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Economia da Confiança: Comunicação, Tecnologia e Vinculação Social
Economia da Confiança: Comunicação, Tecnologia e Vinculação Social
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Economia da Confiança: Comunicação, Tecnologia e Vinculação Social

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Em Economia da confiança: comunicação, tecnologia e vinculação social, o autor analisa um fenômeno contemporâneo que tem recebido diversas denominações: nova economia, economia do compartilhamento ou colaborativa, consumo colaborativo, wikinomia, entre outras.

O livro convida-nos a sair das dicotomias que, não raro, induzem-nos a pensar os fatos como puramente bons ou ruins, quando, na verdade, são construídos, mutáveis e heterogêneos. Isso se revela na obra ao problematizar a economia da confiança para além de uma mera repaginação do capitalismo ou de uma simples estratégia de sustentabilidade, percebendo que essas duas funções podem caminhar juntas.

A economia da confiança não é uma teoria econômica, mas um processo de vinculação social que nos mostra como a noção de economia pode estar próxima da compreensão de comunicação, ao refletir sobre as formas de produzir e consumir bens e serviços por meio das práticas de colaboração e de compartilhamento.

A obra é um relato otimista, mas ao mesmo tempo crítico, sobre as mudanças na constituição e na regulação dos laços sociais e de nossos modos de vida na atualidade.
LanguagePortuguês
Release dateMar 10, 2020
ISBN9788547322557
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    Economia da Confiança - Ramon Bezerra Costa

    Sumário

    1

    A ECONOMIA DA CONFIANÇA

    1.1 DELINEANDO A ECONOMIA DA CONFIANÇA

    1.1.1 Espaços de trabalho

    1.1.2 Dinheiro

    1.1.3 Educação

    1.1.4 Objetos e tarefas

    1.1.5 Transporte

    1.1.6 Alimentação

    1.1.7 Turismo e hospitalidade

    1.2 AFINAL, O QUE É A ECONOMIA DA CONFIANÇA?

    1.3 UM APREÇO PELOS ARRANJOS INSTÁVEIS E HETEROGÊNEOS

    1.3.1 Os processos de vinculação social

    1.3.2 Como estudar arranjos instáveis e heterogêneos?

    2

    A DINÂMICA ENTRE PARES

    2.1 SOBRE A DINÂMICA ENTRE PARES

    2.2 NA TRILHA DOS VÍNCULOS

    2.3 COLABORANDO ENTRE SUJEITOS E FUNÇÕES

    3

    A CONFIANÇA ENTRE DESCONHECIDOS

    3.1 A CONFIANÇA E SEU PAPEL

    3.2 CONSTRUINDO A CONFIANÇA ENTRE DESCONHECIDOS

    3.3 A CONFIANÇA COMO FIGURA EPISTEMOLÓGICA DA

    COMUNICAÇÃO

    4

    A ABUNDÂNCIA DE RECURSOS

    4.1 DAS PREMISSAS ÀS DINÂMICAS

    4.2 DA ESCASSEZ À ABUNDÂNCIA

    4.3 RELAÇÕES ECONÔMICAS ENQUANTO PROCESSOS DE

    VINCULAÇÃO SOCIAL

    UMA APOSTA

    REFERÊNCIAS

    1

    A ECONOMIA DA CONFIANÇA

    É comum observar, especialmente entre as pessoas que vivem em grandes centros urbanos, o acúmulo de objetos desnecessários do ponto de vista da utilização. São aqueles sapatos e roupas comprados em uma liquidação imperdível ou para ir apenas a um casamento. Não obstante os apegados que preferem guardar esses objetos para o dia em que talvez sejam necessários, aqueles que gostariam de se desfazer de alguns desses bens talvez encontrem dificuldades porque moram longe da família e não podem doar para o irmão mais novo ou um primo, não conhecem os vizinhos nem uma organização assistencial que doaria isso aos que necessitam, e não podem trocar ou doar para os colegas de trabalho porque seria uma ofensa oferecer algo usado. Somam-se a esses objetos outros que às vezes são usados apenas alguns minutos ao longo da vida, como martelos, furadeiras e certas escadas. Isso sem contar o carro, que só é usado cerca de três horas por dia (para ir e voltar do trabalho), a casa que fica vazia durante as férias e o quarto dos filhos que cresceram, mudaram-se e talvez repitam esse mesmo ciclo.

    A existência de objetos ociosos pode não ser considerada um problema se lembrarmos de que o sistema econômico a partir do qual se organiza a vida em nossas sociedades tem sido baseado na produção para o consumo de bens que se tornam obsoletos e são substituídos por outros. Nesse sistema, acostumamo-nos a possuir o objeto para ter acesso à função que ele desempenha ou ao status que nos atribui. Contudo algumas mudanças podem estar contribuindo para possíveis alterações nesse cenário.

    Uma delas são as mudanças socioeconômicas das últimas décadas, que têm transformado os modos de produção, de construção de valor e a natureza do trabalho, conforme aparece nos estudos de Michael Hardt e Antonio Negri.²¹ Yochai Benkler,²² professor de Direito na Universidade de Harvard, citando exemplos de diversas áreas, defende como a cooperação entre as pessoas em dinâmicas distribuídas pode ser mais eficiente do que as organizações hierárquicas que percebem os sujeitos movidos por uma racionalidade autointeressada – que tem caracterizado o pensamento econômico majoritário até aqui. O economista norte-americano Jeremy Rifkin²³ defende que estamos na Terceira Revolução Industrial, caracterizada por mudanças profundas nas relações de poder, no funcionamento das empresas, na geração de renda e nos paradigmas energéticos e de transporte, entre outros.²⁴

    Outra mudança que parece significativa são as preocupações ambientais. No final dos anos 1980, ocorreram as primeiras conferências sobre o estado do planeta, as preocupações ecológicas ganharam destaque, assim como os ecocídios e a fome em escala global.²⁵ Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo, ao defender que o mundo requer outros paradigmas econômicos, destaca problemas como: a destruição ou a séria ameaça a 16 dos 24 serviços prestados pelos ecossistemas à sociedade; as chances ínfimas de conter a elevação da temperatura do planeta em dois graus durante o século 21 e os bilhões de pessoas que ainda têm acesso precário a necessidades básicas,²⁶ para nos restringirmos a esses problemas. Embora muitos empresários, governantes e organismos multilaterais apontem como solução ao último problema o aumento no consumo, por meio da oferta de bens e serviços, que criaria empregos e geraria impostos, tal visão choca-se com os limites dos ecossistemas.²⁷

    Há transformações expressivas para esse cenário também se olharmos a partir da criação de tecnologias e na maneira como são usadas. Com o desenvolvimento da microinformática, a criação da internet e a digitalização dos sistemas de comunicação, observamos a possibilidade de se ter acesso a músicas e filmes, por exemplo, sem passar pelo suporte material do CD e/ou do DVD, uma vez que é possível acessar os conteúdos individualmente no celular ou computador, seja alugando ou comprando; sem contar as diversas maneiras de se fazer download gratuito de conteúdos, legais ou não, entre outras formas. A mesma lógica também pode ser observada no acesso a livros. Nesse contexto, é importante lembrar, ainda, a dinâmica entre pares que emerge, possibilitando a conexão entre desconhecidos e formas de organização sem hierarquias tradicionais ou lideranças específicas/evidentes, que têm estado na raiz de experiências como a Wikipédia, os softwares livres e os intercâmbios de conteúdos em sites como o The Pirate Bay e o 4chan,²⁸ a partir do qual surgiu o grupo de ativismo conhecido como Anonymous, que, de desconhecidos que realizam trollagens,²⁹ torna-se uma experiência de ativismo político que contribuiu com a religação da internet no Egito em 2011 e tirou do ar sites de governos e de grandes corporações.³⁰

    As preocupações ambientais, assim como as mudanças socioeconômicas e tecnológicas – que serão retomadas posteriormente –, talvez tenham contribuído para montar um cenário favorável à existência de maneiras outras de se ter acesso a produtos e serviços. Mesmo que muitas pessoas ainda busquem o suporte material do CD, do DVD ou do livro, por gostarem de ver esses objetos na estante ou sentir o cheiro de livro novo, é cada vez mais comum organizar a biblioteca pessoal no kindle, tablet ou mesmo no computador, e guardar as músicas no celular ou nas playlists de aplicativos, deixando-as sempre à mão, mesmo em um dia de festa, pois é possível conectar o aparelho em uma caixa de som e amplificar o áudio sem perder qualidade. Tais comportamentos parecem justificáveis se lembrarmos de que diante da fluidez das relações de trabalho e a frequente mudança de empregos, cidade e moradia, conforme analisou Richard Sennett,³¹ talvez seja melhor reduzir os volumes e os bens.

    Essa tendência de priorização do acesso em detrimento da posse não é uma novidade – tem sido apontada por Rifkin³² desde o início dos anos 2000 – e estamos acostumados a vê-la no acesso a bens imateriais. Porém, quando se trata de bens materiais como casas, veículos e outros objetos, como os citados anteriormente, seria possível também essa mesma mudança?

    Nos anos 1990, observamos o surgimento e a crescente popularização de lojas como eBay³³ e Mercado Livre,³⁴ que funcionam como plataformas para negociações em que qualquer pessoa pode comprar ou vender grande variedade de objetos após o cadastro. Ao longo da última década, essas empresas têm mostrado como é possível comprar objetos de desconhecidos distantes por meio das redes digitais e confiar que o produto chegará conforme o combinado – ainda que em alguns casos isso não se concretize –, configurando essas plataformas como modelos de negócios rentáveis. Contudo essas empresas se restringem às relações de compra e venda de objetos e, atualmente, as transações e a confiança entre estranhos têm ido bem mais longe. Talvez, assim como já se construiu a percepção de que se precisa da música, não do CD, do conteúdo do livro, não do objeto, parece que estamos percebendo também que necessitamos do transporte, não do carro; além de nos incomodar com os bens ociosos que podem, inclusive, tornarem-se rentáveis.

    Foi percebendo essas questões e situações que me deparei, inicialmente, com um fenômeno que tem sido objeto de reflexão em várias áreas: Rachel Botsman e Roo Rogers,³⁵ Lisa Gansky,³⁶ Russell Belk³⁷ e Tapscott e Williams,³⁸ na área de administração, marketing e negócios; Yochai Benkler,³⁹ já citado, que tem pesquisado a relação entre internet e o surgimento de novos modelos econômicos; Michel Bauwens,⁴⁰ pesquisador belga que estuda a relação entre tecnologia, cultura e inovação, focando na produção entre pares; além de Jeremy Rifkin⁴¹ e Ricardo Abramovay⁴² (2012; 2014), também já citados, entre vários outros. Diante da diversidade de enfoques, o fenômeno tem ganhado várias denominações: consumo colaborativo, economia colaborativa, economia peer-to-peer, economia do compartilhamento, wikinomia, entre outras. Porém todas essas terminologias são oriundas do mesmo cenário e mobilizam questões semelhantes, fazendo referência a dinâmicas produtivas e diferentes maneiras de se relacionar e ter acesso a produtos e serviços, por meio do empréstimo, da doação, da troca, do aluguel, em geral a partir de sites ou aplicativos para smartphones.

    Diante desses termos, escolhi me referir ao fenômeno como economia da confiança, não no intuito de criar mais uma terminologia para um cenário já repleto delas, mas com o objetivo de fugir das conotações prévias que o termo colaborativo poderia outorgar e pelo fato de que nenhum dos conceitos existentes parece ter o entendimento suficientemente preciso do fenômeno – na maioria dos casos, possivelmente, porque não houve o interesse em tipificá-los. No item 1.2 justificarei essa escolha e precisarei a compreensão da ideia de economia da confiança que estou propondo.

    O que estou chamando de economia da confiança é um fenômeno muito diverso, tanto do ponto de vista da natureza das relações criadas para se ter acesso aos produtos e serviços e como isso é feito, quanto das áreas e tipos de serviços e produtos que se pode acessar. Diante disso, visando a criar uma ambiência para explicar o fenômeno, irei descrever algumas das experiências que caracterizam a economia da confiança a partir de iniciativas que evidenciam as questões que me parecem centrais nessa forma singular de acessar produtos e serviços. Faço isso como um convite ao leitor para acompanhar a elaboração do entendimento da economia da confiança e suas implicações.

    1.1 DELINEANDO A ECONOMIA DA CONFIANÇA

    O que tenho chamado de economia da confiança diz respeito a práticas muito antigas: o hábito de pegar algo emprestado com um vizinho ou parente, seja dinheiro ou um pouco de açúcar, de pedir caronas, de organizar a chamada vaquinha, dividir o espaço de trabalho com um colega, jantar com alguns amigos e hospedar outros, usar bibliotecas e o transporte coletivo, entre outras práticas. Contudo essas situações, que em sua maioria eram realizadas nos círculos restritos de pessoas que já se conheciam ou coordenadas por uma instância superior, instituída e confiável para regular (como o Estado e seus outorgados, no caso das bibliotecas públicas e do sistema de transporte coletivo), agora passam a ser concretizadas entre completos desconhecidos, requerendo confiança em estranhos e ganhando escala global por meio da internet, configurando, inclusive, novos modelos de negócios.

    A imagem a seguir parece bastante ilustrativa da economia da confiança. No centro estão as formas pelas quais essa dinâmica acontece e nas extremidades as áreas que estou considerando como principais. A intenção, neste item, é apresentar o fenômeno a partir de cada uma das áreas que aparecem nas extremidades da Figura 1.

    EC

    FIGURA 1 – ÁREAS DA ECONOMIA DA CONFIANÇA

    FONTE: o autor

    1.1.1 Espaços de trabalho

    Não é de hoje que profissionais alugam e dividem um espaço de trabalho visando a diminuir os custos. Vale lembrar que essa prática, excetuando-se casos como os de médicos e advogados em suas sociedades, geralmente, é característica dos pequenos profissionais, pois símbolo de sucesso seria ter um escritório em um prédio próprio da empresa e quanto maior, mais alto, maior o sucesso. No entanto, atualmente, os chamados espaços de trabalho compartilhados (ou coworking) parecem funcionar em outra lógica e considerar o sucesso de outra maneira.

    Existem diversos modelos. Alguns são empresas que funcionam de maneira centralizada, no qual o pagamento de uma mensalidade permite acessar os serviços; enquanto outros investem em modelos de gestão horizontais e não visam ao lucro, funcionando como experimentos de dinâmicas produtivas diferentes das usuais. O que esses modelos parecem ter em comum é que os espaços, recursos e custos de um escritório são divididos entre os profissionais com a intenção de reduzir as despesas de manutenção e contribuir para que as pessoas auxiliem umas às outras, aumentando as possibilidades de networking.

    No intuito de facilitar a exposição e longe da tentativa de criar categorias fixas para esses espaços de trabalho, dividi-os em três modelos: os centralizados, as casas abertas e os makerspaces. Vejamos cada um deles.

    O modelo mais comum é o que funciona de maneira centralizada: um proprietário, ou um grupo de sócios, oferece um espaço equipado com as necessidades de um escritório (mesas de trabalho, salas de reunião, telefone, acesso à internet, gerenciamento de correspondências, central de recados, espaço para eventos) e os profissionais interessados pagam por dia/mês/ano para utilizarem todos ou alguns dos serviços (existem vários planos), seja a partir de uma sala privada ou de uma estação de trabalho em um grande salão com outras pessoas. Vale lembrar que mesmo nesses modelos que estou chamando de centralizados há, geralmente, por parte dos que oferecem o serviço, o interesse em criar e manter estratégias de integração entre os profissionais que lá estão. Para isso, esses espaços costumam oferecer cursos e palestras regularmente e muitos possuem serviços de bares, refeitórios, cafeterias, piscinas e outros espaços que possam contribuir com a integração entre os membros, na tentativa de investir em uma forma de vinculação entre os integrantes, diferente da que se teria em uma empresa tradicional.

    Para se ter uma ideia da dimensão desse fenômeno, uma pesquisa realizada em 2017, conhecida como Censo Coworking Brasil,⁴³ traz alguns dados: existem 810 espaços conhecidos no país (um aumento de mais de 100% em relação a 2016); as cidades com mais espaços são: São Paulo (217), Rio de Janeiro (71), Belo Horizonte (47), Curitiba (44), Porto Alegre (36) e Fortaleza (25). Outros dados dessa pesquisa nos ajudam a perceber o funcionamento desses espaços: 31% oferece acesso 24h; 50% tem acessibilidade para cadeirantes; 54% tem espaço ao ar livre; em 21% é possível levar o animal de estimação e em 3% crianças.⁴⁴ Além desses números, vários eventos têm acontecido no mundo para discutir essas formas de trabalho, sites dedicados ao tema foram criados e as notícias sobre novos espaços e/ou seus modelos de negócios são frequentes na mídia.

    Esse formato centralizado de coworking, gerenciado por uma pessoa ou equipe a quem se pode recorrer no caso de algum problema e que busca oferecer soluções rápidas e praticidade para as relações de trabalho, configura um modelo de negócios rentável aos sócios/proprietários em consonância com as dinâmicas de trabalho do capitalismo contemporâneo, que pode ser caracterizado, dentre outras formas, por certa flexibilidade, instabilidade, rapidez e fragmentação, conforme enfatizou Richard Sennett.⁴⁵ O sociólogo acredita, ainda, que essa dinâmica do capitalismo enfraquece os laços sociais duradouros, compromete a vida familiar e acaba com os planos e projetos em longo prazo.⁴⁶ Embora eu concorde com essa caracterização do capitalismo feita por Sennett, se levarmos em consideração o funcionamento desses espaços de trabalho compartilhados, um questionamento parece pertinente.

    Assumindo que as formas de trabalho contemporâneas são marcadas pelo enfraquecimento dos laços duradouros e da contiguidade espacial, nessas experiências de trabalho compartilhado, ainda que não duradouros, poderíamos nos perguntar em que consistem e como se estruturam esses laços que emergem dessa condição laboral, tendo em vista que se tem como meta a promoção da integração entre os membros e a criação de outras dinâmicas de produção. Essa questão dos laços lembra o trabalho de Fabien Granjon⁴⁷ que, a partir de experiências de ação política na internet, observa formas de participação mais flexíveis, caracterizadas por laços frouxos, sem vínculos rígidos, mas que carregam uma potência, isto é, eles podem ser fortes dentro do que se propõe, embora temporários.⁴⁸ Será que, ao invés de tentar mudar o ambiente de trabalho e assumir sua condição fragmentada, corrida, instável, e buscar inventar experiências que, mesmo nesse ambiente, aproximem-se de algo que, na ausência de uma expressão melhor, vou chamar de bem-estar, não seria possível promover outros tipos de vinculação social?

    Por exemplo, o espaço de coworking Casa de Viver,⁴⁹ que funciona em São Paulo, reúne as características de um espaço de trabalho compartilhado, conforme foi descrito, com a possibilidade de se trabalhar perto dos filhos. Enquanto o pai ou a mãe participa de uma reunião ou está fazendo algo em seu computador, seu filho está em outro andar com cuidadoras. Caso se queira ver o filho no meio do expediente, é só dar alguns passos. Há, ainda, espaços para atendimento de saúde e cozinha, seja para guardar a comida trazida de casa ou comprar algo.

    Espaços como a Casa de Viver parecem criar experiências curiosas entre pais, funcionários e filhos, que acontecem em um determinado espaço físico com objetos, de computadores a brinquedos, configurando o cenário da experiência. É um ambiente no qual a função de mãe/pai parece coexistir com a de profissional. É como se houvesse uma confusão, ou junção, entre experiências características da vida privada (família) com a vida pública (profissional).

    Nesse contexto, é importante perceber ainda uma espécie de precarização que parece ser naturalizada, na qual a precarização pode aparecer como fonte de sujeição e exploração. Por exemplo, os pais e mães precisam trabalhar cada vez mais, não raro sem hora exata para terminar, e o tempo de dedicação aos filhos pode ser reduzido. Contudo, ao mesmo tempo em que a naturalização dessas formas de trabalho pode levar a uma espécie de exploração, pode também produzir outro tipo de experiência, como a colaboração e a aproximação entre as pessoas. Não é minha intenção, neste capítulo, responder (ou tentar) essas questões, mas continuar apontando possíveis controvérsias que nos ajudem a perceber o fenômeno. Essa questão da precarização será retomada no quarto capítulo, a partir da relação da empresa Airbnb com seus anfitriões.

    Além dos modelos de espaços de trabalho compartilhados que estou chamando de centralizados, há outros que surgem na tentativa de investir em diferentes paradigmas produtivos. Exemplos disso são as chamadas casas abertas, como a Casa Liberdade, que funcionou em Porto Alegre; a Catete92, que foi sediada no Rio de Janeiro; e a Laboriosa89, em São Paulo. Contudo, no momento em que escrevo este livro, todos esses espaços estão fechados ou alteraram seu modo de funcionamento. Mas isso não retira seu lugar de fenômeno social expressivo, conforme veremos. Para explicar melhor as casas abertas decidi focar na experiência de um desses espaços, por acreditar que essa estratégia seja a mais indicada para expor as questões que considero importantes.

    Oswaldo Oliveira, economista que trabalhou 15 anos no mercado financeiro, estava interessado em testar uma ideia: ao contrário do que entende a tradição econômica, o que existe é abundância de recursos, não escassez, tudo depende da maneira como os recursos são geridos e as pessoas interagem.⁵⁰ Para ele, o padrão organizativo mais distribuído e menos centralizado geraria essa abundância.⁵¹ Diante disso, ele decidiu fazer um experimento. Em maio de 2013, conforme me relatou em entrevista, alugou a parte de cima de um sobrado (com 30 metros quadrados) na Rua Madalena, número 80, no bairro de Vila Madalena, em São Paulo. O imóvel possuía banheiros, cozinha e espaços parecidos com escritórios. O economista tirou cópias das chaves e distribuiu entre conhecidos que, por sua vez, poderiam deixar que outros também fizessem suas cópias. Cada uma dessas pessoas poderia usar o espaço para fazer o que quisesse: trabalhar, cozinhar, encontrar os amigos. Não havia nenhum líder, coordenador ou cargos para organizar a dinâmica na casa. Só existia uma regra: nenhuma ação realizada poderia comprometer a existência da casa. As atividades eram organizadas em uma planilha pública no grupo do Facebook da casa, cada pessoa escrevia o espaço que usaria e quando, para que não houvesse conflito.

    Para pagar o aluguel e as contas do espaço, Oswaldo Oliveira, vendo-se no papel de iniciador do processo, tomou as contas para si, inicialmente, e colocou, em uma planilha pública, também no grupo do Facebook da casa, a especificação de todas as despesas necessárias para bancar o espaço e cada pessoa contribuiria com a quantia que quisesse, mas ninguém era obrigado. Ao todo, eram necessários cerca de seis mil reais para pagar todas as despesas. Embora a arrecadação estivesse, paulatinamente, aumentando, sete meses depois a experiência da Madalena80 (como ficou conhecido o espaço) teve que acabar. O grande número de pessoas circulando na parte de cima do sobrado, a qualquer hora do dia ou da noite, em um bairro residencial, deixou o proprietário do imóvel preocupado com possíveis danos patrimoniais, roubos e acidentes, e ele pediu o espaço de volta.

    Durante cerca de um mês, o experimento ficou sem sede, até que, em janeiro de 2014, conseguiram alugar uma casa maior, com jardim, copa, salão e outras áreas de convivência, totalizando 300 metros quadrados, também na Vila Madalena, mas agora na Rua Laboriosa, 89, como passou a ser conhecida a nova casa. O economista pagou um ano de aluguel adiantado e a arrecadação continuou voluntária, com os custos abertos, como antes, não estando vinculado o uso à contribuição. Mas agora, as contribuições podiam ser feitas de várias formas: dinheiro depositado em uma caixa de acrílico localizada ao lado da porta de entrada, como antes, e doações mensais feitas por meio do cartão de crédito ou boleto bancário.

    O custo mensal da Laboriosa89 também cresceu (totalizava mais de 20 mil reais), juntamente com o número de usuários: o grupo do Facebook possuía mais de sete mil membros. O funcionamento continuava o mesmo, só aumentando o número de empreendedores individuais, projetos e empresas de áreas diversas, desde culinária a consultorias, que utilizavam o espaço baseados na auto-organização para fazer reuniões, ministrar oficinas, dar aulas de yoga, entre outras atividades.

    A porta da Laboriosa89 ficava a maior parte do tempo aberta e a chave sempre ao lado dela, juntamente com os cartões de vários chaveiros da região, para quem quisesse copiar. Qualquer pessoa podia chegar e fazer o que quisesse, desde que respeitasse a regra única de não colocar a casa em risco. Quando Oswaldo Oliveira descreveu-me essas dinâmicas durante a entrevista, pareceu-me muito estranho, mas foi o que pude constatar na primeira vez que visitei a iniciativa: entrei, andei por todo o espaço, sentei e usei meu computador para acessar a internet – a senha estava colada na parede. Algumas pessoas entravam e me cumprimentavam com um sorriso simpático, mesmo eu nunca tendo estado naquele espaço ou as visto antes. Depois de um tempo, encontrei uma pessoa que, a meu pedido, apresentou-me o espaço por ser minha primeira visita.

    Oswaldo Oliveira não obteve ganhos financeiros com essa experiência. Parecia buscar a existência de um espaço sem regras fixas e papeis predeterminados, baseado na confiança, no respeito ao outro e na emergência de um modelo organizativo apoiado em uma espécie de cultura do acesso. Falo em cultura do acesso levando em consideração o fato de que parece existir, em algumas áreas, uma espécie de priorização do acesso em detrimento da propriedade, conforme defende Jeremy Rifkin (2001) ao falar de era do acesso, que diz respeito a um momento no qual a utilização do bem, o que ele proporciona, é mais importante do que a propriedade sobre ele. É importante salientar que falar em era do acesso não significa considerar o surgimento de uma nova sociedade ou de relações que nunca existiram, mas que, atualmente, parece existir um ambiente que favorece essa forma de se relacionar com bens e serviços. Parece uma tentativa de trazer as facilidades de produção e circulação de conteúdos existentes na internet para o mundo físico. Essa perspectiva do acesso é uma das ideias que permite falar em abundância, como detalharei no quarto capítulo.

    É importante notar que funcionar de acordo com outras premissas não significa inexistência de conflitos. Conforme relatou Oswaldo Oliveira, a abundância resolve o problema da escassez, mas gera o problema da abundância; pois em uma organização sem cargos e líderes, na qual cada um faz o que quiser tendo como único filtro para suas ações seu bom senso, é lógico que surgirão vários conflitos, como duas pessoas querendo usar o mesmo espaço simultaneamente. Em situações como essa, relatou o iniciador da Laboriosa89, a tendência das pessoas é voltar à escassez e à centralização: muitos recorriam a ele, zangados, para pedir que resolvesse um problema, mas o economista sempre respondia algo como: sou apenas o iniciador do processo, resolvam-se entre si.

    Iniciativas como a Laboriosa89 permitem a experimentação de processos de vinculação pouco usuais, especialmente entre desconhecidos: acordos não formais, confiar em estranhos, uso compartilhado de espaços e objetos, ausência de regulação externa. Tais experiências talvez convidem os que nela estão a existir ou funcionar de outra maneira, conforme lembrou Oswaldo: Quando você não tem a proteção de um cargo, nem está inserido em uma hierarquia, você passa a ser somente você e a oferecer tudo o que sabe fazer.⁵²

    Em julho de 2015, a Laboriosa89 fechou e em agosto do mesmo ano, outra casa semelhante, no Rio de Janeiro,⁵³ também mudou seu modelo de funcionamento. Como disse anteriormente, no momento da publicação deste livro, nenhuma das casas voltou a funcionar nos moldes aqui descritos. Dentre os motivos que conduziram ao fim da Laboriosa89, talvez o principal tenha sido a saída de Oswaldo Oliveira no início de 2015 – para se dedicar a outros projetos e por acreditar que a rede já estava madura o suficiente para bancar a casa. O proprietário do imóvel, ao comunicar o fechamento, informou que, além das dívidas, outros problemas estavam acontecendo: Displicência no trato com o lixo, falta de iniciativa em repor um galão de água, abandono dos espaços e o arrombamento e saque da caixinha que ficava na cozinha.⁵⁴

    Contudo o fim dessas experiências não parece diminuir a relevância do fenômeno. Ao observar esses espaços, é curioso notar como as pessoas envolvidas tentam garantir a existência das casas o máximo possível, mas sem apego. Uma das declarações de Oswaldo Oliveira indica isso:

    A casa será entregue e a rede continuará a sua manifestação em outros lugares. Alguns já existem e, no tempo deles, morrerão também. Outros não existem ainda, mas nascerão, no seu tempo. E assim a vida segue tendo como única constante a transformação.⁵⁵

    Ele parece partir do pressuposto de que outras casas surgirão e também desaparecerão. Talvez uma das potencialidades dessa experiência de convivência esteja no não apego a sua perpetuação. Tal perspectiva lembra-me o que ficou conhecido como Jornadas de Junho,⁵⁶ quando se observou certa sensação de liberdade e desejo de mudança, ainda que de maneira pontual, talvez até inocente, e sem projeto em longo prazo. As pessoas envolvidas nessas casas têm um incômodo, assim como, suponho, as que foram às ruas em junho de 2013, e criticam, constroem algo (digo isso entendendo que as manifestações em si foram algo), mas não buscam chegar a um lugar específico, talvez pelo fato de não saberem que lugar é esse. A potência dessas experiências pode ser que esteja, exatamente, na expressão de valores que manifestam formas de relação diferentes das que estamos acostumados e que ainda não sabemos como mantê-las no espaço e no tempo e, caso tentássemos, poderíamos cair nos modelos dos quais tentamos sair. São sujeitos que parecem aceitar a permanente impermanência da vida.

    Outro modelo de espaço de trabalho compartilhado são os conhecidos como Makerspace ou Fab Lab: ambientes que funcionam como uma oficina na qual os membros têm acesso a materiais e ferramentas necessárias para a criação de objetos. Em geral, esses espaços possuem cortadores a laser, impressoras 3D, laboratórios de eletrônica, oficina mecânica e dependências para se trabalhar com metal, madeira, têxteis, entre outros recursos. Esses espaços possibilitam a pessoas interessadas em inventar objetos, mas que não têm condições financeiras para pagar por essa estrutura ou espaço para armazenar máquinas grandes, terem acesso às condições de produção. Tais ambientes também permitem e estimulam a interação entre profissionais e amadores para que possam criar juntos. O modo de funcionamento desses espaços é variado: há os que funcionam a partir do pagamento de uma mensalidade prévia (como os coworkings citados anteriormente) e outros que funcionam de maneira semelhante à Laboriosa89.

    Tais espaços de makers ou fazedores (como são conhecidas as pessoas envolvidas nesse modelo de produção) devem ser vistos como parte de um contexto maior, o chamado movimento maker, uma espécie de braço tecnológico da cultura do Faça-Você-Mesmo,⁵⁷ ou seja, não é algo que surgiu agora, mas que ganha outras características a partir do contexto atual, conforme esclarece Chris Anderson:

    O que, exatamente, define o Movimento Maker? A descrição é ampla e abrange grande diversidade de atividades, desde artesanato clássico até eletrônica avançada, muitas das quais estão aí há séculos. Porém, os Makers, pelo menos os de que trata este livro, estão fazendo algo novo. Primeiro, usam ferramentas digitais, projetando em computador e produzindo cada vez mais em máquinas de fabricação pessoais. Segundo, como pertencem à geração Web, compartilham instintivamente suas criações online. Apenas pelo fato de incluírem no processo a cultura e a colaboração pela Web, os Makers conjugam esforços para construir coisas em escala nunca antes vista em termos de FVM [Faça Você Mesmo].⁵⁸

    Chris Anderson⁵⁹ defende que estamos começando uma nova revolução industrial, com uma diferença: agora as máquinas não vêm para ampliar a produção em massa, mas para transferir a possibilidade de criar e produzir para pessoas comuns, fora de grandes empresas proprietárias dos meios de produção. Diante do barateamento e popularização crescente de diversas tecnologias, como cortadores a laser e impressoras 3D, é que Anderson⁶⁰ defende que essas possibilidades de produção devem se espalhar, a exemplo do que aconteceu com o computador pessoal nos anos 1980. Anderson lembra, ainda, que no início da computação pessoal, apenas os interessados em tecnologia tinham um computador em casa e hoje ninguém concebe a vida sem um; assim como no início dos anos 1990 não estava claro para que

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