O princípio Nemo Tenetur se detegere : análise na legislação brasileira e direito comparado
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O princípio Nemo Tenetur se detegere - Karla Cuellar
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO SOCIOLOGIA DO DIREITO
APRESENTAÇÃO
A Lei brasileira n.º 11.275/06 desconsiderou a necessidade de constatação de 6 decigramas de álcool por litro de sangue para configuração do crime tipificado no art. 306 e na infração administrativa do art. 165, conforme Resolução Contran n.º 206/06.
Entretanto ainda há grande polêmica legislativa na seara penal quanto ao uso do bafômetro, pela ideia de que tal procedimento é uma violação ao direito de defesa do indivíduo, ao produzir uma prova contra si mesmo. Por isso, a condução dessas questões exige dos operadores de Direito extrema habilidade, especialmente no tocante à possibilidade de inconstitucionalidade da Lei n.º 11.705/2008 bem como da Lei n.º 12760/2012.
A Lei n.º 13.103/2015 trata da instituição de um novo regime jurídico para os caminhoneiros, com normas que visam regulamentar a profissão, com medidas preventivas para a melhoria da qualidade de vida desses trabalhadores, de modo a evitar acidentes nas estradas.
Observa-se a necessidade de maior rigor nas leis de trânsito, tendo-se em vista os números alarmantes das ocorrências decorrentes de embriaguez ao volante, perfazendo inúmeras vítimas com lesões graves e mortes.
Também são necessárias medidas diversas visando tornar a prevenção de acidentes de trânsito mais efetiva, dentre as quais se encontra a educação para o trânsito. É preciso que haja uma formação ética dos cidadãos, visando à proteção dos interesses da coletividade, o que, basicamente, começa na família e na escola.
LISTA DE SIGLAS
Sumário
1
INTRODUÇÃO 13
2
RECOMPILAÇÃO NORMATIVA SOBRE O ASSUNTO/ TEMA 23
3
Normas sancionadas NA RepÚblica Brasileira sobre o tema 37
3.1 SÍNTESE DAS EXPOSIÇÕES, CONCLUSÕES E ESTATÍSTICAS 41
3.2 Pesquisa de dados estatísticos sobre o assunto 43
3.3 Entrevistas com especialistas e responsáveis para confrontar a posição do entrevistado a respeito do resultado do ponto anterior 50
4
DIREITO DE TRÂNSITO E A LEI SECA 55
4.1 Trânsito: Definição e elementos 59
4.2 Legislação de Trânsito 61
4.3 Código de Trânsito Brasileiro – CTB 62
4.3.1 Composição e Competências 63
4.4 ALTERAÇÕES EM PARTE DO ARTIGO 306 DECORRENTES DA NOVA LEI SECA (LEIS N.12760/2012, 12.971/2014, 13.103/2015 E RESOLUÇÃO Contran 432/2013) 67
4.5 POLÍTICAS DO CONSUMO DO ÁLCOOL POR MOTORISTAS EM DIVERSOS PAÍSES 70
4.6 Educação para o trÂnsito 84
4.6.1 Ética e respeito às normas de trânsito 85
5
A PROBLEMÁTICA DA LEI SECA NOS DIAS ATUAIS 91
5.1 Mudanças na Lei Seca e discussões doutrinárias 91
5.2 Inovações da Lei Seca 100
6
ACIDENTES DE TRÂNSITO 105
6.1 Histórico 105
7
O DIREITO DE NÃO PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO E SEUS EFEITOS NO PROCESSO PENAL 111
7.1 Notas históricas sobre o princípio nemo tenetur se detegere 113
7.2 Antiguidade 114
7.3 Civilizações clássicas 115
7.4 Idade Média 115
7.5 Idade Moderna e Idade Contemporânea 116
7.6 Diplomas internacionais 119
7.7 Desenvolvimento histórico do princípio nemo tenetur se detegere no direito anglo-americano 121
7.7.1 Na Inglaterra 122
7.7.2 Nas cortes de common law
125
7.7.3 Nos Estados Unidos 127
7.7.4 Desenvolvimento do privilege against self-incrimination, na Inglaterra e nos Estados Unidos, no século XIX 130
a) Na Inglaterra 130
b) Nos Estados Unidos 133
7.7.5 Na Argentina e no Chile 134
8
O princípio nemo tenetur se detegere
na contemporaneidade 145
8.1 O princípio nemo tenetur se detegere em face da ordem constitucional brasileira 146
8.2 O princípio nemo tenetur se detegere como direito fundamental 147
9
Direitos fundamentais, direitos humanos, liberdades públicas 151
9.1 Direitos Fundamentais 151
9.2 Direitos Humanos 154
9.3 Liberdades Públicas 156
10
Instrução e juízo em relação ao princípio inquisitivo e acusatório na Argentina 159
10.1 Princípios do sistema acusatório argentino 161
10.2 O sistema inquisitivo 163
10.3 O sistema misto: Inquisitivo e acusatório 166
10.4 Fundamentos constitucionais do processo e as garantias constitucionais 168
10.5 O acusatório como fundamento de um sistema processual de garantias 170
11
CONCLUSÃO 171
12
REFERÊNCIAS 175
ANEXO I
JURISPRUDÊNCIA 185
ANEXO II
TABELA COMPARATIVA DE ALTERAÇÕES DO CTB - ARTS 165 E 306, CTB 1997 A 2015 201
ANEXO III
Resolução Contran N.º 432 DE 23/01/2013 209
ANEXO IV
TABELA DE VALORES REFERENCIAIS PARA ETILÔMETRO 217
ANEXO V
SINAIS DE ALTERAÇÃO DA CAPACIDADE PSICOMOTORA 219
1
INTRODUÇÃO
Com o advento da Lei n. º 11.275/06 tornou-se desnecessária a constatação de 6 decigramas de álcool por litro de sangue para configuração do crime tipificado no art. 306 e na infração administrativa do art. 165, conforme Resolução Contran 206/06.
Reforçando essa medida, em 20.12.2012, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei n.º 12.760/2012, que tornou mais rígidas as punições para quem dirige embriagado, ao estabelecer que, mesmo que o motorista se recuse a realizar o teste do bafômetro, a fiscalização será baseada em outros indícios de consumo (relatos, testemunhas, vídeos e outras provas lícitas). Desse modo, a constatação de mais de 6 dg/L (decigramas por litro) de álcool no sangue tornou-se apenas uma das formas de se comprovar a embriaguez, passando a ser crime a condução de veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência
. Porém tal medida tem sido considerada muito subjetiva, uma vez que, mediante a recusa do condutor à realização do teste, o policial deverá identificar outros indícios do consumo de bebidas alcoólicas.
Em 2013 houve mais uma mudança visando aprimorar a Lei Seca, por meio da Resolução 432/2013 (Contran), caracterizada como de tolerância zero
, que estabelece que, se o condutor realizar o teste do bafômetro e o resultado for de 0.05mg/l até 0.33mg/l, a autoridade aplicará a penalidade administrativa prevista no artigo 165 do CTB (multa, recolhimento da carteira de habilitação e a retenção do veículo). Além disso, o condutor terá o seu direito de dirigir suspenso por um ano.
Em conformidade ao previsto no artigo 306 do CTB, mediante o resultado do teste igual ou superior a 0.34mg/l o condutor incorrerá em crime de trânsito, com pena de detenção de seis meses a três anos, cumuladas com a aplicação das penalidades administrativas.
Mas, no entanto, se o motorista estiver com sinais visíveis de embriaguez – como odor de álcool no hálito, olhos avermelhados, dificuldade de equilíbrio, fala alterada, entre outros – e recusar-se a soprar o bafômetro ou a submeter-se a qualquer outro exame, ele, ainda assim, poderá ser conduzido à delegacia e sofrer as sanções pertinentes com base em prova testemunhal, e/ou em filmagens ou fotografias.
Seja qual for a quantidade de álcool constatada no exame de sangue, isso já configura já torna o condutor passível das penalidades administrativas; todavia para caracterizar o crime previsto no artigo 306 do CTB a quantidade mínima necessária continua a mesma, ou seja, 6 decigramas de álcool por litro de sangue (dg/l).
Nesse sentido, surge uma discussão entre a doutrina e a jurisprudência, quanto a possível violação constitucional do texto legal, em relação ao direito do acusado em não produzir provas contra si mesmo, cujo fundamento encontra-se no princípio nemo tenetur se detegere.
Ressalte-se que, em audiência pública sobre a Lei Seca, realizada no Supremo Tribunal Federal (STF), em 13 e 14 de maio/2012, a maioria dos especialistas, parlamentares e pesquisadores consultados pelo Tribunal posicionou-se favorável à manutenção dessa premissa.¹
Nesse diapasão, o próprio relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4103 – o ministro Luiz Fux –, expressou-se favorável à obrigatoriedade do bafômetro, justificando que:
Ficou bastante claro que é absolutamente impossível esse binômio álcool e condução de veículo. Ficou também patente que não há critério seguro de alcoolemia e, em terceiro lugar, que é importantíssimo que o teste de bafômetro deve ser obrigatório sob pena de se cometer uma desobediência, porque ele tem caráter preventivo muito importante. (PARREIRA, 2012, p. 1)
Em 1º de novembro de 2014 entrou em vigor a Lei n.º 12.971/2014, que altera no texto da Lei n.º 9503/97 (Código de Trânsito Brasileiro – CTB), que estipulou multas mais altas para as infrações de trânsito e maior rigor nos casos de crimes de trânsito. Assim, a partir dessa data, a punição administrativa para quem dirige sob efeito de álcool, por exemplo, passou de R$ 957,70 para R$ 1.915,40, podendo este valor ser dobrado no caso de reincidência em período de até um ano. Há também a previsão de suspensão do direito de dirigir por um ano e retenção do veículo.
Embora previsto em lei que o trânsito seguro é um direito de todos e dever das autoridades de trânsito, existem pessoas que insistem na ingestão de bebidas alcoólicas antes de dirigir veículo automotor, ameaçando a integridade física de tantos outros, muitas vezes provocando acidentes, que acabam ceifando vidas ou deixando muitos mutilados.
Entretanto prevalece grande celeuma legislativa na seara penal, exigindo dos operadores de Direito extrema habilidade na condução dessas questões, especialmente no tocante a possibilidade de inconstitucionalidade da Lei 11.705/2008 e da Lei Seca – n. 12760/2012, bem como da Lei n.º 12.971/2014.
O fato é que a legislação brasileira estabelece, no rol dos direitos e garantias fundamentais, premissas tais como: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória
(art. 5º, LVII, CF); o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogados
(art. 5º, LXIII, CF), dentre outras que indicam o respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana como valores norteadores dos textos legais.
Em consonância a tais princípios e garantias individuais essenciais, há também a previsão de "que ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere)". Essa garantia foi asseverada e ratificada diversas vezes pelo Supremo Tribunal Federal, sendo aplicável às diversas esferas do Direito. (NUCCI, 2010)
A doutrina e a jurisprudência foram praticamente unânimes em apontar a inviabilidade da obrigação instituída em lei, que levaria o motorista a, necessariamente, soprar o bafômetro ou a se submeter a outros exames invasores, tais como a coleta forçada de sangue. Dessa maneira, estaria forçando o indivíduo a produzir prova contra si mesmo, pois, sendo dada a ordem pelo agente do Estado para que sopre o bafômetro, e isso não seja realizado, poderia ser o motorista autuado pelo crime de desobediência.
A fim de contornar-se essa posição, dentro dos limites da constitucionalidade, editou-se a Lei n. 11.275/06, alterando-se a redação do art. 277:
Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo Contran, permitam certificar seu estado.
No § 2º, inseriu-se:
No caso de recusa do condutor à realização dos testes, exames e da perícia previstos no caput deste artigo, a infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas pelo agente de trânsito acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor, resultantes do consumo de álcool ou entorpecentes, apresentados pelo condutor.
Dessa maneira, não havendo referência ao nível de 6 decigramas de álcool por litro de sangue, se atingiu o correto patamar constitucional para a discussão do tema.
Entretanto a situação é grave, pois a maioria dos cidadãos não conhece os próprios direitos. Ao soprar o bafômetro, se ingeriu alguma bebida, tal ato servirá de prova (contra si mesmo), que pode levá-lo ao cárcere. O problema é que se o nível apontado for igual ou superior a 6 decigramas por litro de sangue, de uma só vez, pode correr o risco de perder a carteira de habilitação, por doze meses, ter que pagar uma multa elevada e, ainda, sofrer um processo criminal de difícil defesa, mediante a prova pericial da embriaguez.
Para corrigir a lacuna da lei referente aos delitos cometidos no trânsito e que envolvam embriaguez foi criada a Lei n.º 12.760/2012 que alterou o Código de Trânsito Brasileiro – Lei n.º 9.503/1997 –, especificamente os artigos 165, 262, 276, 277 e 306, que serão tratados especificamente nesta obra.
Essa lei teve como finalidade reduzir a incidência e/ou minimizar os efeitos dos acidentes automobilísticos, uma vez que o uso de substâncias psicoativas, como o álcool, tem grande participação nesses tipos de ocorrências. Com uma legislação mais específica, também se corrige uma lacuna deixada pelo legislador pretérito, que equivocadamente criou o tipo penal referente à embriaguez ao volante, deixando muitos casos de embriaguez no trânsito sem solução, gerando grande sensação de impunidade entre a população.
Salienta-se que a referida lei foi publicada e de imediato teve eficácia plena, sem previsão de qualquer período de vacatio legis, possivelmente devido a época em que foi publicada (final do ano), visando conter os abusos que geralmente ocorrem nesse período.
Assim, por um lado, tem-se a preocupação do legislador em conter os abusos cometidos por motoristas, muitas vezes reincidentes, que insistem em beber e dirigir, colocando em risco a sua vida e a de terceiros. Por outro lado, infringe-se o direito do cidadão de não produzir prova contra si mesmo, sendo essas duas temáticas que geram bastante polêmica.
Portanto esta obra discorre sobre os diversos aspectos que envolvem a ingestão do álcool por condutores de veículos automotores, apresentando o cenário em diversos países, porém enfatizando-se a legislação brasileira e também a argentina nesse contexto.
Em relação aos objetivos gerais, pretende-se:
Efetuar um comparativo entre as Leis n. 11.705 de 19.06.2008, 12.760 de 22/12/2012 e 13.281/2016, e apresentar as principais inovações da Lei Seca, especialmente no tocante a produção de provas relativas à embriaguez ao volante.
Quanto aos objetivos específicos, a ideia é abordar as seguintes questões:
Discutir a obrigatoriedade de realizar o teste do bafômetro, mediante os princípios constitucionais que asseguram o direito de defesa do réu, inclusive em não produzir provas contra si mesmo; por meio do contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes
(art. 5º, LV, CF).
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