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Estudos de Literatura Comparada
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Estudos de Literatura Comparada

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O livro Estudos de Literatura Comparada, produzido ao longo de quase 50 anos, é o resultado de intensa pesquisa realizada pelo seu autor em várias bibliotecas do Brasil e do exterior. A partir de uma concepção inovadora da disciplina, a obra constitui-se numa referência importante para os estudos interdisciplinares entre literatura e outras áreas do conhecimento humano, como cinema, jornalismo, direito, política, religião e mídia eletrônica, além de passar pelas análises das afinidades e confluências entre literatura e as artes visuais. Em linguagem simples e fluente, o texto destina-se aos especialistas, professores, estudantes universitários e ao público em geral, interessado em entrar em contato com os diversos escritores brasileiros em suas mútuas relações com os grandes nomes da literatura ocidental e temas e motivos literários.
LanguagePortuguês
Release dateFeb 20, 2020
ISBN9788547337155
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    Estudos de Literatura Comparada - Gentil Luiz de Faria

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO LINGUAGEM E LITERATURA

    Ao professor Antonio Candido (em memória),

    que despertou em mim o interesse pelos estudos de literatura comparada.

    Há mais de quarenta anos eu disse que estudar literatura brasileira é estudar literatura comparada, porque a nossa produção foi sempre tão vinculada aos exemplos externos, que insensivelmente os estudiosos efetuavam as suas análises ou elaboravam os seus juízos tomando-os como critérios de validade.

    Antonio Candido (1988)

    Is there, or can there be, an object of knowledge identifiable as comparative literature?

    Haun Saussy (2003)

    I have been struggling with Comparative Literature all my academic life.

    Susan Bassnett (2006)

    PREFÁCIO

    A bibliografia de Literatura Comparada tem crescido no Brasil nos últimos quarenta anos, graças ao interesse dos estudiosos de literatura por este campo de estudos, motivado, entre outros fatores, pela expansão dos programas de pós-graduação nos cursos de Letras em muitas de nossas universidades e pela atuação da Associação Brasileira de Literatura Comparada. Os anos de 1980 constituem um marco para a Literatura Comparada no Brasil, por isso servem, aqui, de referência para uma visão geral de nossa bibliografia comparatista.

    Predominam publicações de livros de teor crítico-interpretativo, com abordagens relacionais entre autores e obras, sobretudo, mas também entre literatura e outras artes, numa perspectiva de leitura mais afunilada, própria de monografias acadêmicas, de dissertações de mestrado e de teses de doutorado. Mais recentemente têm se desenvolvido entre nós estudos relacionais de literatura e outros saberes.

    Nossa produção bibliográfica, dedicada às questões teóricas da literatura comparada, ainda é parca, se a cotejarmos com aquela que se volta para o estudo das relações entre obras concretas. Tal visada é contemplada sobretudo em livros de autoria coletiva, em revistas e em introduções de estudos comparativos mais alentados, como as referidas dissertações de mestrado e teses de doutorado, com poucas realizações de uma única autoria.

    Nesse contexto é bem-vinda a publicação de Estudos de Literatura Comparada, de Gentil de Faria, que vem se dedicando à Literatura Comparada desde os anos de 1980 e que tem acompanhado ativamente o desdobrar deste campo de estudos literários desde então. Autor de trabalhos comparatistas de mais fôlego – como A presença de Oscar Wilde na belle époque brasileira, publicado pela Pannartz em 1988 e Influências inglesas em José Lins do Rego: Thomas Hardy e D.H. Lawrence, inédito, apresentado como tese de livre-docência, em 1989, na UNESP de São José do Rio Preto –, além de incontáveis artigos e ensaios, Gentil de Faria revisita questões clássicas da literatura comparada, no âmbito das relações entre literaturas, como  as de suas relações com outras  artes, outros saberes e outras atividades humanas como o direito, a religião, a política e a mídia eletrônica. Menciona estudos culturais, resvalando apenas na problemática de seus embates com a literatura comparada, porque seu foco é este campo de estudos, ao qual se dedica há quarenta anos. Embora não exclusivamente teórico, pois muitas análises comparativas e relacionais de obras concretas são apresentadas, este livro tem uma considerável visada teórica e histórica da Literatura Comparada.

    Gentil de Faria se assume como um comparatista clássico, para o qual a obra literária constitui um traço constitutivo da Literatura Comparada. Ele não abre mão da noção de literariedade, mas também se mostra com antenas ligadas para as transformações das literaturas e dos saberes, no decorrer deste tempo, disponível para absorver contribuições teóricas e visões que colaboram para a atualização dos estudos comparatistas. Cabe aqui chamar atenção para o título da primeira parte de seu livro O que é Literatura Comparada?, pergunta clássica que consta de todos os manuais de literatura comparada, desde antes de esta disciplina ser cultivada no Brasil, e para o da parte que o encerra: Literatura e mídia eletrônica, numa clara evidência de que o que é mais atual e de ponta no que se refere à literatura em tempos de mídia eletrônica, numa perspectiva relacional, é contemplado por Gentil de Faria.

    Estudos de literatura comparada tem um teor amplo e abrangente, numa exposição clara, límpida, com equilibrados laivos didáticos, de aspectos históricos e teóricos da Literatura Comparada. Alguns dos estudos são mais aprofundados, com um carimbo acadêmico forte; outros, privilegiam a informação, com visível objetivo de expor diretamente o resultado da pesquisa.

    A combinação desses tons diferentes aliada à abordagem cuidadosa dos conceitos veiculados, à preocupação em fundamentar adequadamente as análises das obras brasileiras e estrangeiras, dos discursos jurídicos, religiosos e políticos, em trazer informações relevantes sobre a relação da literatura com outras artes e outros saberes, resulta num livro cujo estilo fluente proporciona com eficácia, aos estudantes de graduação e de pós-graduação em Letras e a todos os que se interessam pela literatura, de modo geral, uma boa compreensão das questões que envolvem este campo de estudos, desde aquelas clássicas até as que são mais atuais. Compreensão imprescindível para se assegurar a qualidade e a pertinência dos trabalhos de Literatura Comparada em nossas universidades.

    São Paulo, 20 de maio de 2019.

    Sandra Nitrini

    Professora titular do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada

    FFCH/USP

    Sumário

    1 - O que é Literatura Comparada? 15

    2 - Origens e evolução histórica 27

    3 - Recepção literária e estética da recepção 45

    4 - Texto e transtextualidade 59

    5 - Influência ou confluências? 69

    6 - Imagens de povos e países 81

    7 - Estudo de temas 95

    8 - Literatura e tradução 135

    9 - Literatura e as outras artes 159

    10 - Literatura e cinema 175

    11 - Literatura e jornalismo 191

    12 - Literatura e direito 223

    13 - Literatura e política 269

    14 - Literatura e religião 297

    15 - Literatura e mídia eletrônica 315

    Índice Remissivo 335

    1

    O que é Literatura Comparada?

    Apesar de constar nos currículos universitários há mais de um século, a disciplina Literatura Comparada ainda não conseguiu o consenso dos especialistas no tocante a sua própria identidade, metodologia e área de atuação. Incontáveis têm sido as tentativas de oferecer um conceito capaz de contentar a difusa e complexa comunidade dos comparatistas. A resposta à recorrente pergunta o que é literatura comparada?, formulada nas variadas línguas, sempre representou um desafio inquietante aos adeptos dessa instigante área de investigação literária. Se passar pela prova do conceito, o atormentado estudioso será questionado em seguida: você compara o quê?. Se ainda estiver mantendo o diálogo com o curioso interlocutor, a questão final poderá levá-lo ao completo desalento: comparar para quê?

    Ezra Pound (1885-1972), no conhecido ensaio How to Read (1928), foi um dos primeiros grandes teóricos a apontar a deformação do ensino de literatura então ministrado nas universidades. A instrução, segundo ele, era enfadonha e ineficiente. Entre os vários defeitos, ele destacou a redundância dos conteúdos programáticos das várias literaturas nacionais, que eram estudadas sempre isoladamente. O que foi visto numa era repetido por outra. As comparações, quando havia, não aferiam o mérito literário dos textos em cotejo. Literatura comparada, concluiu ele, às vezes aparece nos currículos universitários, mas muito poucos sabem o que querem dizer com essa expressão ou a trata com um método determinado e consciente.² Decorrido quase um século, essa crítica ainda permanece extraordinariamente válida nos dias atuais.

    Em outro ensaio, Cavalcanti (1934), no qual elaborou admirável estudo comparado do episódio relatado por Dante Alighieri (Inferno X), Pound volta a condenar os métodos mecanicistas utilizados no ensino universitário do seu tempo, apontando a necessidade de um enfoque menos factual e mais valorativo e intrínseco da obra literária. Segundo ele, o estudo chamado ‘literatura comparada’ foi inventado na Alemanha, mas raramente ou nunca almejou investigar os ‘valores comparados nas letras’

    Procurando oferecer uma contribuição pragmática aos estudos da disciplina em nível de pós-graduação e ressaltando que ninguém teve a imprudência suficiente para publicar esse tipo de programa antes de nós,⁴ os professores de literatura comparada da Rutgers University editaram em 1964 o programa de pós-graduação oferecido por essa renomada instituição universitária. O conteúdo escolhido pelos docentes consistia de uma longa lista de obras e autores mais representativos de cada período literário.

    Os compiladores dividiram o livro em sete partes, obedecendo à ordem cronológica do nascimento dos autores, a saber: 1. Antiguidade, desde a Bíblia e Homero até Plotino; 2. Patrística e Medieval, de Prudêncio a François Villon; 3. Renascença, de Pico della Mirandola a Thomas Carew; 4. Neoclassicismo e Iluminismo, de Descartes a Samuel Johnson; 5. Período pré-romântico e romântico, de Rousseau a Emily Brontë; 6. Período pós-romântico, de Turguêniev a Ungaretti; 7. Estudos gerais, onde consta a indicação bibliográfica de livros teóricos sobre história literária, teoria literária, literatura e artes afins, filosofia, história e estudos sociais.

    Nenhum texto literário publicado após 1918 foi incluído no inventário proposto pelos professores. Assim, grande parte das obras da primeira metade do século 20 ficou de fora. Os autores não explicaram as razões para fazer esse corte drástico no corpus do trabalho, apesar de publicar o trabalho quase meio século depois dessa data aleatoriamente escolhida. Além disso, ressalte-se que toda listagem de leituras recomendadas é sempre passível de crítica ora pela inclusão ora pela exclusão de autores e obras.

    Não suscitou nos organizadores do trabalho a preocupação de justificar o fato de a lista só contemplar autores ocidentais, sobretudo europeus. Machado de Assis, com Memórias Póstumas de Brás Cubas (na tradução Epitaph of a Small Winner) e Camões (The Lusiads) são os únicos autores de língua portuguesa constantes do rol estabelecido. Mesmo assim, ambos comparecem apenas como leitura auxiliar.⁵

    Embora um dos seis compiladores afirme com franqueza que nenhum deles leu todas as obras arroladas ou aprovou todas que havia lido, a iniciativa desses professores teve o mérito de servir como ponto de partida, como eles próprios admitiram, para fixar o elenco das obras canonizadas pela tradição ocidental.

    A dificuldade de conceituar literatura comparada aparece logo no primeiro parágrafo da introdução do livro:

    Provavelmente nenhuma disciplina atualmente oferecida nas universidades do mundo contém mais armadilhas, dificuldades, traições, miragens, ciladas e ilusões do que Literatura Comparada. A coisa em si, o processo ou procedimento ou a disciplina existe desde a existência do conhecimento humano; contudo, por quase um século, estudiosos e críticos têm sido incapazes de chegar a um acordo mesmo sobre uma definição satisfatória.⁶

    Se o conceito de literatura comparada é terreno fértil para acirrados debates, os comparatistas, por outro lado, são unânimes em afirmar que sempre houve a comparação nos estudos literários. A disciplina acadêmica propriamente dita só foi criada no século 19, conforme será visto no próximo capítulo, mas a comparação sempre existiu. Escrevendo em 1914 sobre a Renascença, Ezra Pound dizia que o estudo da literatura comparada recebera esse nome havia cerca de 80 anos, mas sua existência era de pelo menos dois mil anos.⁷

    De fato, o estudo comparado era comum entre os romanos, os quais, fascinados pela cultura grega, procuravam traçar paralelos e contrastes existentes nos escritores das duas civilizações clássicas. Tácito (56-117 d.C.), apenas para citar um exemplo, em Dialogus de oratoribus, mostra, utilizando a técnica da forma dialogada, a decadência da oratória na Roma imperial ao traçar paralelos entre os oradores gregos e romanos.

    A inexistência de uma definição lapidar e incontroversa, que seja aceita pacificamente pela imensa comunidade de estudiosos, não me inibe de adotar um conceito, para o escopo deste livro: literatura comparada é o estudo do fenômeno literário que transcende as fronteiras da nacionalidade e os estreitos limites das grades curriculares. Assim, internacionalidade ou interdisciplinaridade são os traços distintivos do estudo que se pretende realizar sob a égide da disciplina, que, nos dias que correm se transformou numa terra de ninguém ou num imenso guarda-chuva acadêmico ao querer rotular qualquer estudo de literatura como sendo de literatura comparada. Essa concepção adotada aqui resgata as clássicas definições dos mestres do passado e acrescenta os enfoques das inter-relações e interfaces que podem ser estabelecidas também entre literatura e as outras disciplinas. Nesse sentido, não basta apenas a comparação em si mesma, é preciso que ela envolva o estudo entre literaturas nacionais ou entre literatura e suas múltiplas interfaces ou confluências com os outros saberes.

    O comparatista

    Diante de uma disciplina com objetivos tão vastos e possibilidades infinitas de estudos, pergunta-se: Que qualidades o comparatista deve possuir? De imediato, o requisito mais importante é o conhecimento de línguas. Nas grandes universidades americanas e europeias, a exigência dos programas de doutorado é o candidato demonstrar habilidade para ler – reading knowledge – em três idiomas estrangeiros. As universidades brasileiras em geral requerem o conhecimento de duas línguas, além do português. A grande maioria dos candidatos opta por inglês e francês. Obviamente, não basta ser poliglota para se tornar um especialista em literatura comparada. Espera-se também do estudioso a vocação para a pesquisa e o prazer de viajar, sobretudo dentro das bibliotecas ou na tela do computador, pois, mais do que afirmar, generalizar, comparar; é preciso provar, documentar, elaborar sínteses, corrigir e propor novas interpretações.

    O entusiasmo pela pesquisa na busca incessante dos dados, que por vezes pode levar ao desalento, integra-se harmonicamente à personalidade do comparatista – um verdadeiro cidadão do mundo, um espírito cosmopolita e inquieto que se coloca acima dos estreitos limites do nacionalismo. No caso dos estudos interdisciplinares, o comparatista precisa ter, além dos conhecimentos de teoria literária, uma boa formação em outra área, objeto da comparação. Nesse sentido, o estudo comparado que procura relacionar literatura e direito, por exemplo, será mais apropriado e válido se o comparatista tiver certa intimidade com o mundo jurídico. Não se exige, nesse caso, formação acadêmica em direito, mas o domínio de um repertório teórico, que somente será alcançado após leituras da doutrina e da jurisprudência existentes na área jurídica com a qual vai estabelecer as comparações com o texto literário.

    O método

    Teria a Literatura Comparada um método próprio? Essa é mais uma questão incômoda enfrentada pelos comparatistas. De início, a resposta pode parecer bastante óbvia: o método comparativo aplicado aos estudos das relações literárias internacionais ou multidisciplinares. Entretanto a comparação transcende a mera busca de semelhanças, homologias ou afinidades.

    Owen Aldridge (1915-2005) não dá importância a essa questão controvertida e minimiza o debate, afirmando: Devido à vastidão do material e multiplicidade de problemas encontrados em literatura comparada, não existe nenhum método ideal ou modelo para estudo.⁸

    Se não existe um método único, há várias modalidades de estudos sob a égide da disciplina, que não buscam apenas semelhanças e contrastes, mas que procuram estabelecer paralelismos, conforme se infere da palestra inaugural proferida na Universidade de Oxford em 14 de novembro de 1857 pelo poeta e crítico inglês Matthew Arnold (1822-1888), um dos primeiros adeptos da disciplina na Inglaterra:

    [...] em toda parte há conexão, em toda parte há explicação: nenhum fato individual, nenhuma literatura única, é apropriadamente entendido a não ser em relação a outros fatos, a outras literaturas (apud Prawer, p. 12).⁹

    Além de atuar em terreno minado, o comparatista tem que desafiar os preconceitos que se cristalizaram ao longo do tempo a respeito do uso de comparações na atividade crítica.

    Desde o conhecido brocardo latino "omnia comparatio claudicat (toda comparação claudica), passando pelo francês do século 13, comparaison n’est pas raison (comparação não é razão, isto é, comparar não é provar) e comparaciones odiose reputantur (as comparações são odiosas), surgida nos meados do século 15, até o efeito humorístico conseguido por Shakespeare: As comparações são odorosas" (comparisons are odorous ), ao relacionar o som e significado dos vocábulos "odious e odorous", na cena 5, do terceiro Ato, da comédia Muito barulho por coisa nenhuma (Much Ado About Nothing).

    Comparar não é tarefa odiosa, pois ela é uma atividade inerente do raciocínio. As limitações da mente humana se valem dela para estabelecer relações e formular conceitos e valores baseados em paradigmas já vivenciados. Nesse sentido, os estudos de literatura comparada usam com muita frequência a conjunção e, conforme apontou Haun Saussy: "Literatura comparada é em grande parte uma disciplina do tipo e. Ela realiza seus trabalhos na forma de uma cadeia de es: esta relação e aquela relação e aquela relação... – cada um e modificando o sentido daqueles que vieram antes".¹⁰

    O ensino

    Muitos estudiosos afirmam que Literatura Comparada, por sua vasta e complexa abrangência de possibilidades de estudos, não pode ser ensinada satisfatoriamente como disciplina dos currículos universitários. Outros reservam esse privilégio apenas para as universidades possuidoras de grandes bibliotecas. Há ainda os que sugerem que ela seja oferecida apenas nos currículos da pós-graduação, nível em que os alunos demonstram possuir maior capacidade de reflexão crítica e maturidade intelectual. Segundo essa concepção, o aluno de graduação ainda não teria o amplo cabedal de leituras para estabelecer as múltiplas relações entre temas, autores e obras. Essa sólida formação acadêmica, requerida pelos comparatistas do passado, só seria atingida plenamente aos 40 anos de vida. Assim, um jovem que quisesse ganhar o seu sustento com literatura comparada teria que aguardar um tempo enorme para merecer a atenção dos velhos professores.

    Felizmente, esse preconceito pertence ao passado. Hoje, com o advento da era digital, disponibilizando os imensos e preciosos acervos das bibliotecas eletrônicas do mundo inteiro, o estudioso de qualquer idade pode solidificar sua capacitação profissional em tempo mais curto e acessar muitas obras rapidamente sem a necessidade de ter que se deslocar até onde elas se encontram depositadas. Os serviços de mútuo empréstimo entre bibliotecas e a unificação dos catálogos facilitaram bastante a vida do pesquisador que antes consumia muito do seu tempo na incessante busca e organização de dados.

    Sites das principais associações

    Associação internacional http://www.ailc-icla.org

    Com a expansão do ensino da disciplina em diversas universidades, os comparatistas procuraram fundar uma associação internacional que estimulasse a propagação do ensino da disciplina em vários países. Assim, surgiu a Association Internationale de Littérature Comparée (AILC), também designada International Comparative Literature Association (ICLA), na versão inglesa, fundada em Veneza, em setembro de 1955. Por disposição estatutária, a sede da entidade ficou estabelecida em Paris. Atualmente, a AILC-ICLA reúne a participação de mais de trinta associações nacionais de literatura comparada. Seus congressos trienais, realizados em várias partes do mundo, atraem centenas de professores e pesquisadores. O 18º Congresso foi realizado no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, em 2007. O 22º ocorreu em Macau, China, em julho de 2019.

    Com a finalidade de manter informados os comparatistas internacionais sobre as mais recentes pesquisas no âmbito da disciplina, a associação mantém a revista Récherche/Research, com tiragem anual, distribuída aos membros. Para ser membro da AILC/ICLA é necessário que o interessado esteja filiado a uma associação nacional. A inscrição avulsa é permitida quando o país não possui uma associação nacional.

    Brasil – http://www.abralic.org.br

    Em setembro de 1986, dezenas de professores reunidos em Congresso, na cidade de Porto Alegre, resolveram fundar a Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic). Com o decorrer do tempo, ela passou a ser uma das maiores associações no gênero, realizando concorridos congressos. A associação publica a Revista Brasileira de Literatura Comparada. Em 2018, foi lançado o v. 20, n. 34, com artigos sobre Estudos da Tradução.

    Estados Unidos – www.acla.org

    A superativa American Comparative Literature Association foi fundada em 1960, e realiza congressos anualmente em universidades americanas e estrangeiras.

    Canadá – http://complit.ca

    A Canadian Comparative Literature Association (CCLA) foi fundada em 1969, e vem promovendo congressos anuais.

    França – www.vox-poetica.com/sflgc

    A Société Française de Littérature Générale et Comparée (SFLGC), que adotou essa denominação a partir de 1973, foi fundada em 1956 em Bordeaux com o nome Société Nationale Française de Littérature Comparée, que também foi alterado seis anos depois para Société de Littérature Comparée. A partir de 1987, sob a presidência de Pierre Brunel, a Société obteve grande impulso e projeção internacional. A SFLGC realiza congressos anuais, com exceção do ano em que a AILC-ICLA também promove o seu.

    Grã-Bretanha – www.bcla.org

    A Britisth Comparative Literature Association (BCLA) foi fundada em 1975 e, a partir de então, vem realizando congressos trienais.

    Alemanha – www.dgavl.de

    A Deutsche Gesellschaft für Allgemeine und Vergleichende Literaturwissenschaft (DGAVL) foi fundada em Bonn em 1969. Possui cerca de 300 sócios; em sua grande maioria formada por professores alemães, austríacos e suíços. Realiza congressos trienais.

    Itália – www.compalit.it

    A Associazione per gli studi di teoria e storia comparata della letteratura nasceu na universidade de Pisa em outubro de 1993.

    Espanha – www.selgye.com

    A Sociedad Española de Literatura General y Comparada (SELGYC) foi criada em 1977. Conta com cerca de 300 sócios.

    Portugal –

    A Associação Portuguesa de Literatura Comparada (APLC) foi criada em 1987. Em 2011, contava com cerca de 400 sócios. Edita a revista Dedalus, cujo número 21 saiu em 2017.

    Índia – http://clai.in

    A Comparative Literature Association of India (CLAI) foi fundada em 1987. Possui cerca 1.000 sócios. Seus congressos ocorrem a cada dois anos.

    Periódicos on-line

    São inúmeros os periódicos sobre literatura comparada disponíveis na Web. Em geral, eles são produzidos pelas diversas entidades ligadas à disciplina. Entre as principais publicações destacam-se as seguintes:

    Bibliothèque Comparatiste http://www.vox-poetica.com/sflgc/biblio/

    Canadian Review of Comparative Literature/Revue canadienne de littérature comparée – http://complit.ca/

    CLCWeb: Comparative Literature and Culture – https://docs.lib.purdue.edu/clcweb

    Comparative Literature – American Association of Comparative Literature – www.acla.org

    The Comparatist – Southern Comparative Literature Association – http://complit-scla.org

    Comparative Critical Studies – British Comparative Literature Association -www.euppublishing.com

    Dedalus: Revista Portuguesa de Literatura Comparada –

    Inquire: Journal of Comparative Literature – University of Alberta, Canada – http://inquire.streetmag.org/

    Komparatistik: Jahrbuch der Deutschen Gesellschaft für Allgemeine und Vergleichende Literaturwissenschaft – http://complit.univie.ac.at

    Recherche Littéraire/Literary Research – publicação da Associação Internacional de Literatura Comparada – www.ailc-icla.org

    Anuario 1616 – ww.selgyc.com/index.php/es/publicaciones-selgyc/anuario-1616

    Revista Brasileira de Literatura Comparada www.abralic.org.br

    Yearbook of Comparative and General Literature http://www.indiana.edu/~ycgl/

    Notas

    ¹ Essas perguntas me são frequentemente formuladas no Brasil e no exterior. Uma das mais curiosas aconteceu em Londres. Ao passar pela inspeção da alfândega inglesa, um circunspecto funcionário me perguntou ao examinar meu passaporte: Qual é o motivo da viagem, senhor?. Ao que eu respondi: Vim participar de um Congresso de Literatura Comparada. Perplexo, sem entender a resposta, reperguntou: E o que é literatura comparada, senhor?. Tentando aliviar a tensão do momento, respondi ironicamente: Venho procurando essa resposta há muitos anos. Imperturbável, o sisudo agente retrucou, ao carimbar o passaporte: Espero que o senhor a encontre aqui na Inglaterra, e, sorrindo, desejou-me boa sorte nessa difícil missão.

    ² ‘Comparative literature’ sometimes figures in university curricula, but very few people know what they mean by the term, or approach it with a considered conscious method (p. 16).

    ³ The study called ‘comparative literature’ was invented in Germany but has seldom if ever aspired to the study of ‘comparative values in letters’ (p. 192).

    [...] no one else seems to have been foolhardy enough to publish such a syllabus before us (p. v).

    ⁵ Trinta anos após o pioneiro Syllabus organizdo pelos professores de Rutgers, Harold Bloom publica The Western Cânon, com a ambiciosa e imodesta pretensão de fixar o elenco dos 26 autores mais representativos do Ocidente. A controvertida lista, que ele mesmo acha que não é tão arbitrária quanto pode parecer, privilegia os escritores ingleses. Utilizando a concorrência de dois critérios vagos e imprecisos, o da sublimidade (sublimity) e o da natureza representativa (representative nature) dos autores, o influente crítico apresenta sua lista, aqui reproduzida, a fim de que o leitor possa elaborar seu próprio julgamento. O polêmico livro de Bloom ensejou a publicação de inúmeros artigos e de outros livros no mundo inteiro. Eis a lista, agrupada pela nacionalidade dos escritores: Reino Unido (11): Chaucer, Shakespeare, Milton, Wordsworth, Samuel Johnson, Dickens, Beckett, Austen, George Eliot, Woolf e Joyce; França (3): Montaigne, Molière e Proust; Alemanha (2): Goethe e Freud; Itália (1): Dante; Espanha (1): Cervantes; Rússia (1): Tolstói; América hispânica (2): Borges e Neruda; Estados Unidos (2): Whitman e Dickinson; Noruega (1): Ibsen; Checoslováquia (1): Kafka; Portugal (1): Fernando Pessoa.

    Probably no subject currently offered in the universities of the world contains more traps, difficulties, treacheries, mirages, pitfalls and illusions than does Comparative Literature. The thing in itself, the process or procedure or discipline has been existed, yet for almost a century, scholars and critics have been unable to agree even upon a satisfactory definition (p. v).

    The study of ‘comparative literature’ received that label about eighty years ago. It has existed for at least two thousand years (p. 214).

    Because of the vastness of material and multiplicity of problems encountered in comparative literature there exists no ideal method or model for study (p. 5).

    [...] everywhere there is connection, everywhere there is illustration: no single event, no single literature, is adequately comprehended except in relation to other events, to other literatures (p. 12).

    ¹⁰ Comparative literature is largely a discipline of the and type. It does its works best as a chain of ands: this relation and that relation and that relation... – each and modifying the sense of those that came before (p. 338). Além do e o em também é muito empregado, como Shakespeare no Brasil, Goethe en France etc.

    Obras citadas

    Pound, Ezra. Literary Essays. London: Faber and Faber, 1968.

    A Syllabus of Comparative Literature. Compiled by the Faculty of Comparative Literature, The Graduate School, Rutgers University. New York: Scarecrow Press, 1964.

    Prawer, S. S. Comparative Literary Studies: An Introduction. New York: Barnes & Noble, 1975, p. 12.

    Saussy, Haun. Comparative Literature? PMLA 118.2 (2003).

    2

    Origens e evolução histórica

    Os fundamentos teóricos da disciplina ainda hoje suscitam debates, mas é certo que a prática do comparatismo literário existe desde os tempos mais remotos. Na Antiguidade, os romanos, fascinados pela cultura grega, faziam comparações dos seus autores com os gregos, procurando tomá-los por modelos. Tácito, por exemplo, estabeleceu diversos paralelismos, comparando os oradores gregos com os romanos, a oratória com a poesia e a cultura germânica com a romana. Na Idade Média, essas comparações tornaram-se mais frequentes e foram extraordinariamente difundidas após a Renascença com o advento das Grandes Navegações até o final do século 19, período no qual essa modalidade de estudo ganha um nome – Literatura Comparada – e mais tarde, o status de disciplina curricular dos cursos universitários.

    Os pioneiros

    A história da literatura comparada não deve ignorar as contribuições de Anne Louise Germaine Necker, Baronne de Staël-Hostein, mais conhecida por Madame de Staël (1732-1817), sobretudo pelo livro De l´Allemagne¹ (1810), marco inicial dos estudos de imagologia na literatura, e de Goethe (1749-1832), pela célebre concepção de Weltliteratur (literatura mundial), por meio da qual fez a proposta de estudar a literatura fora dos limites nacionais, conforme se lê nas conversações com Eckermann², de 31 de janeiro de 1827:

    Se nós os alemães não olharmos para fora do estreito círculo de nossas próprias cercanias, cairemos facilmente nessa pedante presunção [de estar escrevendo um bom poema]. Por isso, é com prazer que observo as nações estrangeiras, e aconselho a todos que façam o mesmo. A literatura nacional hoje já não significa grande coisa, é chegada a época da literatura mundial, e todos devem trabalhar no sentido de apressá-la (p. 228).

    Madame de Staël e Goethe são, pois, os verdadeiros precursores da disciplina. Não a inventaram, mas já tinham uma visão do fenômeno literário que muito se aproximava do campo de estudos que foi mais tarde denominado Literatura Comparada.

    Alguns teóricos apontam Jean-Jacques Ampère (1800-1864) como o primeiro a falar de literatura comparada. Entretanto esse privilégio pertence a Abel-François Villemain (1790-1870), que, não apenas deu o nome à disciplina, como ministrou uma série de palestras, em 1828-29, na Sorbonne, publicadas mais tarde em quatro volumes com o título Tableau de la littérature française au XVIIIe siècle. Seu objetivo era mostrar o que o espírito francês recebeu das literaturas estrangeiras e o que para elas contribuiu. Em outra publicação, também em dois volumes, ele reuniu mais uma série de palestras à qual deu o nome Tableau de la littérature au Moyen Age en France, en Italie, en Espagne et en Angleterre. No prefácio de nova edição, publicada em 1840, Villemain vangloria-se de ter feito, pela primeira vez numa universidade francesa, um esboço de analyse comparée daquelas literaturas nacionais.

    Embora Villemain já usasse a denominação literatura comparada, a disciplina só entrou efetivamente no mundo acadêmico em 1861, quando o prestigiado crítico italiano Francesco De Sanctis (1817-1883), aproveitando-se de sua condição de ministro da Educação, criou a cadeira Letteratura Comparata, na universidade de Nápoles, para ser ocupada pelo poeta revolucionário alemão Georg Herwegh (1817-1875), que, entretanto, não aceitou o convite. O cargo ficou vago até 1871, data em que o próprio De Sanctis passou a ocupá-lo por cinco anos.

    O exemplo de Nápoles foi seguido por dezenas de outras universidades, como Harvard (1891), Lyon (1897), Colúmbia (1899) e

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