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Literatura, cultura e crítica em periódicos oitocentistas impressos em língua portuguesa
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Ebook289 pages4 hours

Literatura, cultura e crítica em periódicos oitocentistas impressos em língua portuguesa

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Nesta obra, professores e pesquisadores abrem espaço para a reflexão crítica acerca da História da Imprensa Oitocentista de Língua Portuguesa, por intermédio de estudos acerca da literatura, da cultura, da política e da sociedade brasileira do século XIX (XX). Nele, os estudos se cruzam e se articulam, dando visibilidade à atualização de informações referentes a cada um dos temas abordados e a reflexões que nos remetem a avaliação do papel desempenhado pelas publicações periódicas oitocentistas em diversas situações sociais e históricas, e à importância de valorizar e divulgar as pesquisas e incentivar o debate sobre tais temáticas.
LanguagePortuguês
Release dateMay 16, 2020
ISBN9788546219186
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    Literatura, cultura e crítica em periódicos oitocentistas impressos em língua portuguesa - Benedita de Cássia Lima Sant'Anna

    Sant’Anna

    1. O SERTÃO MARANHENSE EM PERIÓDICOS OITOCENTISTAS

    Jessé Gonçalves Cutrim

    Periódicos e publicações em tempos de nacionalidade

    A época imediatamente anterior à independência brasileira foi intensa de viagens e de produções, em geral resultados de relatos de viagem. Diversas viagens foram realizadas em todo território, em especial ao interior. A chegada da Família Real em 1808 foi preponderante nesse processo. Isso ocorreu por dois fatores, primeiro pela abertura dos portos também em 1808 e, segundo, pela criação da Imprensa Régia por D. João VI em 13 de maio do mesmo ano, no Rio de Janeiro. Na viagem para o Brasil, a Família Real trouxe na sua bagagem todo o maquinário para instalação da Imprensa Régia, cuja finalidade se destinava a imprimir documentos, decretos e livros, entre outros. A Imprensa Régia, como imprensa oficial do Governo, mesmo com pouco tempo de vida, e apesar de imprimir conforme os interesses da Coroa, cumpriu seu papel, imprimindo relatos oficiais de viagens. Esses relatos continham essencialmente narrativas de povos e regiões distantes do litoral, dando a conhecer retratos de um Brasil profundo. A imensa maioria dos livros impressos servia para que se conhecessem os lugares mais recônditos, e ao mesmo tempo para tomar lições e montar estratégias de governança.

    Trinta anos mais tarde, em 1838, já no período imperial, foi criado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) no Rio de Janeiro, e logo no ano seguinte começa a publicar a sua revista, a Revista do IHGB, uma das mais longevas publicações especializadas do mundo ocidental, que se mantém até os dias atuais. A criação do IHGB se coaduna com o contexto histórico da época, qual seja, estar em sintonia com o projeto de construção da nacionalidade brasileira. Por essa razão, no dizer de Schwarcz (2019, p. 13), sua finalidade era de construir uma história que elevasse o passado e que fosse patriótica nas suas proposições, trabalhos e argumentos. Afinal de contas, o Império precisaria se firmar como nação grandiloquente. A Revista do IHGB passa a publicar grande parte de relatos de viagens e outros documentos que foram produzidos nos séculos XVIII e XIX, inclusive do período anterior à emancipação política do Brasil. Ademais, nesse projeto de construção de nossa nacionalidade, os documentos históricos eram evidenciados e a literatura se sobressaia contribuindo com uma visão realista e romântica de seus poetas, sobre o Brasil, por meio das correntes literárias do Realismo e do Romantismo.

    No bojo das viagens ao interior do Brasil e de suas produções, quer seja pela Imprensa Régia, quer pela Revista do IHGB, temos as mais importantes narrativas que (re)fundam o sertão do Maranhão: Roteiro do Maranhão a Goiaz pela Capitania do Piauhi (R. IHGB, 1900), de João Pereira Caldas, Roteiro e mapa da viagem de S. Luiz do Maranhão até a corte do Rio de Janeiro (Imprensa Régia, 1810) de Sebastião Gomes da Silva Berford, Roteiro da viagem que fez o Capitão Francisco de Paula Ribeiro às fronteiras da Capitania do Maranhão e a de Goiás no ano de 1815 (R. IHGB, 1870) e Descrição do Território de Pastos Bons nos sertões do Maranhão (R. do IHGB, 1874) ambos de Francisco de Paula Ribeiro.

    O contexto da incipiente nacionalidade e a importância das narrativas

    No século XIX, há dois fatos importantes para acelerar uma mentalidade que viesse enaltecer uma identidade de cunho nacional: a chegada da família real, em 1808, e a Independência em 1822. Povo e nação teriam que ganhar destaque, especialmente após 1822, afinal, a partir de então, o território era um Império, nada melhor que se valer do conhecimento dos seus recursos naturais. Os inúmeros relatos de viagem e outros gerados dali em diante trariam esse conhecimento. Nada como relatos científicos para consolidar um território naquilo que ela tem de melhor. Uma nação se fazia pelos seus incontáveis e abundantes recursos, aliás, a ligação com a terra é uma das características do nacionalismo. Na questão povo, o Romantismo, em evidência no seu momento de efervescência, trazia à cena pelos primeiros românticos brasileiros¹, os indígenas, como referência de povo.

    Com o boom das viagens e viajantes ao Brasil, sobretudo depois de 1808, a descrever e divulgar suas potencialidades pelas suas produções, vai se criar um arcabouço de representações. Carlos Oberacker (2004), num artigo intitulado Viajantes naturalistas e artistas estrangeiros², enfatiza que a data de 1808 pode ser tomada como um marco na história da cultura cientifica do Brasil. Ele também ressalva a importância do papel da vinda de D. João VI e sua administração (1808-1821), em que inaugura-se um verdadeiro ciclo de viagens e expedições científicas, entende que com isso vários especialistas estrangeiros põem seu saber a serviço do conhecimento da flora, da fauna, da geografia, da geologia, da paleontologia e da etnologia dessa porção do Novo Continente (Oberacker, 2004, p. 119).

    Num momento imediatamente anterior à emancipação política e à consolidação da ideia de nação, essas representações corroboram para acentuar os elementos simbólicos da incipiente nação brasileira, como bem define Lima (2004, p. 33): No caso brasileiro, o século XIX marca o momento em que se pensou o país de forma mais ampla, considerando seu passado e as mudanças que então se fazia necessárias. E o mais importante de um modo ou de outro, os registros dos viajantes sobre o Brasil contribuíram para essa construção e (re)invenção do povo e do país (Lima, 2004, p. 33). Certo que o conjunto das representações tem uma perspectiva colonialista, um viés etnocêntrico, mas que também, segundo Batista (2009, p. 300), terá suas repercussões também na literatura nacional em formação. Na primeira metade do século XIX, a identidade nacional foi influenciada fortemente pela ideologia romântica. Com a presença de várias missões estrangeiras no Brasil, diversos viajantes, cientistas e artistas descreveram características do então novo reino. Dois desses viajantes, Auguste de Saint-Hilaire³ e Carl Friedrich von Martius⁴, foram fundamentais por marcarem os índios e a natureza exuberante como elementos mais representativos da identidade brasileira, marcos ideias para a nação. A identidade literária do país caminhava na mesma direção, literatura e nacionalidade se fundiam para expressar a natureza majestosa e o indígena, por meio da poesia, da pintura⁵ e dos textos em prosa. A base era a ideologia romântica, em voga na Europa e que prescrevia que somente o que era nativo podia ser entendido como nacional. Com a iminente independência política, o Brasil passava por um dilema. Quem são os brasileiros? Quem pode representá-los? Nesse quesito, a literatura terá um papel decisivo. Conforme Abaurre et al. (2008, p. 1), Em toda a Europa, o Romantismo foi a tendência estética que dominou a produção artística de boa parte do século XIX. É essa mesma estética que orientará a produção das obras nacionais. Com um detalhe a se observar, nossos autores darão a elas cores locais (Abaurre et al., 2008, p. 1). Naxara (2004, p. 118) vai nessa mesma linha ao relatar que

    de alguma forma procurou-se, no século XIX, caminhos que não ameaçassem a ordem que se queria constituir – a nação brasileira, com identidade própria, emancipada não só política, mas intelectualmente da antiga metrópole.

    Na orientação romântica, o sertanejo passa também por uma valorização, na esteira do regaste de personagens para compor uma dada brasilidade. De acordo com a percepção de Maria Luppi de Oliveira (1998), há duas perspectivas em relação ao sertão, identificadas como sendo a tradição romântica e a realista numa sintonia simbólica do lugar geográfico com o elemento humano. Na perspectiva romântica, o sertanejo aparece como símbolo da nacionalidade pelo seu admirável modo de vida, caracterizado pela destreza e simplicidade. Ou seja, na visão de Oliveira (1998, p. 197), Natureza e organização social se fundem na base deste julgamento positivo, opondo-se à vida degradada e corrompida do litoral, ou seja, das cidades. Já na perspectiva realista, o sertão é visto como um problema para a nação e passa a se opor à urbanidade do litoral. No entanto, sua conquista e colonização são fundamentais para o destino da então jovem nação. A capitania do Maranhão na sua porção ao Sul foi devassada por inúmeros viajantes que constituíram relatos sobre a região, estes que dão conta de um arcabouço de informações, que foram amplamente divulgadas por periódicos do Oitocentos, cuja abrangência se enquadravam na contribuição de referendar uma dada história para o país. O interior da então promissora capitania do Maranhão foi dado a conhecer, em especial, por meio dos relatos de viagem dos militares luso-brasileiros João Pereira Caldas, Sebastião da Silva Berford e Francisco de Paula Ribeiro. Eles, obviamente, não foram os primeiros a descreverem o interior maranhense, no entanto, seus escritos são considerados os mais completos, os mais densos, e que descrevem informações, e trazem subsídios para conformar uma área com especificidade distinta, a região sertaneja maranhense. Os textos de Caldas, Berford e Ribeiro se sobressaem ante os demais por serem considerados fundadores, nos quais seus relatos em forma de roteiros, além de serem documentos pioneiros, apresentam certa identidade e percepções privilegiadas do Sertão Maranhense, que imprimiram várias representações, muitas delas reverberam até hoje. Por essas e por outras razões é que Caldas, Berford e Ribeiro são os escolhidos nesse estudo, sobretudo, porque é a partir dos seus relatos/percepções, via periódicos oitocentistas, que foi inventado simbolicamente o Sertão Maranhense.

    Viajantes e narrativas ao interior da província do Maranhão

    Os relatos de viagem de João Pereira Caldas, Sebastião Gomes da Silva Berford e Francisco de Paula Ribeiro, ainda que oficiais e com destinação à Coroa portuguesa, expressam narrativas ricas de detalhes, criando diversas imagens e aspectos sobre a região sertaneja maranhense, a ponto de essa região passar a receber especificidade digna de ter suas representações históricas, geográficas, cartográficas (inclusive e principalmente) e culturais circunscritas. Os tais relatos recebem ampla significação no século XIX, por serem publicados pela Imprensa Régia e pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Atualmente, esses relatos estão dispostos e disponíveis também em plataforma digital, no Arquivo de Revistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), cujas publicações circulam regularmente desde 1839, agora muito mais popularizadas por serem gratuitas e de fácil acesso. No entanto, com o passar do tempo e da significância da temática, foram impressas edições e reedições que trazem novas percepções e comentários.

    Os textos de Caldas, Berford, Ribeiro e de outros tantos viajantes passaram de documentos manuscritos e foram editados no século XIX, o de Berford na Imprensa Régia e o de Caldas e os de Ribeiro pela instituição considerada a guardiã da memória nacional, o IHGB. Essas publicações ocorrem justamente no momento em que o Brasil passa por clara afirmação, enquanto nação. A publicação e a circulação de relatos e uma sorte de textos era primordial para dar-se a conhecer o país. Para Schwartz (1993, p. 129) o papel do IHGB em publicar relatos e outros textos era o de compor uma história nacional para este vasto país, carente de delimitações não só territoriais. Ou seja, o objetivo era ordenar fatos e eventos dispersos, unificando-os de maneira homogênea, dando a se conhecer nossas singularidades. Esses relatos de viagem mesmo classificados como oficiais são carregados de subjetividades e informações diversas. Os textos de Caldas, Berford e Ribeiro aqui selecionados discorrem sobre os sertões (ou ainda sobre o interior da capitania do Maranhão) entre fins do século XVIII e início do XIX. Nas suas viagens produziram roteiros (manuscritos) que posteriormente resultaram em produção editorial (seja em formato de livro pela Imprensa Régia, como foi o relato de Berford, seja como alínea na Revista do IHGB). Foram viajantes que, com seus roteiros, forneceram dados para conformar uma certa imagem dos sertões maranhenses, cujos ecos ainda se fazem presentes no imaginário sertanejo e maranhense.

    A justificativa para escolha dos tais viajantes e seus relatos de viagem como norteadores desse estudo é que eles retratam o sertão em diferentes momentos. Suas memórias apresentam certa identidade, e percepções privilegiadas, da região sertaneja maranhense. Os seus relatos sobre os sertões imprimiram várias representações, muitas delas reverberando até hoje. Nossa análise ressalta o teor dessas representações e suas amplas dimensões. Busca rever suas percepções, observar suas similitudes e diferenciações. Isto no âmbito de temáticas que dizem respeito à própria concepção de sertão, de seus habitantes, espaço geográfico e estratégias de organização espacial e social.

    Sobre o que dizem essas narrativas

    Caldas, por volta de 1786, percorre um itinerário que vai da cidade de São Luís do Maranhão e adentra a capitania do Piauí, e daí até chegar à capitania do Goiás. Vale registrar que esse itinerário nunca fora usado antes. Berford, nos anos de 1809-1810, constituiu um itinerário partindo da cidade de São Luís até o Rio Manoel Alves Grande, que serve de limite com a então capitania do Goiás (atual Tocantins), na parte noroeste maranhense, depois capitania de Goiás, passando por Minas Gerais e daí até o Rio de Janeiro. Paula Ribeiro, em seu Roteiro da viagem que fez o Capitão Francisco de Paula Ribeiro às fronteiras da Capitania do Maranhão e a de Goiás no ano de 1815, percorre um itinerário que tem como ponto de partida a baía de São José, no litoral maranhense, passa por Caxias, Pastos Bons e chega até São Pedro de Alcântara, nas margens do Rio Tocantins. Já na Descrição do território dos Pastos Bons, nos sertões do Maranhão, no ano de 1819, descreve como um itinerário que abrange a região centro-sul da capitania, a região dos sertões dos Pastos Bons, onde vai inicialmente das cabeceiras do Rio Parnaíba, passando pelo Rio Balsas até o Rio Manoel Alves Grande. Esses são os principais itinerários desses viajantes que, a serviço da Coroa portuguesa ou de aspirações pessoais e/ou profissionais, desbravaram os sertões do Maranhão e acabaram por deixar um legado documental, escrito em forma de relato de viagem. Descreve-se a seguir breve aspectos desses autores sertanistas enfocando nos seus relatos, trajetória e realizações profissionais, e como foram vistos enquanto homens de governo. Começamos com João Pereira Caldas, o primeiro dos três a realizar incursões ao interior maranhense.

    João Pereira Caldas, Roteiro do Maranhão a Goiaz pela Capitania do Piauhi (R. IHGB, 1900)

    Caldas, português, militar, era de nobre família, cujos membros chegaram a ocupar cargos públicos em primeiros escalões governamentais. Ele foi o primeiro governador da capitania do Piauí (no período de 1759-1770) e do estado do Grão-Pará (entre os anos de 1770 a 1780). João Pereira Caldas era filho de Gonçalo Pereira Lobato e Sousa (governador da capitania do Maranhão de 1753 a 1761) e de D. Joana Maria Pereira de Castro. Era neto de João Pereira de Caldas que foi governador da capitania da Moucha (atual Piauí), no último quartel do século XVII. Nasceu em Sende (Cambeses, Portugal), em 1724 e migrou para o Brasil aos dezesseis anos de idade. Chegou a ser ajudante d’armas do general Francisco Xavier de Furtado Mendonça (irmão do Marquês de Pombal), no governo do Grão-Pará. Foi fundador da Casa da Ópera, em Belém do Pará, e principal obreiro da Vila Nova de Mazagão. Foi governador e capitão general das capitanias de Mato Grosso, Cuyabá e Rio Negro (1780-1789). Obteve inúmeras condecorações, sendo agraciado por D. Maria I com o Grau de Capa e Espada. João Pereira Caldas faleceu em Lisboa em 1794.

    Quando da edição do texto de Caldas, Roteiro do Maranhão a Goiaz pela Capitania do Piauhi, pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1900, a partir de manuscrito da Real Academia de Lisboa veio como anônimo. Todavia, Capistrano de Abreu, que divulgou esse texto por partes, no jornal carioca O Patriota, sempre desconfiou da autoria de Caldas. Além de Abreu (1998), outros autores, como Gnerrre (2006) e Pacheco Filho (2011) também comungam o fato de o texto ser de autoria de Caldas. Também me vinculo nesse grupo. Minhas convicções sobre a autoria ser de João Pereira Caldas desse deu-se após a leitura do mesmo. Antes de iniciar seu roteiro propriamente dito, o autor faz uma espécie de preâmbulo, a que chama de Advertências, nele, pode-se observar algumas noções de autorrepresentações como: Não faço nelle expressa mensão de todos os sítios, Montes, Vales, Fontes, Rios e Povoações e

    As léguas com que mostro as distancias, não são Mathemáticas, são as mesmas que contão os habitantes os quais regulam arbitrariamente; e as dividem sempre com algum signal remarcável posto pela natureza. (Caldas, 1900, p. 60)

    Aqui o autor se reconhece não como um viajante naturalista stricto sensu, apesar de não deixar de se valer dos aspectos naturais, visto que Pratt enfatiza:

    Na segunda metade do século XVIII, fosse uma dada expedição primariamente científica ou não, fosse o viajante um cientista ou não, a história natural desempenharia algum papel nela. (Pratt, 1999, p. 59)

    O grande mérito de Caldas em seu roteiro é de demonstrar ter vasto conhecimento da ampla região que vai da capitania do Piauí até o Rio Negro, passando pela capitania do Maranhão e do Goiás. Por ter sido alto funcionário em cargos burocráticos, teve acesso a informações privilegiadas, via ofícios, cartas, memorandos e outros documentos que circularam por entre as autoridades na segunda metade do Setecentos. Ainda nas advertências, comenta sobre a carta geográfica da capitania do Piauí, realizada em 1758, que foi encarregado Henrique Antônio Gallucci. Nela reconhece que o autor não visitou a capitania em todas as suas partes, nem seguiu as diversas direções dos Rios, não he possível deixasse de tomar muitos pontos por uma mera estimativa. Observa ainda que na dita carta há muitas posições erradas, e omissões e mais adiante compreende ele que não deu atenção alguma, visto que sua visita à capitania ocorreu em 1760:

    vista por mim muito de passagem; e nem a pude copiar, para minha instrucção, nem conservar d’ella todas as espécies, que podessem servir, para combinadas com as notícias, que depois ocularmente adquiri. (Caldas, 1900, p. 61)

    Caldas assume como governador do Piauí, e não por coincidência, justamente em 1759. A carta geográfica, realizada um ano antes de assumir de fato o Piauí, não bate com o que conheceu, ainda que preliminarmente dois anos depois. Dificilmente outro viajante no período viesse a ter tamanho tirocínio sobre um território que não conhecesse a fundo.

    João Pereira Caldas exerce grande habilidade no trato com os gentios. Ele chega a ser considerado, entre os viajantes militares, aquele que mais preocupação teve sobre a questão da permanência dos indígenas em áreas do sertão, e exigiu cuidados por parte dos governantes para com esta questão. Roteiro do Maranhão ao Goiás pela Província do Piauí é considerado, por muitos, um completo estudo sobre a administração colonial e evoca as muitas necessidades de enquadrar as áreas sertanejas numa integração entre litoral e interior. Em notas ao roteiro propõe hum novo estabelecimento de Povoação, que se comunique pelo interior do Paiz, do Rio Parnaíba da Capitania do Maranhão ao Rio Tocantins da Capitania do Pará. A ideia com isso é ter como projeto interessante à redução de Nações silvestres a Povoação e cultura das referidas capitanias (Caldas, 1900, p. 86). Nas várias considerações que Caldas concebe sobre a capitania do Piauí ou sobre a capitania do Maranhão, um aspecto importante é perceptível: ele sempre se reporta ao desenvolvimento ou a benefício do país como um todo. Perpassa, assim, com suas estratégias, uma visão para além do regional. Pereira Caldas delineia um território sertanejo em que se sobressaem questões fundamentais acerca da paisagem e de seus habitantes. Apresenta e antecipa temas variados, como a circunscrição da Freguesia de Pastos Bons, demonstra ter conhecimento da existência e noção da localização do Rio Tocantins, enumera as tribos existentes na região Sul do Maranhão e descreve a função e o papel das fazendas de gado e do seu principal elemento, o vaqueiro. Assim, por tudo isso e muito mais, o roteiro de Caldas nos revela fonte primorosa e precursora para a invenção da região sertaneja maranhense nas últimas décadas do século XVIII.

    A partir de agora iremos dissertar sobre Sebastião Gomes da Silva Berford, falaremos um pouco sobre os aspectos de sua viagem, o formato de seu roteiro e de sua biografia.

    Sebastião Gomes da Silva Berford, Roteiro e mapa da viagem de S. Luiz do Maranhão até a corte do Rio de Janeiro (Imprensa Régia, 1810)

    Berford foi militar e político luso-brasileiro que prestou serviços à coroa portuguesa. Conforme Coutinho⁶ (2008, p. 13-16), ele nasceu na fazenda Kelru, freguesia de Nossa Senhora do Rosário em 1780. Berford inicia seus estudos acadêmicos aos dezoito anos em Ciências Matemáticas e Geografia por Coimbra, Portugal. Chegou a estudar Direito (mas não concluiu o curso). De família nobre, ocupam

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