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Gótico Suburbano
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Gótico Suburbano

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O que existe em comum entre pipas, bate-bolas, cachorros de rua, botecos, cemitérios e panfletos de simpatias espalhados pelos postes da cidade? Não sabe?

Os contos deste livro não são apenas uma coleção de histórias sombrias que tem como pano de fundo uma região. São principalmente uma homenagem a esse lugar tão especial para mim: o Subúrbio Carioca.
LanguagePortuguês
PublisherLUVA EDITORA
Release dateJul 24, 2020
ISBN9786500066142
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    Gótico Suburbano - Hedjan C.S.

    Maquiavel

    PREFÁCIO

    Quando menino, no interior de São Paulo, era comum eu me juntar com amigos e amigas, à noite, para contarmos casos de terror. Às vezes ao redor de uma fogueira, num terreno baldio, às vezes sob as árvores de alguma praça deserta e mal iluminada, deixávamos nossa fantasia correr solta, repetindo histórias ouvidas de adultos, ou simplesmente inventando acontecimentos supostamente testemunhados pelo narrador do momento. Material não faltava em nosso ambiente rural, cheio de lugares sombrios e espaços escuros, onde o coaxar de um sapo, o pio soturno da coruja, ou o reflexo brilhante dos olhos de um gato pardo ganhavam uma dimensão aterradora em nossa imaginação infantil. Nosso dia a dia era povoado de personagens sinistros, como o homem do saco, o tarado, a loira bela e toda de branco, que pedia carona na beira da estrada, ou mesmo animais malignos, como lobos e cachorros loucos.

    As breves narrativas de Hedjan se passam em um ambiente diferente, os subúrbios do Rio de Janeiro. No lugar das trilhas pela mata em noite sem lua, quando sentíamos que um saci ou uma mula-sem-cabeça podia surgir do nada, o cenário neste livro aparece cheio de casas fechadas e abandonadas, trens quase vazios chacoalhando pela madrugada em sua última viagem, botecos acanhados e vizinhos esquisitos. Nem por isso, ao lê-las, deixei de sentir aquele velho terror que me assaltava naqueles encontros da minha infância.

    Aqui, o autor revela alguns talentos que me agradam particularmente em um escritor. Primeiro, a capacidade de perceber sutilezas mal percebidas pela maioria das pessoas que com ele convivem, pequenos detalhes que nem registramos de forma consciente, que permeiam nossas rotinas de forma invisível, mas que, mesmo assim, nos afetam o humor, o estado de espirito e nossas ações. Além disso, Hedian compõe com maestria e em poucos traços a cena e os personagens das suas histórias. Com breves pinceladas, deixa o leitor alerta para a possibilidade de brotar o Horror a partir dos pequenos elementos do cenário, elementos e objetos que, de outro modo, se nos apresentariam insignificantes e banais. Com a mesma concisão, constrói seus personagens, que adquirem alma e profundidade sem desperdício de palavras. Assim, seguimos desavisados crianças e uma pipa ao vento, para nos darmos conta, tarde demais, de que o percurso cheio de leveza nos conduziu a algum negro abismo. Ou acompanhamos a história trivial de um insignificante mendigo e seus cães vadios, até que, subitamente perturbados, entendemos que tudo em volta, desde o princípio, estava investido da mais crua e feia monstruosidade humana.

    A leitura de um texto bem escrito é sempre um prazer. Siga com a leitura e divirta-se. Mas fique avisado: ao dar cabo da derradeira página, não poderá mais olhar em redor com sua costumeira inocência, e o que lhe era familiar e acolhedor terá se transformado em fonte de um quase imperceptível desconforto e terror.

    Fernando Vugman, autor de A Invenção do Monstro.

    Sobre trens e companheiros de viagem

    Na vida dos subúrbios, a estação da estrada de ferro representa um grande papel: é o centro, é o eixo dessa vida.

    Lima Barreto, A Estação.

    Entre 17h e 20h a Estação Ferroviária da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, assemelha-se a um formigueiro. Os trens partem com intervalos reduzidos, lotados de pessoas que moram nos locais mais afastados do Centro e da Zona Sul da cidade. Parece que os trens nunca vão dar conta de esvaziar o local. A partir de 20h30 a situação muda da água para a cachaça sem ao menos passar pelo vinho.

    Lygia ouviu seus passos ecoarem no piso de concreto enquanto caminhava pelo espaço entre a catraca e a plataforma de número 8, onde o trem aguardava. Deu uma olhada demorada no trem reformado, um modelo antigo que tinha sido equipado com ar condicionado. Sempre que via aquele modelo fabricado por volta de década de 50 lembrava com carinho do pai e não podia evitar sorrir. O senhor Telles, seu pai, chamava aquele trem de Marta Rocha, a famosa Miss Brasil que perdeu o concurso de Miss Universo por ter duas polegadas a mais de quadril. Quantas outras pessoas deviam ter lembranças boas por causa daquela máquina? Olhou o relógio do celular e calculou que aquele devia ser o último expresso, mas não tinha certeza. Achou melhor não arriscar.

    Lygia trabalhava como vendedora de cosméticos em uma loja de rua no Centro. Em geral, saía cedo, mas aquele tinha sido um dia difícil. A loja ficara fechada o dia todo para balanço, um dia de vendas perdido. Pior que isso era ficar até tarde no centro da cidade. Sair depois do horário era ficar exposto à solidão e aos espaços vazios de pessoas, ficar cercado por prédios gigantescos e portas de ferro fechadas. Era como estar em uma cidade fantasma.

    Pelo alto-falante da estação uma voz feminina anunciou que o último trem expresso do ramal de Japeri sairia em aproximadamente três minutos. Apressou-se para o vagão mais próximo e se acomodou no banco. Olhou rapidamente o celular. Uma mensagem do ex-namorado, provavelmente pedindo desculpas; mais de cento e cinquenta no grupo da família; oito de amigos da época da faculdade. Nada de novo. Com movimentos rápidos adquiridos com a prática, tirou os elegantes, mas desconfortáveis sapatos que faziam parte do uniforme e calçou um par de rasteirinhas. Olhou em volta.

    Estava no local sinalizado como vagão feminino. No período em que os outros vagões estavam lotados, aquele era o local onde apenas mulheres podiam viajar, com o intuito de protegê-las dos crescentes casos de assédio. Era um carro totalmente fechado, sem as típicas comunicações laterais entre vagões. Isso servia para evitar que durante a viagem algum homem desafiasse a proibição legal e invadisse o vagão.

    Observou os demais passageiros. Um homem corpulento usando uma chamativa camisa polo amarela dormia com uma bolsa tipo capanga no colo. Dois rapazes com suas mochilas aninhadas nos joelhos conversavam com ar de conspiradores, falando baixo e olhando para os lados. Uma menina magrinha vestindo um pesado casaco marrom também parecia dormir. As mãos estavam dentro dos bolsos do casaco, um capuz com bordas de pelúcia rosa estava puxado sobre a cabeça, que pendia para frente. Não dava para ver o rosto. Um jovem com cabelo parcialmente pintado de azul olhava fixamente o celular, de vez em quando dando risadinhas. Um casal com um bebê de meses entrou segundos antes das portas se fecharem. A mulher, que segurava o bebê, discutia com o homem, que seguia atrás com a cabeça baixa e carregando duas grandes bolsas com estampas de ursinhos.

    O trem partiu.

    Lygia nunca se acostumava com vagões vazios. Apesar do conforto, o silêncio era sempre estranho. Seus olhos correram pelo vagão. Viu um mapa retangular sobre umas das portas, indicando as estações e os ramais. Perto de

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