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A morte tudo resolve
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A morte tudo resolve

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A morte tudo resolve

Existem certos segredos que nunca podem ser revelados. Da mesma maneira, há contratos que provocam violência, testamentos que abalam famílias, bancos que guardam cofres que não deveriam ser abertos jamais. Neste intrincado thriller policial, Dr. Thomas, um esforçado advogado em começo de carreira, protagoniza uma trama que irá mudar sua vida para sempre.


Este é o primeiro romance do advogado Luiz Kignel, especializado em sucessões familiares. Autor de quatro livros jurídicos, Kignel estreia agora com um suspense de tirar o fôlego. Com narrativa envolvente, o autor coloca o Dr. Thomas no centro de um redemoinho de acontecimentos que a personagem não consegue controlar e que o leva a situações cada vez mais estranhas.


Um testamento é aberto. Seu conteúdo: a chave para um cofre ao qual ninguém tem acesso. A partir daí, a história de mistério ambientada em São Paulo se desenvolve. A trama se passa em ruas, casas, prédios e restaurantes conhecidos dos paulistanos – lugares que dão vida à cidade e tornam-se também personagens do livro. Afinal, a cada anoitecer, uma névoa de mistério e chuva transforma a cidade, tornando-a misteriosa. Um lugar em que tudo pode acontecer.
LanguagePortuguês
Release dateJun 26, 2020
ISBN9786586081435
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    A morte tudo resolve - Luiz Kignel

    0001

    Copyright © 2020 Luiz Kignel

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Edição: Haroldo Ceravolo Sereza e Joana Monteleone

    Editora assistente: Danielly de Jesus Teles

    Projeto gráfico, diagramação e capa: Vitor Rodrigo Donofrio Arruda

    Assistente acadêmica: Tamara Santos

    Revisão: Alexandra Colontini

    Imagem da capa: Fotografia de Denise Adams

    CIP-BRA­SIL. CA­TA­LO­GA­ÇÃO-NA-FON­TE

    SIN­DI­CA­TO NA­CI­O­NAL DOS EDI­TO­RES DE LI­VROS, RJ

    ___________________________________________________________________________

    K59m

     Kignel, Luiz

               A morte tudo resolve [recurso eletrônico] / Luiz Kignel. - 1. ed. - São Paulo : Alameda, 2020.

    re­cur­so di­gi­tal

    For­ma­to: ebo­ok

    Re­qui­si­tos dos sis­te­ma:

    Modo de aces­so: world wide web

    In­clui bi­bli­o­gra­fia e ín­di­ce

    ISBN 978-65-86081-43-5 (re­cur­so ele­trô­ni­co)

    1. Ficção brasileira. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

    20-64864 CDD: 869.3

    CDU: 82-3(81)

    ____________________________________________________________________________

    conselho editorial

    Ana Paula Torres Megiani

    Eunice Ostrensky

    Haroldo Ceravolo Sereza

    Joana Monteleone

    Maria Luiza Ferreira de Oliveira

    Ruy Braga

    Alameda Casa Editorial

    Rua 13 de Maio, 353 – Bela Vista

    CEP 01327-000 – São Paulo, SP

    Tel. (11) 3012-2403

    www.alamedaeditorial.com.br

    Mors Omnia Solvit

    (A morte tudo resolve – brocardo latino)

    Sumário

    I

    II

    III

    IV

    V

    VI

    VII

    VIII

    IX

    X

    XI

    XII

    XIII

    XIV

    XV

    XVI

    XVII

    XVIII

    XIXXX

    I

    - Me desculpem, mas deve ter havido algum mal-entendido!

    - Não, Dr. Thomas. Não há mal-entendido algum.

    - Mas tem de haver! O que não tem é uma razão para eu receber… isto!

    - Só que recebeu. Agora, precisa ir buscar! – o tom de voz demonstrava

    que o clima cordial de menos de meia hora atrás havia desaparecido.

    Sentados em minha sala de reunião, as visitas permaneciam em silêncio e deixavam que o encontro fosse conduzido por seu advogado, Geraldo Barreto. Barreto havia solicitado um encontro, em um telefonema que deu para minha secretária, Daisy. Na verdade, já queria marcar a reunião para o próprio dia, mas Daisy lhe informou que eu estava em um compromisso profissional fora do escritório e certamente não retornaria. Insistiu em obter meu celular, mas ela, já acostumada com a insistência de pessoas desconhecidas, recusou, ainda que de forma bastante polida, a fornecê-lo.

    Na outra ponta da linha estava um ainda desconhecido Dr. Barreto, que pedia uma reunião em caráter urgente para tratar de um assunto que ele se recusou a adiantar, em nome de um cliente cujo nome disse não poder revelar. Mas, voltou a insistir na urgência do tema e disse que ligaria em meia hora, pedindo que ela me localizasse.

    Fui encontrado pelo celular, dentro do táxi, retornando para casa após uma longa reunião, em que buscava uma composição para converter uma separação litigiosa em consensual. Ainda não havia tido sucesso. Daisy relatou o telefonema que havia recebido, com seu jeito contido, ao qual eu ia me acostumando.

    Ela estava comigo há poucos meses. Anteriormente, havia trabalhado por mais de quinze anos em um outro escritório de advocacia. Saiu de lá quando seu chefe faleceu, chegou a trabalhar por algum tempo com o outro sócio, mas disse que não se acostumou com ele. Acabou concluindo que era o momento de buscar novos ares e pediu demissão.

    Foi um colega meu, que trabalhava naquele escritório, quem nos pôs em contato. Disse que ela era honesta, dedicada e que seria um excelente apoio para um escritório em fase de crescimento como o meu, o que achei uma observação gentil, considerando que eu trabalhava sozinho, apenas auxiliado por um estagiário do quarto ano.

    Tivemos duas entrevistas antes da contratação e ficou evidente para mim que ela era a pessoa certa, mas eu tinha o orçamento errado.

    Ainda assim, conseguimos chegar a um meio-termo, cada qual cedendo um pouco. Para mim, era a chance de ter uma secretária experiente, que também era arquivista e rápida o suficiente para dispensar uma auxiliar – um custo que eu adoraria evitar, o que compensaria em parte o salário combinado. Para ela, era a oportunidade de trabalhar em um escritório de pequeno porte: menos stress, menos serões noturnos para colocar o trabalho em dia.

    Advogando na área cível, me divido entre a assessoria jurídica geral para negócios imobiliários e a advocacia de família e sucessões. Esta última é minha real vocação, embora a primeira sempre ajude a fechar o apertado orçamento do mês. Prefiro as separações e divórcios consensuais porque, via de regra, evitam um enorme envolvimento pessoal do profissional – o que não tem preço – e costumam ser resolvidos em tempo menor. Mas a verdade é que são os litígios que trazem as grandes oportunidades. É quando podemos atuar defendendo os interesses de nossos clientes e, saindo vitoriosos, os honorários sempre serão compensadores.

    Mas minha preferência sempre esteve na área sucessória, na composição de conflitos familiares, na execução de testamentos, na defesa do patrimônio de viúvas contra filhos vorazes. Combinei com Daisy uma experiência de seis meses, que já dura quase um ano, e acho que estamos nos ajustando muito bem um ao outro.

    Fiquei pensando no que responder e Daisy acabou tomando a iniciativa. Sugeriu aguardar um pouco mais, pois talvez esse misterioso Dr. Barreto nem ligasse novamente. Eu não tinha a menor ideia do que poderia se tratar e resolvi acatar sua sugestão. Mas o Dr. Barreto era insistente e, passados exatamente trinta minutos, voltou a ligar cobrando uma resposta.

    Daisy informou que não havia me localizado e pediu que ele ligasse novamente nesta manhã. Assim, hoje cedo já aguardávamos o telefonema, que ocorreu ainda antes das 9:00h. Daisy marcou a reunião para logo depois do almoço. Barreto, primeiramente, tentou conseguir um horário ainda pela manhã, mas, diante da firmeza de Daisy, concordou com o que ela lhe propunha, agradeceu e desligou.

    No horário marcado, Daisy recebeu o Dr. Barreto, acompanhado de mais três pessoas, o que a surpreendeu e preocupou. Ela chegou a entrar na minha sala para indagar se não seria melhor dizer que eu não havia voltado do almoço e mandá-los embora.

    A apreensão da minha secretária tinha lá seus motivos. Barreto surgiu do nada e, agora, sem ter nos informado sobre isso, aparecia em meu escritório com mais três desconhecidos. Pelo meu lado, gostava de ouvir os palpites de Daisy sobre os clientes. Afinal de contas, eu ainda não tinha cinco anos de formado. Já Daisy trabalhara por mais de quinze anos com um dos sócios de um grande escritório de advocacia:

    – O que exatamente preocupa você, Daisy? – quis verificar.

    – Dr. Thomas, não faço a menor ideia de quem são esses sujeitos. E se forem fiscais da Receita Federal? Ou se algum cliente do senhor deu um golpe na praça e eles são cobradores?

    Parei, pensei, sorri:

    – Agradeço sua preocupação, mas acho que não se trata de uma coisa, nem outra. Pelo que sei, não tenho grandes problemas com o imposto de renda. Nada que justifique quatro fiscais da Receita Federal se deslocarem até o meu escritório. E meus clientes, bem, você os conhece Daisy. Eles têm jeito de quem dá golpes na praça?

    Daisy abriu um sorriso forçado. Eu prossegui:

    — Vamos descobrir logo quem eles são. Não está curiosa? Eu estou. Coloque-os na sala de reunião e vamos ao trabalho!

    Anos antes, eu havia alugado um simpático escritório na região da Avenida Paulista. Tinha o desconforto de não ser próximo à Praça João Mendes, uma distância que seria facilmente percorrida a pé até o Fórum Central ou o Tribunal de Justiça, em despachos praticamente

    diários para quem trabalha com o contencioso forense. Mas tenho a facilidade do metrô da Av. Paulista, e é possível chegar à Estação Sé em não mais do que vinte minutos. Se estiver muito frio ou eu estiver com muita preguiça, não me incomodo em enfrentar o trânsito desta cidade e pagar quinze reais para uma vaga descoberta em algum estacionamento da Rua da Glória. O que me importava era não ficar no centro da cidade, o que eu achava extremamente deprimente. Para quem tinha planos de um dia ser titular de um grande escritório de advocacia, o centro da cidade não me parecia um bom começo. Como meus ilustres clientes, que certamente um dia apareceriam para me contratar, iriam para o centro? Com toda certeza, a região da Av. Paulista era um lugar muito mais agradável para trabalhar e de mais fácil acesso para eles, quando resolvessem aparecer!

    Arrumei a gravata no espelho que ficava no canto da minha sala e peguei quatro cartões de visita. Talvez fosse melhor não entregá-los; portanto, os deixei no bolso interno do meu paletó e fui afinal descobrir quem seriam essas pessoas que precisavam falar comigo com tanta urgência.

    Ao entrar na sala de reunião, fui recebido por quatro homens muito bem trajados, que se levantaram assim que a porta se abriu. Barreto se apresentou me entregando seu cartão de visita. A seguir, apresentou os demais. Segundo me disse, eram irmãos, e efetivamente tinham semelhança entre si. Mais altos e esguios, olhos claros. O terceiro irmão, mais gordo e de olhos castanhos, certamente não puxara o mesmo tronco familiar.

    No entanto, os três se encontravam em impecáveis ternos bem cortados e não me pareceu que tivessem ar ameaçador. No mesmo instante, retirei meus cartões de visita do bolso interno e os entreguei a eles. Convidei-os a sentar, ofereci café e comentei do frio daquela tarde de maio em que o inverno anunciava que não tardaria a chegar. Mas o clima não estava na pauta da reunião.

    — Dr. Thomas, peço desculpas pela insistência nesta reunião e agradeço sua gentileza em nos receber.

    – De forma alguma, Dr. Barreto. Espero apenas ser útil de alguma maneira.

    Sem saber o que me esperava, achei que esta seria uma resposta que não me comprometeria muito. Assumindo um tom mais formal, Barreto entrou diretamente no assunto que os trouxera até meu escritório:

    – Dr. Thomas, represento meus clientes, Srs. Alberto Stein, Mario Stein e Rubens Stein, aqui presentes. O nome lhe soa familiar?

    Fitei os três:

    – Desculpem, mas acho que nunca nos encontramos antes.

    – Com certeza – me disse um deles. – Nunca nos vimos.

    – Então, por que eu deveria conhecê-los?

    – Você não os conhece – interpelou o Dr. Barreto –, mas sabe quem é o pai deles. Deixe-me reconstruir a pergunta. O senhor conhece Benjamin Stein?

    – Claro que sim. Peço então que me desculpem.

    – E há quanto tempo o senhor não conversa com ele?

    – Bem, já não o vejo há alguns meses, embora nos comuniquemos com certa regularidade pela internet.

    – Pela internet? – exclamou bruscamente um dos irmãos, que, pelo visto, tinha o desagradável costume de falar como se estivesse gritando.

    – Sim, pela internet. Mantínhamos contatos esporádicos.

    – E quando trocaram as últimas mensagens? – indagou Barreto.

    – Bem – disse, puxando pela memória… – Talvez tenha sido há uns três meses, um pouco menos talvez. Mas por quê? Como está o Sr. Stein?

    – Nosso pai faleceu duas semanas atrás.

    Uma breve pausa.

    – Lamento muito. Aceitem minhas condolências. Eu tinha um relacionamento muito amistoso com seu pai.

    – Imagino que sim – interveio outro filho, em um tom tão pouco harmonioso como o de seu irmão. – Nosso pai lhe deixou um presente.

    – Como assim?

    Barreto retomou a condução da conversa e fez os primeiros esclarecimentos:

    – O senhor certamente sabe o que é um testamento cerrado, Dr. Thomas?

    – É claro!

    Embora para um leigo possa ser um tema estranho, um advogado que atua com Direito de Família e Sucessões certamente conhece um testamento cerrado. Usualmente, os testamentos são feitos da forma pública e se denominam testamentos públicos. Isso não significa que

    estejam disponíveis para qualquer pessoa, antes de o testador falecer, mas que foram lavrados por um Tabelião do Cartório de Notas, que tem fé pública, ou seja, o cartório atesta que o documento foi assinado pelo interessado, sem erro, dolo ou coação, e garante que o testador

    ouviu do próprio Tabelião a leitura da transcrição completa de suas disposições testamentárias, concordou com o texto e o assinou. É o testamento mais utilizado e, sem dúvida, o mais seguro, porque se um herdeiro pretender anular o testamento, o grau de dificuldade certamente será maior.

    Já o testamento cerrado tem um procedimento completamente diferente. Ele é levado pronto pela parte interessada ao Tabelião, que não toma conhecimento do seu teor. O Tabelião apenas se limita a lavrar um termo de comparecimento do testador, atestando que ele ali esteve, confirmou conhecer o conteúdo do documento que está entregando e que o assina sem qualquer vício de vontade, ou seja, sem erro, dolo ou coação. Em seguida, o Tabelião lacra o testamento de forma completa e absoluta – daí o nome testamento cerrado –, costurando suas margens para que não possa ser aberto e, ato contínuo, devolve-o à parte interessada, que deverá deixá-lo com alguém de sua confiança. O testamento cerrado apenas será aberto pelo juiz após o falecimento do testador e na presença de todos os familiares e de um membro do Ministério Público.

    – O senhor sabia que o Sr. Stein fez um testamento cerrado? – me perguntou Barreto, com seus modos polidos.

    – E por que eu deveria saber?

    – Ora, porque o senhor é beneficiário do testamento – adiantou-se novamente com a voz elevada um dos filhos.

    – Eu nunca soube disso! – foi a minha vez de alterar a voz. Não estava gostando do rumo da conversa. E gostei menos ainda do ar de descrença dos filhos. Mas me detive para refletir um pouco e depois observei: – Se isso é verdade, e se o seu pai realmente desejava que eu soubesse, teria feito um testamento público e me avisado. As pessoas fazem testamentos cerrados exatamente porque não desejam que os termos do documento sejam revelados enquanto estão vivas.

    – Senhores, um pouco de calma – interveio a bom tempo Barreto. – Peço desculpas pelos meus clientes, Dr. Thomas, mas preciso que o senhor entenda o lado deles. Foi feito um testamento cerrado e o senhor é beneficiário dos bens existentes em um cofre fechado no banco.

    – Em um cofre? Vocês poderiam ser mais claros?

    Na verdade, eu não estava com dificuldade de entender o que me diziam, mas precisava de algum tempo para tentar colocar em ordem meus pensamentos.

    – Qual é a sua dúvida, até agora, Dr. Thomas? Nosso pai lhe deixou um presente e certamente não queria que ninguém, nem mesmo o senhor, soubesse disso antes de falecer.

    – Me parece que houve realmente um mal-entendido – disse eu. – Não haveria razão para ele me deixar qualquer coisa.

    – Mas deixou – afirmou Barreto. – E agora cabe ao senhor pegar seu legado!

    II

    Combinamos um almoço no Restaurante Itamaraty, reduto tradicional dos advogados, localizado em frente à Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Lá é possível encontrar mesas tão antigas como seus frequentadores. O salão já passou por algumas reformas nessas décadas de atividade, no entanto, soube manter uma clientela cativa. Há mesas de advogados, juízes, delegados, ora em grupos distintos, ora misturados. Basta ser bacharel de direito e você certamente se sentirá em casa.

    Quando era estudante, nunca entrei lá. O preço sempre foi honesto, mas, mesmo assim, era caro demais para um estagiário. Além

    do mais, havia o risco de encontrar um professor ou o nosso chefe do escritório, e isso certamente não nos deixaria à vontade para a algazarra que estudantes gostam de fazer. Melhor era irmos ao Centro Acadêmico XI de Agosto, entrando pela Rua Riachuelo, para almoçar por um preço que não explicava como a comida podia ser tão boa.

    Encontrar-me apenas com Barreto desacompanhado de seus clientes seria uma oportunidade de me inteirar melhor sobre essa estranha história que começava a me envolver. Marcamos às 13:00h, ele me pediu pontualidade, portanto, cheguei dez minutos antes.

    Barreto já estava no Itamaraty. Havia escolhido uma mesa de canto, atrás de uma coluna, o que nos reservava um pouco de privacidade.

    Vestia um terno bem cortado com uma gravata sóbria, ambos em tons escuros. Notei seu olhar de reprovação para minha gravata estampada de listras amarelas, mas que, ao menos na minha opinião, fazia bom par com o terno azul-marinho. Pedimos uma sopa de legumes para começar e, ao contrário do dia anterior quando o conhecera em meu escritório, Barreto não se incomodou em falar sobre o clima e outras amenidades em geral.

    Duas semanas antes, os líderes do PCC (Primeiro Comando da Capital) haviam conseguido um feito inimaginável. De dentro das prisões, algumas de segurança máxima, literalmente pararam a cidade de São Paulo, coordenando vários ataques a alvos civis e policiais. Era o assunto de todas as conversas. Na sequência, pedimos o prato do dia da casa e concordamos em dividir um vinho italiano.

    Barreto era o que podemos chamar de um sujeito circunspecto.

    Olhar reservado, fala pausada, atento ao que acontecia a sua volta. Ainda assim, diferentemente do dia em que nos conhecemos no meu escritório, pretendia realmente se aproximar de mim, e nada melhor do que começar falando dele mesmo. Foi aluno de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde se formou em 1968, quando eu nem sequer havia nascido. No auge da ditadura militar, fora um daqueles rebeldes sem causa, lutou contra qualquer coisa que representasse a ordem constituída, bateu e apanhou da polícia, provavelmente mais a segunda do que a primeira. Era contra tudo e contra todos, sem ao menos saber exatamente por quê. Os estudantes achavam que o mundo iria mudar só porque eles usavam chinelos, calças jeans largas e não tomavam banho. Não demorou a ver que isso não levaria a nada e, quando estava no quarto ano da faculdade, resolveu começar a trabalhar de verdade. Caiu nas graças de um professor de Direito Civil que gostava de sua oratória na classe, mas reprovava seus modos. Disse que ele teria emprego garantido no escritório no dia em que se vestisse como gente.

    Assim, certa manhã, Barreto apareceu na faculdade de cabelo

    cortado, barba aparada e em um terno, desajeitado, é verdade, mas que provava suas melhores intenções. Foi motivo de piadas por semanas, mas parou de se incomodar com isso no dia em que o professor cumpriu a promessa e lhe garantiu um emprego de estagiário. Logo se deslumbrou com as lides forenses, as grandes causas e abraçou a carreira de advogado. Seu protetor faleceu em um acidente de trânsito, logo após a formatura de Barreto, e não havia sucessores no escritório. Ele era muito jovem para pensar em assumir o lugar deixado vago.

    Assim, os clientes acabaram cada qual buscando um novo advogado para atendê-los.

    Um dia, apareceu um cliente para retirar as pastas que ainda se

    encontravam no escritório. O então jovem Dr. Barreto, advogado recém-formado, já havia escutado seu chefe mencionar o nome daquela pessoa, mas jamais o vira pessoalmente. O cliente parecia um pouco perdido com o volume de documentos, e como Barreto estava sem muito para fazer, ofereceu-se de bom grado para ajudá-lo na separação das pilhas e pilhas de papéis. O cliente simpatizou com aquele jovem advogado e perguntou onde ele trabalhava. Ao saber da história, convidou-o para ser seu advogado pessoal, e com ele o Dr. Barreto permanece até hoje.

    E esse cliente era Benjamin Stein.

    – Mesmo que eu seja beneficiário, o que admito apenas para argumentar, isso não seria motivo suficiente para um testamento cerrado, concorda Dr. Barreto?

    – Plenamente. E isso também nos intriga muito.

    – Também? Por quê? O que mais está acontecendo?

    – O Sr. Stein era viúvo há dez anos, aproximadamente, e tinha apenas os três filhos, Alberto, Mario e Rubens, que estiveram comigo no seu escritório. Você sabe que, conforme a lei civil, 50% do patrimônio do falecido denomina-se parte legítima e precisa ser obrigatoriamente destinada aos denominados herdeiros necessários. Em primeiro lugar estão os descendentes que automaticamente excluem outros familiares na falta de um cônjuge sobrevivente e, portanto, tornam-se os únicos titulares desta parte. Os outros 50% são livres e podem ser destinados livremente para quem o falecido quiser se houver lavrado um testamento.

    – A parte disponível da herança – arrematei.

    – Ocorre que o testamento cerrado também deixou a parte disponível para os três filhos em partes absolutamente iguais.

    – Ora, para isto não é preciso um testamento! A própria lei já faz

    isso. E quais eram as outras disposições?

    – À exceção do seu legado, não havia nenhuma outra disposição relevante. – Ficamos nos olhando em silêncio por alguns instantes. Eu me sentia cada vez mais intrigado. Era evidente que ele havia levantado informações sobre mim e sabia quais eram as minhas especialidades em direito. Então, Barreto perguntou: – Já redigiu um testamento cerrado para algum cliente?

    – Sim, mas poucas vezes. São realmente raros e os testamentos públicos são os mais seguros.

    – Desculpe a indiscrição, mas por que esses seus clientes optaram pelo testamento cerrado?

    A sopa estava servida e interrompemos nossa conversa para saboreá-la ainda quente. Depois retomei o assunto:

    – Era um cliente com uma aventura extraconjugal. Acabou tendo um filho fora do casamento e não queria reconhecê-lo em vida. Por isso fez um testamento cerrado. Ele ainda está vivo. Portanto, é um segredo profissional que guardo comigo. A família só vai saber no dia que ele morrer.

    – Um bom motivo para um testamento cerrado! Se lhe faltou hombridade para assumir a criança diante da família, pelo menos lhe restou o bastante para reconhecê-la e lhe dar proteção. Muito bem. Algum outro caso?

    – Bem, recentemente, um cliente faleceu e havia lavrado comigo um testamento cerrado. Tinha um casal de filhos em constante litígio, disputando um enorme patrimônio imobiliário. Ele colocava a culpa na nora e genro, mas sabe como são os pais. Jogam o problema sempre nos agregados e isso às vezes não é verdade. Ele havia tentado por diversas vezes um acordo de partilha. Queria doar os imóveis ainda em vida para os filhos, de modo a acabar com a briga entre eles. Reservaria o usufruto para si, garantindo as rendas das locações. Fez várias propostas aos filhos, mas um sempre queria tirar vantagem sobre o outro. Ficou esgotado com tudo isso e me pediu para elaborar um testamento cerrado com a partilha que achava ideal. Os filhos apenas ficaram sabendo da divisão quando meu cliente já havia falecido.

    – Dois motivos que justificam um testamento cerrado. Sua orientação profissional foi correta.

    Agradeci com um movimento de cabeça o comentário gentil e

    indaguei:

    – Não havia nenhuma outra disposição no testamento? Um filho a ser reconhecido? Quem sabe ao menos uma cláusula peculiar ou diferenciada que justificasse todo este segredo?

    – Nada parecido, Dr. Thomas. É o que estou lhe dizendo, o Sr. Stein fez um testamento cerrado e a única disposição contida nele deixou para o senhor o que contiver um cofre fechado na agência central do Banco República. Nada mais.

    Barreto pegou sua pasta, que repousava na cadeira junto de nossa mesa, e me entregou a cópia do que seria o testamento do seu cliente. O documento chegava as minhas mãos juntamente com o vinho italiano que havíamos escolhido.

    – Dr. Thomas, vamos brindar.

    – Ao quê?

    – Ao conteúdo do cofre!

    – Será motivo para um brinde?

    – Brindemos ao desconhecido, ao oculto que apenas o senhor pode desvendar, quando abrir esse bendito cofre!

    Brindamos em silêncio.

    O prato principal chegou. A massa envolta no creme de leite com champignon era uma boa pedida para aquele dia frio. Mas meu desconforto era cada vez maior:

    – Dr. Barreto…

    – Que tal tirar o doutor? Estamos entre colegas e não precisamos de formalidades.

    – Agradeço. Também prefiro assim. Pois bem, Barreto, eu continuo perdido. Você faz ideia do que há no cofre?

    – Essa pergunta sou eu que preciso fazer a você. Você é o beneficiário. Veja bem, não fico enciumado pelo fato do Sr. Stein consultar outros advogados. Eu era seu advogado pessoal, seu homem de confiança. Mas o grupo empresarial cresceu demais e eu sempre soube que havia advogados externos auxiliando o Sr. Stein em trabalhos específicos. Isso até me deixava mais tranquilo, porque o peso da responsabilidade era muito grande. Quando ele me contratou, recém-formado, me disse que já havia convidado meu chefe para trabalhar apenas para ele, mas o convite fora recusado porque quem está na advocacia liberal não consegue se adequar ao sistema corporativo. Só que houve empatia entre nós e logo me acostumei à ideia. Ficamos juntos por mais de trinta anos e acompanhei vários trabalhos de advogados externos. Logicamente, nem tudo foi um mar de rosas, tive minhas diferenças com o Sr. Stein e, acredite, não foram poucas. Mesmo tentando defendê-lo, nem sempre pensávamos do mesmo modo. Eu tinha a visão jurídica. Ele, a visão empresarial. Tive que ficar esperto com advogados externos que atendiam o grupo. Às vezes queriam tirar vantagem, tornar algo mais complicado para justificar honorários maiores, coisas assim. Mas esta era exatamente a minha função. Não deixar o Sr. Stein ser enganado por ninguém, mesmo pelas pessoas mais próximas a ele. Meu cliente não estava mais preocupado com o meu saber jurídico, queria apenas que tudo passasse por mim. Sabe como é, suas empresas eram tão grandes que ficava difícil controlar a situação. E assim se passaram estes trinta anos com altos e baixos como em qualquer relacionamento – Barreto tomou mais um gole de vinho, arrumou-se melhor na cadeira e prosseguiu: – Pois bem, agora me diga, que trabalhos profissionais você executava para ele?

    – Nenhum – respondi.

    – Nenhum? – Barreto me indagou aturdido.

    – Nunca fiz um trabalho profissional para ele.

    – Então que cargas d’água vocês faziam?

    – De vez em quando discutíamos a Bíblia.

    Barreto tossiu com o gole de vinho que acabara de tomar.

    – Você só pode estar brincando!

    Mas era verdade.

    Conheci Stein três anos antes, praticamente por acaso.

    Eu estava no aeroporto de Buenos Aires, aguardando o embarque para São Paulo. Fui visitar a irmã de uma cliente cuja mãe falecera recentemente. Elas não se falavam há muito tempo, mas, por força do inventário, voltaram a ter contato. A irmã residia na Argentina e nem sequer compareceu ao enterro da mãe, por razões que acabaram não sendo reveladas para mim. Ao que parece, ambas sempre tiveram sérios problemas de relacionamento. Fui convocado pela minha cliente para ir a Buenos Aires conversar com a irmã ou com quem a representasse, buscando um acordo de partilha judicial dos bens da mãe falecida no Brasil, sob pena do processo de inventário se eternizar.

    Recordo que, no princípio da reunião com a irmã, a negativa era

    absoluta, e não havia quem a fizesse mudar de ideia. Não nomearia advogado algum, não moveria uma palha para o inventário de sua mãe terminar e pouco se importava se essa decisão fosse retardar por anos o fim do processo. Se isso atrapalhasse a vida de sua irmã, minha cliente, melhor ainda!

    Em vez de partir para um confronto imediato, optei por relatar

    àquela senhora o vasto patrimônio deixado pela sua mãe, composto por valiosos galpões e aplicações financeiras respeitáveis, que ficariam retidas pelo juiz enquanto não houvesse um acordo de partilha. O patrimônio certamente se desvalorizaria pela falta de uma gestão administrativa competente, e as aplicações financeiras ficariam limitadas ao rendimento da poupança, perdendo fortemente sua rentabilidade. A médio prazo, ponderei, o valor dos ativos estaria bastante depreciado. Informei aquela senhora que aguardaria a sua posição e me despedi respeitosamente. Deixei-a apenas ciente de que, na manhã seguinte, retornaria para o Brasil.

    Eu havia lançado a isca, embora tudo fosse verdade. No dia seguinte, ainda antes de sair do hotel, recebi um telefonema do advogado da irmã, solicitando informações e prontificando-se a cooperar! E lá estava eu, retornando para São Paulo com a missão praticamente cumprida, trazendo formatada a composição que tanto era desejada pela minha cliente.

    O aeroporto internacional de Buenos Aires se localiza na cidade

    vizinha de Ezeiza, aproximadamente a trinta e cinco quilômetros da capital, e certamente é o principal terminal internacional da Argentina. Eu me dirigi ao terminal das linhas aéreas internacionais, o aeroporto estava agitado, como de hábito. Pessoas demais, cadeiras de menos, todos se acotovelando, aguardando a chamada para o embarque. Minha cliente me comprara, por conta própria, passagens ida e volta para Buenos Aires na classe executiva, o que me deixou extremamente envaidecido. Portanto, eu aguardava calmamente o momento da chamada. Estava encostado próximo ao balcão, quando vi um senhor de cerca de oitenta anos, uma farta cabeleira branca, razoavelmente desesperado. Seu voo por outra companhia aérea havia sido cancelado e ele precisava voltar urgentemente para São Paulo porque tinha negócios inadiáveis para resolver. Com muito custo, conseguira um lugar na classe econômica, assento de centro. Ele reclamava porque tinha sérios problemas circulatórios, o que se deveria compreender pela avançada idade, e não poderia ficar com as pernas apertadas e sem movimentos por mais de duas horas. Implorava por um lugar na primeira classe ou na classe executiva, a qualquer preço, mas ambas estavam lotadas. Pensou até em desistir da viagem, mas resolveu colocar em risco sua saúde e aceitou o último lugar vago do voo.

    Fiquei consternado com a situação. Afinal, não se tratava de um daqueles voos noturnos sem fim onde a diferença entre classe executiva e econômica se torna ainda maior. Seria pouco mais de duas horas de voo, e com certeza eu não dormiria. Já havia inclusive separado um de meus livros para passar o tempo. Aproximei-me, pedi desculpas por ter inadvertidamente ouvido a conversa e me ofereci para trocar de lugar com ele.

    Para mim, não era nenhuma novidade viajar de classe econômica. O senhor me olhou estupefato e sem reação. Mal sabia como agradecer.

    Embarcamos. Foi um voo tranquilo e absolutamente desconfortável na classe econômica, como eu já esperava, mas estava satisfeito, me autointitulando o samaritano do dia. A classe executiva tem o privilégio de desembarcar primeiro. Assim, ao desembarcarmos no Aeroporto Internacional de Guarulhos, aquele mesmo senhor me esperava na saída do avião. Demorei um pouco a descer, pois não

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