"Nostalgia" do passado: Uma chave de leitura do islã, hoje
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epígrafe "longing for home", do livro de Svetlana Boym, e do conceito de nostalgia por ele
suscitado, assim como através do referenciamento ao impacto do islã como religião, o que é
subentendido pelas ideias de "regresso" e "casa" por muçulmanos e, de modo mais amplo, pelo
que se costuma qualificar como "islâmico".
Por meio desse prisma, "‹Nostalgia› do passado: chave de leitura do islã, hoje?" busca assim
analisar "fenômenos que caracterizam a crise do mundo islâmico contemporâneo, na tentativa
de localizar as problemáticas identitárias que se encontram na raiz dos mesmos, ou as suas
possíveis consequências".
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Book preview
"Nostalgia" do passado - Biancamaria Scarcia Amoretti
Dîwân
Longing for home
No começo de seu livro, The Future of Nostalgia, Svetlana Boym delineia brevemente, mas de forma eficaz, o percurso conceptual que leva à sua aplicação da «nostalgia» como categoria epistemológica a uma série de fenômenos e de realidades modernas. Fá-lo colocando em epígrafe o «longing for home», «o desejo de regresso, a saudade de casa», ou seja, um «sentir» cuja significação parece imediata e não de compreensão ambígua. A autora problematiza esse elemento através de um exemplo, à primeira vista paradigmático, de «nostalgia»: o olhar da mulher de Ló sobre a cidade de Sodoma em chamas. Ele expressa decerto o desejo individual do regresso e, ao mesmo tempo, reflete a culpa que levou à perda da cidade, mas aqui – parafraseando o pensamento de Svetlana – não se trata de «nostalgia», se o termo designar uma categoria «moderna» do sentir e do conceber o presente de uma maneira perspéctica e, simultaneamente, como resultado de eventos, mais ou menos marcantes, dignos de se tornarem objeto plausível de «nostalgia».
Glosar, por assim dizer, precisamente a expressão «longing for home» parece-me um ponto de partida ideal para tentar compreender alguns fenômenos que caracterizam a crise do mundo islâmico contemporâneo, na tentativa de localizar as problemáticas identitárias que se encontram na raiz deles, ou as suas possíveis consequências. Se essa é a perspectiva de fundo, o objetivo que me proponho é contudo limitado. Trata-se, de alguma forma, de experimentar os possíveis resultados de uma análise que, pelo prisma da «nostalgia» e como referência, ora mais ora menos direta, ao impacto do islã como religião, faça emergir o que pressupõem «longing» e «home»: em primeiro lugar para os muçulmanos, e mais em geral para aquilo que se qualifica como «islâmico». A esse respeito é indispensável um esclarecimento, sobretudo ao tencionar fornecer, como se disse, sugestões para uma chave de leitura de problemas da atualidade, tais como a imigração nos países ocidentais desde países justamente «islâmicos» (não porque todos pretendam ser «Estados islâmicos», mas apenas porque o islã é a religião da maior parte dessa população) e os difíceis, quando não desastrosos, processos de integração em ato e, de forma especular, algumas possíveis razões do «quietismo» atual dos muçulmanos «normais», ou seja não fundamentalistas. Quietismo que parecia irreversível até a eclosão das chamadas «primaveras árabes» (2011), de que é difícil, neste momento, fazer uma leitura adequada.
Como se vê, é preciso entender-se acerca do que significa «islâmico». A maneira mais simples de o fazer é retomar o trabalho organizado por Kathryn Babayan e A. Najmabadi, Islamicate Sexualities: Translations across Temporal Geographies of Desire, que, mesmo abordando temas específicos, explicita à parte o horizonte em que ocorrem as manifestações analisadas, em particular as da sexualidade: horizonte que vale perfeitamente também no nosso caso. O trabalho em questão é em inglês. Isso deve ser levado em conta, mas não invalida e não limita, pelo menos desta vez, o alcance da minha especificação, que parte do pressuposto de que em inglês o termo «islamic» é mistificador e deverá ser substituído por um neologismo: «islamicate», como propôs um islamista consagrado, M. G. S. Hodgson, nos anos 1970. É um termo que provavelmente não será necessário traduzir em português, por exemplo por «islamizado», se assumirmos que existe uma diferença conceptual entre «islâmico» e «muçulmano» e portanto que «islâmico/islamizado/islamizante» indica sempre «a complex of attitudes and practices that pertain to cultures and societies that live by various versions of the religion Islam», e, ainda mais, no sentido de que «Islamicate […] was conceived as parallel to the term Italianate, which refers not only to what is historically understood as Italian but all that is associated with Italian styles and modes of cultural expression […]». E isso tendo como objetivo contestar a ideia, dominante na Europa do século XIX e até a segunda metade do XX, que distinguia «the world’s cultures in part on the basis of religious denomination». Uma atitude que tem reemergido prepotentemente nos últimos vinte anos. A especificação em causa serve para relembrar que o qualificativo «islâmico» postula sempre uma pluralidade de sujeitos – muçulmanos e não muçulmanos – que vivem em contextos