Palavra e imagem na literatura contemporânea
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Book preview
Palavra e imagem na literatura contemporânea - Vinícius Carvalho Pereira
Manguel
SUMÁRIO
Apresentação da coleção
Pontos de virada: da palavra à imagem, à palavra, à imagem...
Vinícius Carvalho Pereira
De Indícios a Um Útero: intermídia de têxteis e textos
Erika Viviane Costa Vieira
As fotografias verbais de Gonçalo M. Tavares
Bruna Fontes Ferraz
Como a sombra de um pássaro em voo:literatura, imagem e pensamento em W. G. Sebald
Luiz Lopes
Pessoa vai ao cinema: tradução coletiva do Desassossego
Augusto Rodrigues da Silva Junior
Lemuel da Cruz Gandara
Escrita e imagem como encenação da recordação: o lugar da rasura em Terra sonâmbula, de Mia Couto
Camila da Silva Alavarce
Gisele Pimentel Martins
Plan de Evasión:a tradução como fuga
Luciana Benetti Marques Valio
A terceira margem do rio: leitura de uma graphic novel
Maria Elisa Rodrigues Moreira
Juan Ferreira Fiorini
Sobre os autores
Apresentação da coleção
A proposta da Coleção Polifonia é ser um território de diálogo entre as múltiplas vozes voltadas às reflexões sobre as linguagens. Acreditamos que, cada vez mais, conhecer as linguagens que permeiam nossos cotidianos e buscar compreendê-las melhor faz-se fundamental para nos tornarmos cidadãos mais críticos e conscientes, assim como para contribuir para a formação de outros indivíduos.
Nesse sentido, buscamos agregar nesse território discussões que envolvam não só a linguagem verbal, mas também as mais diversas linguagens artísticas, as práticas educacionais, as interfaces com as tecnologias, assim como pesquisadores oriundos de diferentes áreas e cenários culturais.
Assim, recuperando o sentido de seu nome na concepção bakhtiniana, a cada volume da coleção elegemos um recorte temático sobre o qual vozes distintas se articulam sem se sobreporem, possibilitando um diálogo produtivo e enriquecedor com seus leitores, que juntam seus próprios pensamentos àqueles expressos nos livros.
Maria Elisa Rodrigues Moreira
Juan Ferreira Fiorini
Pontos de virada: da palavra à imagem, à palavra, à imagem...
Vinícius Carvalho Pereira
No bojo do media turn, que marca importante virada epistemológica nos estudos literários, é cada vez mais assente a concepção de textos não mais como virtualidades verbais apriorísticas atualizadas em suportes, e sim como materialidades em que culminam propriedades das mídias e intenções formativas dos escritores. Sob tal perspectiva, se num primeiro momento assistimos na academia a uma perquirição das especificidades de cada sistema midiático, hoje boa parte dos estudos versam sobre os pontos de confluência entre eles, em consonância com práticas sociais da convergência e com a orientação de desenvolvimento tecnológico multiplataforma.
A obra Palavra e imagem na literatura contemporânea nos oferece uma pequena, mas preciosa amostra de estudos realizados com foco nesse diálogo entre diferentes linguagens e diferentes materialidades, apostando numa esfera que cada vez mais se volta para os gestos de hibridização: a literatura contemporânea. Dado que o vocábulo literatura
vai gradativamente se inflando de sentidos — o que implica diretamente uma diversificação dos objetos, métodos e teorias abraçados pelos estudos literários —, é de suma importância tecer reflexões com vetores para dinâmicas de passagem entre a literatura, o cinema, a fotografia, a pintura, as artes têxteis, a gravura, os quadrinhos, entre tantos outros sistemas de expressão e comunicação. O conjunto de sete artigos que este livro encerra permite-nos diferentes pontos de entrada nessa trama intersígnica e intermidiática, convidando-nos a acompanhar o desenvolvimento de pesquisas recentes sobre o tema; como fio condutor nesse labirinto, tomamos o traço, essa unidade significante quase mínima que tanto se dá a ler ou a ver, nos deslizamentos caros ao contemporâneo.
Em "De Indícios a Um Útero: intermídia de têxteis e textos", Erika Viviane Costa Vieira investiga relações entre duas formas de tessitura — as têxteis e as literárias —, tomando a natureza mesma do processo de construir tramas de signos como um importante vetor comum a essas duas materialidades expressivas. Para além das já conhecidas discussões sobre a escrita como ato de urdidura de fios discursivos, que a pesquisadora muito bem retoma, sua análise problematiza também outras questões caras à área das intermídias e aos estudos de gênero evocadas pelo livro Um útero é do tamanho de um punho (2012), de Angélica Freitas, com ilustrações de Anna Maria Maiolino, na série Indícios (2005).
Já em As fotografias verbais de Gonçalo M. Tavares
, Bruna Fontes Ferraz convida os leitores à discussão da obra Short movies, do escritor angolano-português, ressaltando as operações de diálogo entre foto, cinema e literatura. A pesquisadora enfatiza o caráter híbrido da obra, que organiza o material narrativo segundo procedimentos caros a variadas mídias do audiovisual — essas mesmas cujas fronteiras, cada dia mais, vão sendo renegociadas em fluxos de convergência e divergência — e a diferentes tipologias textuais, num continuum entre a descrição e a narração. Como dispositivo óptico, a escrita vai conduzindo o olhar do leitor para, além da letra, enxergar cenas breves, mas complexas, que também oscilam entre o prosaico e o insólito, reiteradamente justapondo-os por operações de enquadramento.
Na sequência, Luiz Lopes, em Como a sombra de um pássaro em voo: literatura, imagem e pensamento em W. G. Sebald
, trata de temas como a memória, a morte, a imagem e a melancolia no livro Os emigrantes: quatro narrativas longas, do ficcionista alemão. O pesquisador se debruça sobre a obra de Sebald como exercício de reflexão sobre a História, em que se privilegiam ruínas, lapsos, rastros e detalhes como constituintes de uma memória fragmentada em palavras e fotos. Conforme o fio condutor proposto no capítulo de Lopes, os narradores de Sebald avançam no terreno movediço entre esses regimes representacionais movidos não por uma certeza, senão pela necessidade de constituir sentidos a partir dos estilhaços da barbárie do século XX — o sem sentido em última instância.
Em Pessoa vai ao cinema: tradução coletiva do Desassossego
, Augusto Rodrigues da Silva Junior e Lemuel da Cruz Gandara discutem a poesia de Fernando Pessoa em trânsito por outras linguagens, a exemplo da publicidade, da fotografia e, como foco principal de sua investigação, o cinema. À luz da categoria de cinema literário pessoano
e do conceito de tradução coletiva
, os pesquisadores pensam o imbricamento entre cinema de poesia e poesia cinêmica em Conversa acabada (João Botelho, Portugal, 1981), Filme do desassossego (João Botelho, Portugal, 2010) e Ophiussa: uma cidade de Fernando Pessoa (Fernando Carrilho, Portugal, 2013). Na análise de trechos dos filmes, evidenciam-se representações da vida de Pessoa, bem como remediações de obras plásticas e líricas consteladas em torno do poeta da heteronímia.
Camila da Silva Alavarce e Gisele Pimentel Martins, em "Escrita e imagem como encenação da recordação: o lugar da rasura em Terra sonâmbula, de Mia Couto", convidam-nos a pensar sobre as lábeis dimensões narrativa e ficcional de todo discurso memorialístico, sobretudo no contexto da pós-modernidade. Para tanto, tomam como fio condutor a personagem Virgínia, no romance Terra sonâmbula (1995), de Mia Couto, e partem da premissa de que uma sociedade de discursos — no plural — só pode se estear numa concepção também pluralística de identidades. Ao tratarem da personagem em questão, as pesquisadoras destacam como esta pode ser lida segundo metáforas da recordação como uma escrita, ou como um jogo de recortes e colagens, processos em que incidem rasuras, lacunas, hesitações, mas sempre em um lembrar ativo
.
Em "Plan de Evasión: a tradução como fuga", Luciana Benetti Marques Valio analisa a obra Plan de Evasión, produzida por Renata Lucas a partir do livro homônimo de Adolfo Bioy Casares para a exposição The Spiral and the Square: Exercises on Translatability. Em seu argumento, a pesquisadora propõe a leitura do trabalho de Lucas como uma subversiva tradução da obra de Casares, em um movimento que engendra também uma problematização do próprio ato tradutório e do que a ele resiste, na esteira do pensamento de Walter Benjamin, Jacques Derrida e Haroldo de Campos. Sob tal perspectiva são lidas as intervenções sobre o objeto livro conduzidas por Renata Lucas, ressaltando-se os processos materiais de cortes e enxertias a que a artista submete o livro de Casares para amplificar e, por vezes, subverter as discussões sobre percepção, significação e adulteração que o enredo do texto ficcional original coloca.
Por fim, em "A terceira margem do rio: leitura de uma graphic novel", Maria Elisa Rodrigues Moreira e Juan Ferreira Fiorini empreendem uma interessante discussão sobre as relações entre palavra e imagem na graphic novel A terceira margem do rio, com roteiro de Maria Helena Rouanet e arte de Thaís dos Anjos, em adaptação do conto homônimo de Guimarães Rosa. Como pressupostos teórico-metodológicos, os pesquisadores adotam o conceito de literatura expandida, o qual aplicam à leitura da graphic novel considerando as especificidades dessa mídia em diálogo com a convergência entre o literário, o quadrinístico e as artes visuais, como a xilogravura e a aquarela. Na pluralidade de signos que tal abordagem enfoca, a análise revela um movimento de transbordamento já contido no conto rosiano, mas agora amplificado para margens que também se extravasam em distintos sistemas de representação.
Ao término do último capítulo e do próprio livro, a sensação é claramente de assombro diante das tantas possibilidades que os estudos intermídia podem trazer à literatura. Diante dos objetos artísticos cada vez mais multíplices com que nos defrontamos na escola, na universidade, na web e nos espaços públicos, fica o convite para mais abordagens também diversas, inovadoras, transbordantes, tais quais estas que Palavra e imagem na literatura contemporânea enseja.
De Indícios a Um Útero: intermídia de têxteis e textos
Erika Viviane Costa Vieira
As artes têxteis configuram-se como uma mídia que não tem recebido a devida atenção pelos estudos da intermidialidade. Muito se escreve sobre as interrelações entre as artes plásticas, a música, o cinema e a literatura, mas pouco se teorizou a respeito das artes têxteis e sua relação com o universo literário. Seja por sua associação com o artesanato ou com as atividades domésticas femininas, as obras têxteis são muitas vezes apequenadas e tanto sua capacidade narrativa quanto sua natureza multissensorial são subestimadas. Mesmo assim, a literatura mostra um apreço especial em recuperar mitos e metáforas que aproximam o tecer ao ato de escrever, como os mitos de Ananse, Ariadne e Aracne, retomados por Ana Maria Machado em Texturas: o tao da teia — sobre textos e têxteis
(2016). Nesse ensaio, Machado (2016, p. 89) enumera as várias palavras que figuram no campo semântico da fiação e da escrita, tais como texto (variante de tecido), trama, enredo, fio da meada, novela e novelo, entre outros, e conclui que as mulheres criadoras de textos e têxteis são herdeiras de Ariacne¹ — "[...] aquela que tece com perfeição