Descortinando a Vivência do Parto Através do Método Bick
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– Quem sabe precisas ir ao banheiro.
– Não, acho que não é isso. Acho que é minha "bomba" que vai estourar.
Esse breve diálogo se deu entre uma menina que esperava ansiosamente seu presente de Dia das Crianças, uma boneca-bebê, e sua mãe, alguns dias antes da "chegada" do presente. Ela estava prestes a dar à luz e, mesmo nunca tendo (obviamente) passado por essa experiência, pôde sentir no próprio corpo, infantil ainda, uma profunda identificação com aquelas mulheres que dão à luz. Essa "bomba" (a bolsa) estava rompendo para possibilitar a chegada de uma nova vida. E como é estar nesse lugar? Essa pergunta é o que este livro tenta responder. Por meio de observações realizadas em um Centro Obstétrico de um hospital público durante 19 meses, a autora leva o leitor a se encontrar com as mulheres que estão parindo: em um tempo e lugar onde as palavras não são suficientes, e a disponibilidade emocional de quem cuida delas é essencial. Ao longo do texto, o leitor será levado a compartilhar o testemunho da autora, que se emprestou como intérprete das parturientes, com a intenção de descortinar as camadas que envolvem a experiência feminina do parto. Ao aproximar o olhar de um momento tão fugaz quanto o parto, que muitas vezes se perde entre a gestação e o puerpério, oferece-se aqui uma nova perspectiva para o trabalho relacionado às práticas de assistência ao parto e ao nascimento.
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Descortinando a Vivência do Parto Através do Método Bick - Tagma Marina Schneider Donell
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAÚDE E HUMANIDADES
Luigi e Chiara, luzes da minha vida.
Liane, meu porto seguro.
José Luís, meu amor.
Vi, meu maior incentivador.
AGRADECIMENTOS
Um especial agradecimento para:
Rita de Cássia Sobreira Lopes e Nara Amália Caron, pelas supervisões, orientações, incentivo e pelo lindo prefácio;
Aline Groff Vivian e Lisiane Machado de Oliveira-Menegotto, colegas do grupo de supervisão;
Ao hospital que me acolheu para que eu pudesse realizar as observações;
Às mulheres que me permitiram testemunhar suas vivências de parto;
Aos profissionais que compartilharam comigo tantas horas de plantão;
E ao CNPq, pelo incentivo à pesquisa e à divulgação do conhecimento em nosso país.
Este livro não teria nascido sem vocês.
Filho...
igualzinho à minha poesia.
Você nunca foi meu órgão.
A arte é constante e me habita à hora
que quer
e à hora que eu deixo.
Mas não existe combinada, não há
contratos nem despejos.
Você tem intimidade com meus interiores,
com meus departamentos.
Me enobrece porque me tornou poderosa,
capaz de prosseguir com essa invenção
chamada humanidade.
Você é a barbaridade de ter feito a minha barriga crescer.
Meu corpo zuniu, abriu, escancarou
pra você sair.
De onde eu nunca pus sequer os pés, as mãos,
da casa em que vivo e habito sem nunca
ter entrado
porque moro fora de mim.
Você que é onírico, sábio vassalo,
me tiraniza e perde a fala, o fôlego, o faro,
me organiza e ganha o futuro.
E ainda segura o jogo duro de viver independente
da minha respiração.
Espião de meus bastidores,
olhou minhas entranhas enquanto virava ser humano.
Elisa Lucinda
PREFÁCIO
NASCE UMA AUTORA
Este livro tem já uma longa história, de mais de 10 anos. É fruto de uma pesquisa refinada e aprofundada da autora, que buscou acessar a experiência feminina do parto, no ato, no exato momento desse acontecimento único na vida de uma mulher e do ser humano.
É surpreendente como essa experiência, com profundo impacto no psiquismo feminino, é usualmente negligenciada ou banalizada, também na literatura especializada, como muito bem descrito nos Capítulos 1 e 2. A própria autora, em alguns momentos, questionava-se sobre a relevância deste trabalho. Seria válido colocar os holofotes nessa área sagrada
, que provoca tantas resistências, como bem lembrou Winnicott ao se lançar nesse desafio da relação primitiva mãe-bebê?
E como acessar a vivência do parto?
é a questão que a autora se coloca no Capítulo 3. Encontrou, na aplicação do método de observação de bebês, criado por Esther Bick, em 1948, uma via exemplar para desvendar e conhecer a vivência emocional da mulher que dá à luz, inacessível à palavra. Na posição receptiva e ativa de observadora participante
(Bick, 1964), emprestou-se como intérprete das parturientes, na esperança de poder traduzir o inominável de suas experiências, bem como de olhá-las em sua singularidade.
No Capítulo 4, intitulado Como fizemos?
, Tagma descreve que as observações ocorreram num período de 19 meses, totalizando 83 observações semanais em um Centro Obstétrico de um hospital público da região metropolitana de Porto Alegre, sempre no mesmo dia e horário, com duração de, aproximadamente, duas horas cada e com supervisões semanais em grupo. Assim, nessa aplicação foram mantidos todos os princípios que sustentam o método, incluindo a experiência prévia com o método standard, de observar um bebê em sua casa, nos seus dois primeiros anos de vida. É por meio dessa experiência prévia que o observador aprimora a sua escuta e setting interno, podendo levar o método para aplicações posteriores em diferentes settings externos, como é o caso de um Centro Obstétrico, num verdadeiro exercício de psicanálise extramuros.
Numa espécie de análise em câmera lenta, Tagma nos conduz ao miolo do seu trabalho no Capítulo 5, O que encontramos?
, o qual se divide em três eixos/tempos de elaboração do material observado. É aqui que demonstra toda sua capacidade e talento para escrever, excelente capacidade de observação e contenção, bem como de comunicação da experiência vivida, fartamente ilustradas por vinhetas espetaculares. Sua escrita sensível, empática com as mulheres, leva o leitor a viver uma experiência junto à ela e às mulheres naquele momento único na vida, o de dar à luz um novo ser. Tagma nos conduz a percorrer o caminho das parturientes, já desde a passagem pelo corredor do hospital, onde às vezes ocorrem os partos, até a sala de pré-parto e parto de um Centro Obstétrico. Descreve, com riqueza de detalhes, como é entrar naquele ambiente nada acolhedor de um hospital público. Podemos afirmar que nenhum trabalho mergulhou tanto, e de forma tão profunda, nas entranhas da intimidade do corpo feminino.
Tagma deixou-se usar pelas parturientes, servindo enquanto dreno emocional e intérprete de suas vivências. Convida a todo tempo o leitor, como fazia com o grupo de supervisão, a compartilhar a experiência dessas mulheres, que, quando internadas, despem-se de tudo que trazem consigo: roupa, documentos, identidade. A autenticidade, participação e capacidade de identificação de Tagma com as mães e a equipe, transmitidas em suas vinhetas, tocam profundamente o leitor. Seus sentimentos, reações, atos falhos traduzem a intensa mobilização afetiva do trabalho diário num Centro Obstétrico; com nascimentos, mortes, dramas diversos. Descreve como esse ambiente aproxima as pessoas de algo que revela mais do que gostariam, algo que vai além da intimidade, que desnuda a alma e põe em evidência as angústias mais primitivas do ser humano: o desespero do desamparo, descontrole sobre o corpo, alienação
do mundo externo, a dor da perda e separação, solidão. A exposição excessiva da intimidade das mulheres é desconcertante e embaraçosa.
Este trabalho demonstra o grande potencial do Método Bick não apenas para a formação clínica, mas também para a pesquisa do emocional primitivo e como método de intervenção. Tagma desempenhou brilhantemente a sua função. Seu trabalho é um exemplo da atitude analítica – de espera, respeito, tolerância ao desconhecido, ao não saber, receptividade, continência –, tão necessária ao trabalho analítico.
Mesmo sendo o parto um acontecimento de curta duração, este livro deixa claro o potencial desorganizador dessa experiência materna. Foi percebido em muitas mulheres o desespero diante do risco de estar entrando em um espaço estranho, apavorante, desafiando a morte e a loucura. Vivenciar a regressão física e emocional que ocorre no parto é realmente um desafio máximo para a mulher em seus limites e flexibilidade no transitar em diferentes níveis de sua estrutura psíquica. Por outro lado, poder se deixar trespassar por essa experiência desafiadora a prepara para acolher e cuidar do seu bebê lá onde ele se encontra, no estado originário de desamparo de todo ser humano.
Nara Amália Caron¹
Rita Sobreira Lopes²
APRESENTAÇÃO
Este livro está nascendo agora, mas já tem história. Uma história de 10 anos, pelo menos. Ele é fruto de muitas inquietações e de uma curiosidade incômoda, mas também de muito amadurecimento e crescimento pessoal e profissional.
No início dos anos 2000, eu iniciava uma nova trajetória. Decidi pela carreira acadêmica e me lancei num mar de desafios, por vezes revolto, por vezes sereno. Iniciei o mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), após graduar-me psicóloga pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), a casa de onde saí e para onde voltei, hoje como professora e pesquisadora. Nessa época, conheci aquela que seria minha orientadora por toda a vida, Prof.ª Rita de Cássia Sobreira Lopes, que acolheu minhas ideias e foi meu farol nesse mar imenso.
Após a aposta na realização de uma dissertação sobre o tema do parto, realizada por uma psicóloga e orientada por uma psicóloga em um Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, novos desafios surgiram, e o maior deles era a dificuldade de acessar a experiência feminina do parto por meio da linguagem verbal. O Método Bick surgiu então como uma via de acesso também aos conteúdos inconscientes e àquilo que ainda não podia ser traduzido pela via da palavra.
E essa história com o Método Bick é uma história à parte. Um rio que acabou encontrando o mar. E nesse rio minha barqueira e supervisora foi aquela que mais tarde seria também um farol em dias de tormenta, Dr.ª Nara Amália Caron. Foi com ela que aprendi, com a imersão nas vivências do Método Bick padrão, os seus meandros. Sua paixão e convicção no potencial do Método Bick foram plantados em mim, e disso eu nunca mais me livrei.
Mas a história segue, e nesse encontro do rio com o mar, eis que por uma confluência de fatores e de oportunidades, eu e mais duas colegas, Lisiane Machado de Oliveira-Menegotto e Aline Groff Vivian, a minha orientadora, Prof.ª Rita, e mais a minha supervisora clínica, Dr.ª Nara, unimo-nos com o objetivo de propor trabalhos de pesquisa que tivessem como fio condutor a observação de bebês. Nesse contexto favorável, surgiu a proposta de realizar um estudo com o objetivo de desvendar e conhecer a vivência emocional do parto, tendo como foco a mulher que dá à luz.
E assim começou uma trajetória acadêmica que hoje desemboca neste livro. E a história que conto agora é uma nova oportunidade de contatar essas vivências já há muito passadas. Atualmente, vive-se um momento de revisão e de discussão sobre as práticas ligadas ao parto, especialmente no Brasil, e é compromisso irrefutável lançar luz sobre o potencial clínico e de intervenção do Método Bick, contribuindo, assim, para a disseminação e aplicação de seus pressupostos nos mais variados contextos.
Assim, mais do que defender determinadas práticas de parto e nascimento, este livro pretende contribuir para a compreensão das mulheres que passam por essa experiência, na esperança de olhá-las na sua singularidade. Ao ampliar a discussão sobre o parto e sobre como cuidamos das mães, acredito que estamos prestando uma importante contribuição para que, em um futuro próximo, encontrem-se formas de garantir a todas nós um novo nascimento, por meio de uma assistência capaz de nos acolher, compreender e respeitar no sentido mais amplo dessas palavras.
A autora
Sumário
1
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES PSICANALÍTICAS PARA O ENTENDIMENTO DO PARTO 19
2
O PARTO E SUAS ESPECIFICIDADES 25
3
COMO ACESSAR A VIVÊNCIA DO PARTO? 31
4
COMO FIZEMOS? 37
5
O QUE ENCONTRAMOS? 39
5.1 EIXO I – IMPRESSÕES INICIAIS 40
5.2 EIXO II – A ROTINA EM UM CENTRO OBSTÉTRICO 44
5.3 EIXO III – DESCORTINANDO A VIVÊNCIA DAS MULHERES EM UM CENTRO OBSTÉTRICO 68
6
O QUE APRENDEMOS? 99
6.1 O MÉTODO BICK APLICADO À INSTITUIÇÃO HOSPITALAR: A INSTITUIÇÃO COMO UM ENVELOPE QUE CONTÉM E PROTEGE OU
COMO UM OBSTÁCULO AO CONTATO? 102
6.2 UM MUNDO À PARTE: A EXPERIÊNCIA DE DAR À LUZ NO
CONTEXTO HOSPITALAR 112
6.3 A EXPERIÊNCIA FEMININA DO PARTO: A BUSCA POR UM NOVO NASCIMENTO 123
CONSIDERAÇÕES FINAIS 141
REFERÊNCIAS 153
Índice Remissivo 163
1
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES PSICANALÍTICAS PARA O ENTENDIMENTO DO PARTO
³
Apesar de autores psicanalíticos reconhecerem no parto a oportunidade de reviver antigos conflitos, bem como o poder de inserir a mulher em um novo patamar de desenvolvimento, o impacto do momento do parto no psiquismo da mulher e a forma como ele é elaborado psicologicamente não receberam a devida atenção, nem mesmo da psicanálise. Segundo Deutsch (1977), muitos pesquisadores e clínicos se interessaram pela experiência traumática do parto para o recém-nascido, e sobre seu primeiro estado de angústia ao separar-se da mãe (Freud, 1926 [1925]/1987; Rank, 1923/1961). Entretanto, pouco se sabe sobre esses processos simultâneos na mãe.
Otto Rank (1923/1961), no seu livro O trauma do nascimento, propôs que o parto era, para o bebê, a fonte e o protótipo da sensação de ansiedade. Em 1923, Freud também se referia ao nascimento como o primeiro grande estado de ansiedade, e a ordem cronológica de tais afirmações não é inteiramente clara. Entretanto essas ideias fizeram com que Rank (1923/1961) afirmasse que todos os ataques ulteriores de ansiedade eram, na verdade, tentativas de ab-reagir
ao trauma do nascimento. Além disso, ele explicou todas as neuroses nesses mesmos moldes, desprezando o complexo de Édipo e propondo uma técnica terapêutica remodelada, baseada na superação do trauma do nascimento.
Ao que parece, foi a obra de Rank (1923/1961) que fez com que Freud reconsiderasse suas ideias sobre a relação entre a experiência do nascimento e a ansiedade. Em Inibições, sintomas e ansiedade (1926/1987), Freud afirmou que a ansiedade é uma reação à perda do objeto e que, no nascimento, tal ansiedade estaria associada ao temor da separação da mãe. Entretanto, segundo Freud (1926/1987), ainda não haveria para a criança, nessa época, objetos.
Em 1949, Winnicott retoma essa discussão, reforçando a ideia de que não é possível para o bebê, no nascimento, experimentar subjetivamente uma separação da mãe, visto que o feto não tem consciência da existência de um objeto (Winnicott, 1949/2000). Entretanto é inegável que o bebê, ao nascer, dá um passo importante do narcisismo absoluto para a percepção de um mundo externo e para a gradativa descoberta dos objetos até então ignorados (Freud, 1926/1987).
Assim, Winnicott (1949/2000) propõe três categorias de experiência do nascimento. Na primeira, chamada de experiência normal, o nascimento é experimentado de uma forma não traumática, em virtude de sua não significância. O bebê o vive como mais um dos elementos incluídos numa série de acontecimentos favoráveis, e que o levam ao desenvolvimento da autoconfiança, do senso de continuidade, de estabilidade e de segurança. Já no segundo tipo, chamado de experiência traumática comum, existe a necessidade de o bebê reagir a um estímulo, mas ao mesmo tempo é vivido como uma experiência que se mistura, ao longo do desenvolvimento, com outros acontecimentos ambientais traumáticos, vindo a confundir-se com estes. E o terceiro tipo, a experiência traumática extrema, poderia ser considerado o verdadeiro trauma do nascimento.
A experiência do nascimento, segundo Winnicott (1949/2000), nada tem a ver com a percepção do recém-nascido de que esteja sendo separado do corpo da mãe. Apesar disso, nessa época, já existe um início de desenvolvimento emocional, o que habilita o bebê a reagir a certa dose de estímulos ambientais. Entretanto tal capacidade ainda é muito rudimentar, e qualquer perturbação que a ultrapasse é contraproducente ao desenvolvimento saudável, uma vez que exige que o bebê reaja. E nesse estágio inicial o ego ainda não está suficientemente desenvolvido para que haja uma reação sem perda do senso de continuidade do vir a ser, e sem perda de identidade.
Dessa forma, o trauma do nascimento é, na maioria dos casos, apenas ligeiramente importante, e faz com que os indivíduos busquem um novo nascimento, no qual sua linha de continuidade não seja demasiadamente perturbada. Entretanto, em alguns casos, a experiência inicial é tão intensa e produz efeitos tão adversos que impede que o indivíduo faça verdadeiros progressos em seu desenvolvimento (Winnicott, 1949/2000).
No