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As sombras de Kanchen
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As sombras de Kanchen

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Sempre que as primeiras Sombras retornam à aldeia, Pavitra reencarna. Reconhecido pelos monges como o Salvador, ele é levado para a montanha sagrada de Kanchen, onde deve se preparar. As Sombras ameaçam a aldeia em crescente número, mas Pavitra treina em exílio. Na idade certa, ele desce a montanha e se sacrifica, aniquilando as criaturas. A cada geração, Sombras e Salvador ressurgem.Quando um menino, reconhecido como Pavitra, rejeitou o ciclo de reencarnação e sacrifício, a aldeia se viu forçada a enfrentar as inúmeras escolhas, banais e heroicas, inconsequentes e criminosas, que sustentavam sua tradição.A memória desse Salvador rebelde é recuperada nas cartas entre um eremita, inimigo da aldeia, e o sumo sacerdote da Ordem de Kanchen. Ambos recontam suas experiências junto ao menino, confrontando olhares sobre a aldeia e a reencarnação de Pavitra.
LanguagePortuguês
PublisherEditora Buqui
Release dateDec 26, 2019
ISBN9788583385424
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    As sombras de Kanchen - Leonardo Oliveira

    INDRO

    1º RELATO DE ASSURAMA

    1 — O Nome do Salvador

    Ushtra, então mestre da Ordem de Kanchen, escolheu o dia mais quente do verão para revelar ao povo a chegada do Salvador. Da praça alta, todos o observávamos, lá embaixo, nas plantações secas, com a eterna rigidez que lhe ocultava a idade, como suponho que vos recordeis. Vossa Graça não estranhe meu tratamento direto; não há problema que estas cartas assumam um tom pessoal, conforme registremos o que nos ocorra à memória. Posteriormente, delas nascerá um registro unificado e oficial. No momento, escrevo também a mim, recordando pela primeira vez, em forma tão detalhada, o milagre do Salvador. Ademais, quem sabe o tom íntimo nos permita enfim entendermos um ao outro.

    Como dizia, Ushtra avançava com o cone largo de palha na cabeça, os passos ritmados e constantes, as costas rígidas, postura que reforçava sua autoridade. Ele ignorava o extremo calor, mesmo vestindo a sabaki ritual, ainda mais abafada e justa que as cotidianas. Àquela hora, os camponeses estariam recolhidos, só retomando o trabalho quando o sol se deitasse um pouco, não tivessem vindo à praça alta para o dia solene.

    Era palpável a apreensão da aldeia por Rama e Amarassarit. Estes dedicados pais haviam informado ao templo quando seu filho teve os pesadelos sagrados, dois anos antes do dia que vos narro. O atraso para executarmos o ritual da Glorificação foi uma medida temerária de Ushtra, primeiro de seus diversos pecados, numa época em que a autoridade do mestre ainda me cegava. Mais cedo, quando ele descera do templo trajado na sabaki ritual, os aldeões temeram por seus filhos, entretanto, ao ouvirem que buscaríamos o de Amarassarit, o alívio foi violento o suficiente para não questionarem que o menino já contava cinco anos de idade. Seguiu-se um olhar atento e dolorido para as terras secas. No dia da Glorificação, o povo vivencia o sofrimento da família a ser amputada pela Ordem, condoendo-se pelos pais e pela criança que perderá o lar. Depois da Glorificação, essa empatia se esvai com surpreendente velocidade.

    A notícia se espalhou, o povo se reuniu, e Ushtra, conforme a tradição, dirigiu-se à casa da abençoada família. Enxergávamos o filho de Amarassarit brincando por entre o trigo, mais ou menos no caminho de Ushtra, mas o mestre avançava como se não estivesse interessado naquela criança, até estarem bem próximos, quando o velho estacou, como se despertasse de um transe. Ergueu a cabeça devagar, acompanhando sua sombra, projetada levemente ao leste. Ali estava o menino, agachado, riscando o chão com um galho seco. Como Amarassarit narrou posteriormente, seu filho tivera uma noite difícil, atormentado por um pesadelo em que encontrava uma violenta ave, vinda do sol. Sem entender o sentido do sonho nem podendo trazer seu filho ao templo logo cedo, para que o interpretássemos, ela havia permitido que o menino brincasse bastante, em vez de ajudar nos deveres. Assim, Ushtra encontrou-o muito longe de casa e dos pais, que por isso perderam qualquer oportunidade de se despedirem do menino.

    O Salvador teria suspeitado da significância de tal encontro. Desde que o menino tivera os pesadelos sagrados, Ushtra mantinha-se atento à família, especialmente durante as rezas com o povo. De todo modo, o menino não teve reação. Foi com displicência que Ushtra tirou o chapéu e o colocou sobre a cabeça do menino. Todos, mesmo o jovem Salvador, sabiam o significado do gesto, presente na história do primeiro Pavitra, o Puro, Destruidor de Surassas, Mestre das Colheitas. O povo à minha volta curvou-se, posicionando um joelho no chão.

    Amarassarit e Rama despontaram no limite que nossas vistas alcançavam. Creio que procurassem pelo filho, mas viram de imediato o cone posto sobre a cabeça. Ambos tremeram, posso jurar, apesar da distância, até que caíram de joelhos, o pai antes da mãe. Dou testemunho de que foi Rama quem puxou Amarassarit ao chão, para que rezassem. Ushtra, noutro sinal que deveria ter nos alertado quanto ao futuro, havia proibido que os pais do menino, ainda que fossem os veículos da vinda do Salvador, participassem da Glorificação. Amarassarit e Rama se mantiveram distantes, a ponto de Ushtra e o menino nem os perceberem.

    Conforme o dogma, o nome daquela criança foi abandonado e esquecido. Naquele momento, Ushtra o chamou Pavitra, a que deveria responder. O mestre se virou de volta à aldeia e comandou que o Salvador o acompanhasse, contudo o menino se deixou cair de vez ao chão. Entendemos que começara a chorar, e agradecemos a piedade e a humildade com que assumia, naquele gesto, seu sacrifício por todos nós.

    2 — A Glorificação

    Da Ordem de Kanchen, apenas Ushtra, Ryuk e eu havíamos sobrevivido. Enquanto o mestre havia buscado o menino, nós dois esperávamos na praça alta. Tínhamos um único noviço na época da Glorificação: Jin. Aguardávamos submersos no murmurinho do povo, próximos ao obelisco a Bram, a cujos pés já estava armado o tablado para Pavitra. Ushtra guiou o Salvador das plantações para uma das casas mais afastadas da praça baixa a fim de prepará-lo. Só o que nos restava era suportar o calor e a ansiedade do povo, que cedia a comentários e conversas mal disfarçadas.

    A única figura estática além de nós era Sátchi, cercada por quatro de suas guardas e, além, por marceneiros, ferreiros, sapateiros, todos satisfeitos perto dela, desde que solteiros ou desacompanhados. Como dormia do fim da manhã ao início da tarde, ela havia se dirigido à praça com roupas destoantes para a correta população diurna: vestia um robe, mal amarrado na cintura, só adequado, talvez, à intimidade do lar, admitindo-se que agradava aos homens em torno; não nego que tivessem razão. Costume inabalável de Sátchi, deixava à mostra a inscrição, gravada por seu povo de origem, que nascia debaixo da orelha e alcançava a clavícula. Conforme afirmara ao templo, tratava-se da grafia deles para seu nome, cuja tradução seria Verdadeira Consciência, entretanto fiquei sabendo, muito depois, que ela dera respostas diversas a quem mais lhe questionara o sentido daquela pintura.

    As pálpebras muito marcadas e a boca reta inspiravam-me a perfeita expressão daquele espírito, um quê de objetividade e abordagem direta para tudo na vida. Enfim, exagero ao forçar vossos olhos a percorrerem Sátchi dessa forma, o que pretendia afirmar era que, apesar do comércio controverso de que viera a se ocupar, ela havia se tornado tão essencial à diversão e à distração da aldeia, que bastava à moralidade dos corretos aldeões criticar os costumes daquela mulher, ou, nesse caso, sua vestimenta, sem que se lhe impusessem maiores consequências. Portanto, ao vê-la vestida assim no ritual, algumas aldeãs não fizeram mais do que trocar um rápido olhar e dar o assunto por encerrado. Sátchi estava de frente para mim, no outro limite da praça, mas parecia estar ao alcance de um comentário discreto, talvez porque se mantivesse tão quieta, como nós. Esclareço que nem ela nem o calor fervente de minha sabaki desviaram minha atenção do importante ritual sagrado que se aproximava, o renascimento de Pavitra, ápice de minha vida monástica, até então.

    Dados os equívocos que levaram à chacina de nossa aldeia e de nossa Ordem, Ushtra havia se convencido de que, quando o Salvador fosse revelado a todos, o ponto decisivo de seu treinamento seria o isolamento absoluto. Isso já era o motivo para proibir que os pais assistissem à Glorificação, o que agora temo ter sido um desvio excessivo dos dogmas. Quem sabe o destino de Amarassarit e Rama teria sido diferente se houvessem presenciado a morte do filho e seu renascimento como Salvador. Não reagi tão cedo à estranha flexibilidade com que Ushtra começava a tratar os mandamentos do Selo.

    É triste lembrar a resiliência daqueles pais, pois comprova que Amarassarit já foi uma mulher forte em sua fé. Afinal, eles se mantiveram à margem da aldeia apenas por obediência a Ushtra, uma vez que não tínhamos, na época, nenhum guarda ou monge para mantê-los afastados. Contamos com o respeito deles pela Ordem, e ambos o mantiveram.

    Ushtra finalmente despontou na ladeira, trazendo o menino pela mão, que estava soterrado nos penduricalhos de suas vidas passadas: o chapéu desenhado em ouro, a túnica branca, o rosário de jade e os sapatos prateados. Era o peso da antiga lei que fazia nosso Salvador se arrastar com os ombros encolhidos e a expressão preocupada, por certo procurando os pais no meio da multidão. O mestre guiou-o até o centro da praça, sem olhar em volta, nem mesmo reconhecendo que gritavam e sacudiam as mãos em alegria; Ushtra subestimava a importância da plateia para o nosso dever. O menino, tímido demais, agarrou-se à sabaki do mestre e escondeu o rosto como pôde, mas Ushtra forçou-o a subir na plataforma redonda, à base do monumento a Bram.

    Outro, deixado ali, talvez tentasse fugir, mas aquele menino acanhado manteve-se inerte, cercado por todos os olhares. Jin carregou o elixir da morte até o filho de Amarassarit, que o bebeu, não sem alguma suspeita. Um abraço ao ventre, um movimento brusco sobre si mesmo, e logo ele se perdeu nas erráticas expressões da dor. Caiu e vomitou, mau agouro que não deixei de marcar com um olhar repreensivo contra Ushtra, suspeitando que os Nosas estivessem insatisfeitos pela demora entre os pesadelos da Anunciação e a Glorificação.

    O povo baixou o olhar para que agarrássemos o Salvador e o forçássemos a beber tanto quanto havia renegado. Enfim, num estertor, o corpo repelia o insignificante filho de camponês que envolvera a natureza pura nele renascido. O menino berrou e se debateu como nunca mais veríamos, em previsto contraste com a criança pacata que viera até nós. Como os braços e as pernas não podiam nada contra a força do velho Ushtra, o filho de Amarassarit tentou escorrer para o chão, tentou que os pais ouvissem seu chamado, onde estivessem, ou que alguém, na multidão, ao menos se voltasse para testemunhar seu pedido de socorro.

    Por mais que tentasse resistir, seus gestos foram perdendo a força e o sentido, ao menos para nossos olhares pouco dignos, o que indicava que ele fazia contato com os Nosas. Foi fácil então deitá-lo sobre a plataforma, para seguir o ritual.

    Ryuk poderia erguê-lo sozinho, mas ajudei-o para garantir perfeita estabilidade, em caso de um espasmo, e assim fizemos a procissão do Salvador. Os olhos do menino estavam voltados para o azul quente do céu, de onde vivenciaria as primeiras mensagens dos Nosas. Jin tocava o pandeiro do funeral, vindo em nosso encalço, enquanto Ushtra mantinha-se solene no centro de toda a movimentação. Os aldeões erguiam as cabeças desejando que o menino, mesmo em transe, enxergasse-os, todos quietos e focados nele, unos. Essa atitude é o exato sentido de Pavitra.

    As palmas começaram, e as mulheres se puseram a cantar, como devem. Assim que passávamos, todos se abraçavam, cumprindo o prescrito pelo ritual, mas com sinceridade e alegria. Nos anos anteriores, crescera a dúvida se os Nosas apontariam um novo Salvador, e o adiamento dessa revelação por Ushtra aumentara a apreensão de todos. Agora que Ele estava presente, cada aldeão explodia em alegria, tanto é que Jin acelerou o pandeiro sem o perceber, e os mais animados começaram a batucar nas coxas, quebrando o andamento correto para a morte do menino. Ushtra corrigiu o noviço, e os aldeões, um pouco ressentidos, acompanharam a brusca contenção.

    Assim que completamos a volta, o menino se ergueu e gritou a plenos pulmões Ere! Ere! Ere! Não tentaríamos interpretar esses sons, que passariam como manifestações epifânicas do Salvador, no entanto foram seguidos por um berro não só violento o suficiente para erguê-lo a uma postura sentada, mas também soando como Seren!

    Pairou sobre a praça a dúvida do que se havia de fato escutado e de como se deveria reagir, se o menino houvesse pronunciado, no momento de sua morte sagrada, justo o nome dela. A hesitação foi se tornando medo nos olhares dos aldeões, que buscavam Ushtra, percorriam as reações dos parentes e voltavam ao mestre. Para não incluir tal blasfêmia na cerimônia, ele tomou uma decisão que me pareceu correta na época: tratou como se o último grito fosse igual aos primeiros e indicou que a Glorificação prosseguisse. Ushtra nunca assumiu para alguém externo à Ordem que Seren existisse.

    Abaixamos a plataforma até o chão, para que o Salvador recebesse as oferendas dos chefes de cada casa, conforme as posses e a profissão de sua família. Eles se abaixaram em frente aos olhos fixos do menino, fazendo expressões agradáveis, sorrindo para o Pavitra recém-desperto no corpo.

    Feitas as oferendas, quando o último homem voltava a seu lugar, Sátchi apontou para o céu uma adaga de jade enfeitada com joias, cujos reflexos cegavam ora um, ora outro de todos que estavam na praça. Não era crível que Sátchi considerasse sua casa como a de uma família, mas ela sabiamente escolhera esse dia santo para oficializar a própria relevância na aldeia. Ushtra não se moveu, por surpresa ou por não achar forma discreta de intervir; ao menos é o que imagino. O gesto dela, de fato, não era sacrílego: as leis não proibiam mulheres de participar, e houve uma época em que todos os presentes agraciavam o Salvador. Entretanto, já nas primeiras gerações, a Ordem acelerou o ritual, concentrando essas obrigações nos chefes das casas, já que o essencial é demonstrar a Pavitra que, ao lhe pedir o futuro sacrifício, cada família se sacrifica a ele.

    Por isso mesmo Sátchi quis se expor a seu olhar, ser julgada pelo Salvador, como me explicou quando sua ascensão na aldeia aproximou-a de mim; ela desejava a anuência de Pavitra às grandes contribuições que planejava e que logo realizaria por todos nós. Sua oferta não era um pecado, e eu mais me preocupava em entender como ela teria se apropriado de adaga tão adornada.

    O povo não se movia, na espera do único julgamento que interessava: Sátchi colocou a adaga em frente ao menino, fitando com segurança os olhos insensíveis. Muito depois, espalharam-se rumores de que ele reagira, mas esta narração também servirá de testemunho contrário a tais mentiras: não houve qualquer movimento, voluntário ou acidental, dos olhos do Salvador. Ele recebeu Sátchi como havia feito com os outros, e ela, grata, beijou os pés do menino antes de se afastar. Se Ushtra se incomodou, teria sido hipocrisia expressar essa contrariedade, pois ele próprio impunha suas alterações ao ritual e ao treinamento de Pavitra, não podendo acusar pequenos desvios às tradições que não desrespeitassem o cerne da Consagração descrita no Selo.

    Chegava enfim o sagrado desprezo: todos viraram as costas para o Salvador. Estando o filho de Amarassarit morto, o Pavitra só poderia ser visto novamente pelos aldeões quando retornasse do exílio para lhes salvar dos Surassas. Ryuk pegou o menino sob um de seus braços, como um fardo de feno, e teríamos seguido para o templo não fosse a chegada de vossa mãe.

    3 — A Profana

    Ocorre-me que menciono Chandara pela primeira vez nestas cartas, e já a referência me escapa como vossa mãe, mesmo que o vínculo entre vós, salvo o parto, seja nulo; talvez Vossa Graça ainda carregue ressentimentos contra ela, ainda que ambos estejam intimamente conectados, na memória dos monges, como os maiores opositores às nossas tradições. No dia da Glorificação, os cabelos dela já vinham cinza, como o pano velho que cobria seu corpo. Contava pouco mais de cinquenta anos na época, no entanto a pele desgastada dava a impressão de uma idade bem mais avançada, resultado de viver exilada no pântano desde que vós havíeis partido. O pouco de frutas ou verduras boas que comesse, devia-as a crédulas que lhe visitassem escondidas da Ordem. Vede como o pecado também se infiltrava na aldeia naqueles anos de paz; se ao menos os vizinhos dessas almas iludidas houvessem delatado semelhantes heresias ao templo! De toda forma, a aparência de Chandara nos era útil, pois assustava a maioria dos aldeões, afastando-os das sandices que ela pregava.

    Vossa mãe se aproximava mais apoiada na bengala que nas pernas e sustentava o riso de uma beatitude ausente em sujeitos pensantes: a felicidade estúpida de quem se crê abençoada e nos encara como se grata pelos anos de maus tratos. Por ironia, a ausência de qualquer relação ou apego entre ela e vós permite-me plena franqueza neste registro.

    Os aldeões relutantemente se voltaram para a praça, buscando testemunhar nossa reação à recém-chegada, no entanto esse gesto arriscava que enxergassem de novo Pavitra. Para evitar a violação do sagrado desprezo, Ushtra sinalizou que Ryuk levasse o menino, o que precipitou a intervenção de Chandara:

    Levam essa criança com tanta violência, ela gritou, mantendo o sorriso plácido. Retirada da mãe, derrubada pela bebida, carregada para a montanha, é assim que tratam aquele que sacrificarão por todos vocês?

    No silêncio terrível, a repetitiva bengala de Chandara contra a pedra da praça enfeitiçava o povo, mantendo-a com a palavra, enquanto se aproximava do monumento a Bram, até os pesados passos de Ushtra avançarem contra ela. Vossa mãe apontou para o obelisco e esteve prestes a blasfemar, não fosse o tapa que o mestre acertou na boca da herege. O golpe a curvou com violência, fazendo o tronco deslocar-se reto para trás, por um instante, e apenas então ela se foi ao chão, machucando uma perna e o quadril, torcendo o braço contra a bengala, que rolou para longe.

    Sátchi observava-me, enquanto a aldeia focava-se animada em vossa mãe, uma multidão pronta a estraçalhar Chandara, caída e sozinha entre todos; também a esse anseio o mestre seria surdo. Não seria ele veículo dos sentimentos alheios, como costumava me dizer, menos ainda considerando-se o tabu em torno da vida e da morte de vossa mãe. No entanto, o maior argumento de Ushtra para mantê-la viva era a sacralidade de toda criatura que, sem culpa, ignore as leis. Para ele, a alma de Chandara era inocente de seus pecados, como todo animal é intocado por tabus: não os culpamos se voam para dentro do templo, como não nos causa escândalo que andem sem vestimentas; assim, aquele tapa fora uma solução prática, o impedimento de mais profanações a um ritual já excessivamente agitado. Não era o momento para entabular com a herege infindáveis debates teológicos: sabíamos que ela viera pregar a compaixão, bem como o sacrifício das tradições no lugar de mais aquele menino. Ao menos o choque da agressão, os cortes na boca e os machucados pelo corpo calaram vossa mãe, por um tempo.

    Ela já tentava se erguer. Percebendo que Ushtra não daria continuidade ao primeiro golpe, era palpável a intenção dos aldeões por espancá-la. O mestre repetiu que Ryuk e Jin subissem a montanha com o menino e sinalizou para que eu erguesse Chandara nas minhas costas. Vossa mãe aceitou minha aproximação, por mais que o mestre acabasse de tê-la ferido. Os princípios da entrega e do pacifismo, que gritava a todos sempre que pudesse, ela de fato colocava em prática, mesmo frente a nós. Ushtra indicou que eu descesse a ladeira, seguindo-o.

    Ainda uma vez observei Sátchi, que não olhava mais para mim nem para nada; tive a impressão de que se concentrava apenas em não mirar o Salvador sendo levado.

    No caminho para o pântano, Ushtra se manteve calado, por mais que vossa mãe discursasse sobre o que deveríamos ter aprendido quando Vossa Graça nos abandonou. Para ela, vivíamos os últimos dias em que o arrependimento poderia salvar a aldeia. Diferentemente do mestre, eu cedia a tais provocações, respondendo às blasfêmias, mesmo porque ela falava sem parar, ao pé do meu ouvido, enquanto descemos à praça baixa, seguimos para o bosque, desviamos das plantações de arroz, passamos a ponte e percorremos o pântano. Foi graças àquela caminhada que sua doutrina se gravou em minha memória, o que me permitiu responder contra sua pregação até Pavitra crescer. Vossa mãe propunha, em essência, que o sacrifício de um menino a cada geração era um custo alto e absurdo, enquanto todo o tormento acabaria se sacrificássemos as leis e as tradições herdadas do primeiro Pavitra: os Surassas, se nos atacassem ainda, viriam só mais essa vez, para nos purificar de nossas máculas. Seria, entretanto, a última. Impressionava-me a naturalidade com que Chandara defendia que profanássemos os túmulos, abandonando nossos antepassados apenas para acalmar os Surassas sem sacrificar Pavitra.

    Chandara não pesava que sua doutrina implicasse perdermos nossos ancestrais, a identidade de nosso povo. Ponderei com ela que a falta de um Pavitra seria um risco à vida de todos, em contraste com arriscarmos só o menino, mas sobrevivermos. Contra isso, ela insistiu que a deusa, como às vezes chamava Seren, defenderia todos nós. Este era o único tema capaz de arrancar reações de Ushtra, mas o mestre sustentava o silêncio; só respirava forte, espiava-a ou remexia na sabaki.

    Quando chegamos ao pântano, perdi todo interesse no que ela ainda falasse, oprimido pela umidade e pelo abafamento que apenas Ushtra conseguia ignorar sem dificuldades, como fizera contra o calor das plantações secas. Seus pés afundavam mais no lodo que os meus, apesar de eu ter Chandara nas costas, o que era, em parte, resultado da estranha constituição do velho, denso como as rochas do templo, e doutra parte era um indício de que vossa mãe vinha tão fragilizada, que quase não afetava meu peso. Os dois velhos, a meu ver, resistiam de forma sobrenatural ao tempo. A leveza de vossa mãe não implicava constituição capaz de sobreviver, já por uns vinte anos, no calor pegajoso do pântano, com um ar que não se move nem para entrar e sair de nossos pulmões, cercada por uma escuridão que persiste sob o sol e se enrijece à noite. A resistência de Ushtra garantia-lhe uma autoridade grave, plena de força e opressão; a de Chandara inspirava, nos ingênuos, um quê de santidade.

    Ao desviarmos de uma árvore maior, vislumbramos enfim o casebre. Nem a tocha presa do lado de fora havia alcançado nossas vistas, como se um feitiço bloqueasse o ambiente até estarmos perto demais. Incomodou-me que o mestre soubesse encontrar o caminho por entre arroios, córregos, poças e lodo, porém, anos mais tarde, eu compreenderia a necessidade estratégica de nos mantermos sempre alertas ao paradeiro de vossa mãe. O lar lembrava uma jangada, sobre a qual se construíra, bem no centro, uma leve choupana. Não estava preso a árvore nenhuma, portanto balançava no sutil ritmo da água, flutuando como numa espera por se perder. Minha impressão era de que Chandara estivesse pronta para ser levada pelas águas a qualquer momento, sem destino definido, desde que para longe do mundo que conhecemos, mas os espíritos maus daquelas águas mantivessem-na perto da aldeia.

    Foi necessário nos afundarmos até os joelhos para alcançar a casa-jangada. A estrutura inteira se moveu quando subimos, mas, quando esperamos que superasse o balanço inicial, estabilizou-se logo. Havia um equilíbrio improvável na construção, insinuando a ação de um poder contrário à natureza.

    Ushtra tomou a tocha do lado de fora para adentrarmos. Apesar do abafamento em volta, o ar na casa mantinha-se gelado; as paredes estavam cobertas por símbolos sagrados, alucinados por Chandara. Uns eram pinturas com resinas e não sei que tinturas que vossa mãe houvesse criado ali; outros foram confeccionados com cordas, bambus e galhos. Aranhas, besouros e umas criaturas brilhosas nos cercavam, no limite da luz. Os mais coloridos, que veríamos mesmo sem a tocha, tinham os tons verdes ou azulados que a natureza suja produz. Tudo era repulsivo, e cada som úmido do pântano reforçava a religiosidade primitiva que se escondia no casebre, provocando-me uma saudade da rocha seca e reta de nosso templo. No fundo havia um tablado pouco elevado e sem adornos, salvo, no centro, por uma pequena escultura simplória, em madeira. Ushtra martelou com os pés até esse altar primitivo e arrancou a figura, pois era flagrante que vossa mãe tentara retratar Seren.

    Hoje o Pavitra seria Glorificado, Chandara destacou, era minha obrigação orar para que ela o defendesse de vocês.

    Eu larguei vossa mãe no chão e a abracei de frente, para que fosse mais fácil contê-la caso resistisse aos deveres de Ushtra; entretanto, ela não reagiu, para além de sorrir com superioridade e resignação, enquanto o mestre arrancava as heresias das paredes. O lábio inferior de Ushtra tremia de nojo, por tocar tanta obscenidade, como eu, que, só de testemunhar a limpeza, sentia, na boca de meu estômago, uma crescente irritação, da qual levei o resto do dia para me recuperar.

    A expressão de Chandara não implicava coragem, ela receberia com alegria qualquer punição que decidíssemos impor às suas blasfêmias. Senti a necessidade de confrontá-la com franqueza: comentei, sondando sua memória, o fato de que Seren, a tal deusa, era de fato sua filha, levada, na chacina, pelos Surassas. Vossa mãe destacou, como uma diferença crucial:

    Que se entregou aos Surassas. Surgiu-lhe um sorriso manso, voltado para o nada. E ela espera de nós a mesma coragem.

    A glória obtusa sustentou-se no rosto da velha. Ushtra amarrou as imagens sacrílegas que havia recolhido usando uma daquelas mesmas cordas, a fim de incendiar tudo em lugar mais adequado. O mestre se retirou, eu o segui, e ali deixamos Chandara, com sua solidão e com o frágil pano que lhe cobria o corpo.

    1ª RESPOSTA DE INDRO

    4 — O Templo

    Nunca me haviam descrito a Glorificação. É pior do que eu imaginava. Nem depois de tantos anos você demonstra empatia pelo garoto. E ainda odeiam a mim por ter abandonado essa aldeia.

    Aliás, você achava que eu reforçaria sua crítica à Chandara? Comparada com a doutrina de vocês, até a dela parecia sensata. Nunca a vi como mãe, é verdade. Não apoiaria o templo só por isso. O que vale de sua ladainha sobre ela é saber que teve tanto medo do casebre. Quanto à Sátchi, sua relação com ela não me interessa. A menos que conte logo o que, nas palavras de Ushtra, vocês profanaram feito criaturas inocentes, sem tabus.

    Outra coisa, você não suspeita que as próprias cartas vão revelar sua hipocrisia ao usar Vossa Graça para falar comigo? Ou você espera que a idade tenha me tornado

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