixotesca por uma política sem mediação ou mediadores, dizem, os manifestantes nivelam a política por baixo, tratando os políticos e as instituições como indiferenciados entre si, opondo-os ingenuamente a um povo a quem bastaria que se levantassem os obstáculos da representação para que se expressasse e realizasse livremente, flertando assim com um populismo que beiraria — esta palavra tão abusada ultimamente — o fascismo. O problema é que a acusação incorre no mesmo erro que critica: nivelando os protestos por baixo, ouve apenas um marulho sem sentido onde há pautas claramente articuladas (a criação ou defesa de direitos e comuns: mobilidade urbana, direito à cidade, direitos indígenas, desmilitarização da polícia); confunde deliberadamente a desconfiança legítima em relação às instituições com a violência pontual contra militantes partidários ocorrida em junho; deixa de entender os manifestantes nos seus próprios termos para aplicar-lhes uma lógica capaz de descrevê-los apenas pelo que não são (sem direção, sem organização formal, etc.); com frequência reproduz a representação que a mídia corporativa faz do movimento e, no limite, contribui direta ou indiretamente com sua criminalização. (Nunes, 2013, grifo do autor)

    Dessa forma, sob essa visada, a própria ideia de uma possível fascistização dos protestos que nortearia as

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