A História do Blues no Cinema do Século XXI
By Daniel Dória
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A História do Blues no Cinema do Século XXI - Daniel Dória
Editora Appris Ltda.
1ª Edição - Copyright© 2017 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.
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Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
Prefácio
Aqueles que como eu nasceram em meados da década de 1960 vieram a conhecer os blues entre a adolescência e a juventude. Tal descoberta geralmente era feita de segunda mão, por intermédio dos clássicos do rock de língua inglesa que aprendemos a cultuar, muitas vezes seguindo dicas de irmãos e amigos mais velhos.
Todas as bandas clássicas do rock dos anos 1960 gravaram blueseiros antigos dos EUA. Tal fato podia ser facilmente constatado a partir da leitura dos selos dos discos de vinil, onde constavam os nomes das músicas prensadas em cada lado, bem como os nomes de seus autores. Assim, era possível se conhecer indiretamente, por exemplo, compositores de blues de fundamental importância como Robert Johnson (1911-1938), ouvindo o disco Wheels of Fire da banda britânica Cream (1968), que foi relançado no Brasil em 1982 com uma tiragem de mil cópias. Aos 18 anos, tive a grata felicidade de ser um dos que puderam adquirir esse caro álbum duplo de vinil.
Muitos vinis da fase inicial dos Rolling Stones (1962-1965) também estavam cheios de blues de uma diversidade de compositores e intérpretes clássicos do gênero de origem estadunidense, assim como os do The Who e Led Zeppelin. Era evidente a influência dos blues sobre o rock e, como se acabou percebendo pouco tempo depois, sobre o jazz, o funk e praticamente todo e qualquer gênero musical popular relevante desde então.
Mesmo nas músicas lançadas no Brasil por uma variedade de artistas e bandas, percebia-se a influência marcante e incontornável do blues. Em alguns casos, isso se dava de forma sutil e talvez inesperada como em Roberto Carlos e, ainda mais, Chico Buarque. Em outros, era aberta e manifestamente assumida, como no caso de bandas de São Paulo como Made in Brazil, ou cariocas como Barão Vermelho. Em 1988, Cazuza lançou com grande sucesso a música Blues da Piedade
, uma emulação literal do formato clássico do gênero.
Os anos 1990 marcam no Brasil um momento de intensa divulgação dos autores e intérpretes clássicos do blues estadunidense. O relativo barateamento dos CDs permitia até a venda em bancas de jornal de coleções que uniam coletâneas de músicas às biografias dos grandes nomes do blues. Diversos desses artistas vieram ao Brasil, divulgando suas obras em shows e programas de entrevistas de TV.
Para além de sua essência musical, os blues também manifestaram sua influência no Brasil por meio do audiovisual. Diversos filmes feitos para TV e cinema incorporaram os blues, fosse na trilha sonora, fosse em suas tramas. E é a esse aspecto da História do Blues que se dedica o livro de Daniel Dória.
É um fato estabelecido que as representações audiovisuais exercem um poderoso efeito na forma pela qual entendemos e encaramos o mundo. Para a maior parte das pessoas, é por meio do audiovisual que se adquire informação e se interpreta e se entende a realidade na qual vivemos. É do maior interesse, então, colocar-se como problema a maneira pela qual o blues, a história desse gênero musical, seus autores e intérpretes têm sido apresentados a uma variedade de audiências em diferentes formatos audiovisuais.
Vivemos uma época de acentuada perda do sentido histórico e da própria noção da História. A maioria das pessoas não sente a si mesma ou ao tempo em que vive de forma conectada ao passado. O presentismo vigente anula e desconsidera os diferentes e simultâneos processos históricos que construíram o tempo em que vivemos.
O caso brasileiro enfrenta ainda alguns agravantes. O sentido de História e a noção do tempo histórico dependem de aquisição de conteúdo, preferencialmente por meio da leitura. No Brasil, apenas uma minoria de pessoas tem hábito de leitura e condição de aquisição de livros. Dessa forma, a dependência delas para com o audiovisual, para se informar e formar qualquer noção do passado histórico, fica ainda mais acentuada.
Tal é a importância do livro de Daniel Dória, na medida em que coloca como problema de pesquisa a avaliação da capacidade de diferentes filmes em representar e interpretar um tema do passado tão relevante como é a história do blues, seus compositores e intérpretes. Tal problema de pesquisa implicou uma reflexão sobre os limites e as possibilidades da escrita fílmica da História que resultou em um livro que é tanto uma importante contribuição do ponto de vista teórico, quanto um manancial de informações úteis e relevantes para se entender essa parte da história da música.
Tomado em seu conjunto, este livro é uma contribuição oportuna e bem-vinda ao avanço do nosso processo de conhecimento sobre as relações entre cinema e história, bem como sobre o próprio blues. Para aqueles que não são apenas interessados do ponto de vista científico, mas também curtem o gênero, fica minha sugestão de acompanhar a leitura ouvindo os originais das músicas aqui citadas, o que certamente intensificará a experiência de reviver uma parte da História que não é patrimônio apenas da cultura negra estadunidense, mas, de todo mundo.
Boa leitura – e boa audição!
Dennison de Oliveira
Professor titular do departamento de História da UFPR
Curitiba, PR, 20/10/18
Apresentação
Ao adentrar uma sala de aula, deve-se aceitar o pressuposto de que, ao se referir a qualquer contexto histórico – Idade Média, América Colonial, Antigo Egito –, boa parte do instrumental inicial dos alunos foi construído com base em referenciais audiovisuais, desde a ambientação e vestimentas até a forma como os acontecimentos se sucederam e a personalidade e caráter das principais personagens. E isso não se aplica apenas aos jovens. Mesmo entre os adultos, e, dentre estes, tanto os mais esclarecidos quanto os menos interessados também devem muito do que reconhecem acerca do passado a filmes, videogames e similares. O passado, assim, faz-se presente por meio da narrativa audiovisual. Como então deixar de atentar para a forma pela qual esse passado se manifesta, quem e de que maneira o resgata e, por fim, que efeitos em termos de consciência histórica esse produto cultural causa no grande público? Aqui, neste presente trabalho, essa é nossa preocupação: durante o século XXI, assiste-se a uma explosão de filmes que revisitam a história da música negra estadunidense e nos ateremos aqui a três casos em particular, Honeydripper, O brother, where art thou? e Cadillac Records para tentar compreender não a história do gênero musical blues, mas, à luz dela, de que forma ela se faz presente hoje e qual é a sua importância.
Todo historiador deve estar ciente de seu papel social. Produzimos conhecimento respondendo a perguntas do nosso tempo, devendo sempre nos lembrar de onde falamos e para quem falamos. Não condeno de forma alguma aqueles que se debruçam sobre o passado exclusivamente, porém prefiro compreender a presença desse passado no nosso presente, partindo, por exemplo, da categoria explicativa do lugar de memória
, que seria, grosso modo, um fragmento de outro tempo presentificado. Seguindo essa orientação é que esse esforço de pesquisa foi pautado.
Este trabalho teve início em 2010, quando passei a me interessar pelo estudo da História da Música e optei por tomar o blues como ponto de partida. Também foi o ano em que fui apresentado por meu desde então orientador, o Prof. Dr. Dennison de Oliveira, às metodologias inerentes à utilização de fontes audiovisuais para a pesquisa histórica. O estudo vem se desenvolvendo desde então, tendo sido iniciado já em 2011 em minha monografia de conclusão de curso, Sobre blues & Cadillacs, na qual analisei o filme Cadillac Records. Parte do quadro teórico relativo às abordagens metodológicas do trato de fontes fílmicas também foi já apresentado em dois artigos distintos no ano de 2012 em eventos científicos, onde, partindo da ideia aqui defendida da compreensão de filmes históricos enquanto lugares de memória, tal como proposto por William Guynn, defendi a legitimidade da atualização do ofício do historiador por meio de sua adaptação para a linguagem fílmica em lugar de se limitar somente à escrita, não se excluindo mutuamente, é claro.
Aqui dou continuidade às minhas análises para materializar um pouco o que venho propondo, visando a uma possível contribuição teórico-metodológica para a atividade de pesquisa acadêmica relativa aos estudos de História e Audiovisual. O que defendo é que se pensem as fontes audiovisuais de hoje enquanto fontes do presente sobre o passado. Deixando temporariamente a busca pela verdade histórica e pelos acontecimentos, procuro pensar o presente e as formas pelas quais o conhecimento histórico é compreendido e reconhecido. Para tal, defendo também o uso da categoria explicativa da autenticidade
, no sentido daquilo que convence, aquilo que se reconhece enquanto autêntico. Parto da análise fílmica por acreditar que seja uma mídia privilegiada para se entender a questão da consciência histórica pelo grande público, mas não me deterei demasiado nela, frente ao fato de que este é um esforço de pesquisa com objetivos metodológicos dentro dos domínios da História e, mais especificamente, da história do tempo presente. As reflexões acerca da linguagem cinematográfica, dessa forma, serão desenvolvidas à medida que forem necessárias para a compreensão dos códigos narrativos utilizados para a exposição dos conteúdos, não sendo este um trabalho sobre cinema, mas, sobre a presentificação do passado por meio da mídia audiovisual e da possibilidade de se pensar os filmes enquanto lugares de memória, para além de sua dimensão artística e mercadológica. O foco da análise aqui recai sobre os discursos manifestos e sua importância enquanto porta-vozes de algo externo à diegese: o que é o blues