Uma Vida de Papel
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Há muitos anos, li pela primeira vez as obras de Anthony de Mello. Tal como a pequena semente de uma antiga parábola, os seus escritos foram-se desenvolvendo nas profundezas do meu coração, e a semente deu por fim origem a uma jovem, mas robusta, planta. Nos anos que se seguiram, a minha planta recebeu vida e energia das pessoas que fui encontrando, dos livros que fui lendo, das minhas reflexões e de cada coisa que os meus sentidos captavam e mostravam à minha mente e ao meu coração. Um de cada vez, foram nascendo da minha planta alguns frutos, hoje já maduros. O seu sabor um pouco ácido, será desagradável para alguns, mas espero que outros o reconheçam e apreciem. Ofereço-vo-los em respeito do sábio provérbio indiano, segundo o qual: “tudo o que não é dado, é perdido”. No total são seis frutos, seis contos simples e.… prontos a consumir.
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Uma Vida de Papel - Marzia Bosoni
Aos meus filhos, Sara, Simone, David e Francesco.
Ao meu marido Alessandro, e ao Alex.
INTRODUÇÃO
Há muitos anos, li pela primeira vez as obras de Anthony de Mello. Tal como a pequena semente de uma antiga parábola, os seus escritos foram-se desenvolvendo nas profundezas do meu coração, e a semente deu por fim origem a uma jovem, mas robusta, planta. Nos anos que se seguiram, a minha planta recebeu vida e energia das pessoas que fui encontrando, dos livros que fui lendo, das minhas reflexões e de cada coisa que os meus sentidos captavam e mostravam à minha mente e ao meu coração. Um de cada vez, foram nascendo da minha planta alguns frutos, hoje já maduros. O seu sabor um pouco ácido, será desagradável para alguns, mas espero que outros o reconheçam e apreciem. Ofereço-vo-los em respeito do sábio provérbio indiano, segundo o qual: tudo o que não é dado, é perdido
. No total são seis frutos, seis contos simples e.... prontos a consumir.
CAPÍTULO I
Hoje em dia há a New Age, centenas de volumes acerca de anjos, do crescimento espiritual, sobre os caminhos iniciáticos... Uma moda.
Como os centros de Yoga, as proclamadas conversões ao Budismo, a espiritualidade oriental.
E quando passar a moda? Que nutrimento retira a nossa alma de todas estas meditações por entre perfumes de incenso e velas?
Um bem-estar passageiro, um bafo de ar fresco num quarto que permanece fechado. Nós permanecemos fechados. Falamos, trabalhamos, vamos e regressamos, possuímos objectos e temos amigos. E a vida passa-nos ao lado.
Porque não sabemos fazer, dizer e perceber o que é verdadeiro.
Tentamos avidamente possuir a beleza e a sabedoria, mas estas transformam-se em brinquedos vazios e sem sentido nas nossas mãos.
Pegamos numa palavra que cura uma verdade e fazemos dela a nossa Verdade. Com a nossa arrogância apagamos dessa palavra qualquer traço de verdade e depois, presunçosos e prepotentes, damo-la, ou melhor, impomo-la, a outros. Porque aquilo que é verdadeiro para nós deve sê-lo também para os outros. E ninguém é poupado ao nosso zelo evangelista
! Tal como aconteceu durante estes últimos dois mil anos.
Se se tem uma única Verdade, é-se monoteísta.
Se se tem muitas, é-se politeísta.
Se se diz não ter nenhuma Verdade, é-se ateu.
Se não se importa muito com isso, é-se agnóstico.
Temos uma palavra para tudo.
Mas, infelizmente, tudo para nós é apenas uma palavra.
E se, durante um dia, ficássemos sem palavras?
QUANDO O MUNDO FICOU SEM PALAVRAS
A mãe foi a primeira a levantar-se.
Estava-se em Abril; um belo mês de Abril, tépido e perfumado, mas a mãe não tinha tempo para apreciar aquele fantástico céu raiado de cores impossíveis: o pai tinha uma reunião importante na empresa (os crescidos têm sempre muitas reuniões e são sempre todas importantes) e ela tinha de lhe preparar o pequeno-almoço, escrever-lhe um bilhetinho carinhoso para o esconder na pasta dele, depois havia que preparar as roupas dos miúdos, os pequenos-almoços deles e as merendas também... Enfim, era mãe e não tinha tempo a perder.
Ligou o televisor automaticamente e pôs-se a escrever o bilhete. Poucas linhas, sorri, sabendo que o pai o teria achado terrivelmente infantil, e enfiou o bilhete entre os papéis anónimos dele. Ergueu-se para preparar um café e, ao passar em frente ao televisor, apercebeu-se de que não tinha som. Aumentou o volume: nada. Aumentou-o novamente, e um pouco mais ainda, mas aqueles tipos continuavam a mexer os lábios inutilmente.
Um após o outro experimentou os canais todos. Mas foi inútil, estava avariado.
É nessa altura que repara na faixa escrita: Edição Extraordinária do Telejornal.
Ao lado do jornalista com expressão embaraçada e surpresa aparece em sobreimpressão um breve comunicado. O mundo todo estava sem palavras. Literalmente.
A mãe não compreendeu o que pudesse significar aquela estranha mensagem que merecia mesmo uma edição especial aquela hora da manhã. Porém, como se tivesse ouvido os seus pensamentos, o jornalista tentou falar, tocou na garganta e abanou impotente a cabeça. Mas que brincadeira era aquela! Este pensamento foi dito em voz alta, ou, pelo menos, assim julgou a mãe. Porque a sua garganta não emitiu um som. Nem um.
Tentou falar, e depois gritar. Os únicos ruídos eram o murmúrio baixo do televisor e os primeiros trinados dos pássaros. Imediatamente se esqueceu do telejornal e pensou ter ficado muda. Corre a chamar o pai, que acordado bruscamente a puxões e empurrões, não se apercebe que os seus lamentos eram todos silenciosos.
Dez minutos mais tarde quase todos os canais transmitiam mensagens semelhantes ao primeiro, mas, nem a mãe nem o pai lhes prestavam qualquer atenção: debruçados da janela procuravam, a grandes gestos, comunicar a sua estupefacção às pessoas que, não obstante a hora, já tinham saído à rua tentando compreender o que se passava.
A hora seguinte decorre entre mil gestos mais ou menos incompreensíveis, algumas lágrimas de histerismo da mãe e a louca e totalmente inútil tentativa de compreender alguma coisa através da leitura das mensagens televisivas. O mundo, a parte humana dele, tinha perdido a voz. E isso era tudo.
Dentro em pouco começaria a insensata procissão de professores e peritos que, digitando lenta e deselegantemente nos teclados dos enormes écrans colocados às suas costas, conseguiriam ser ainda mais aborrecidos do que teriam sido os habituais discursos.
Mas era tarde! O pai tinha uma reunião.
Descartada a ideia de telefonar para avisar que não estaria presente (mais do que um telefone teria sido necessário um telégrafo) decide pôr-se a caminho porque talvez aquela bizarra magia não tivesse afectado realmente toda a gente e, sendo assim, como justificaria a sua ausência de uma reunião tão importante? (Os crescidos são feitos assim: passam a vida a preocupar-se com o que as pessoas pensariam se por um instante não se comportassem exactamente como exige a sua posição).
A mãe ficou sozinha dominada por um único pensamento: como reagirão as crianças? E não apenas os seus filhos, mas todas as crianças do mundo!
Claro,