Desenvolvimento Humano e Subdesenvolvimento: Teorias e Projetos Políticos em Contraste
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Desenvolvimento Humano e Subdesenvolvimento - Fabio Akira Shishito
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS
Ao Pietro, à Ariely e ao Kaiky.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Maria José de Rezende, pelas orientações rigorosas e cuidadosas.
Aos professores Ronaldo Baltar e Marcos Cesar Alvarez, pelas importantes dicas e contribuições durante o processo de pesquisa.
Ao prezado professor Aluysio Fávaro e aos professores e professoras Raquel Kritsch, Leila Jeolás, Silvana Mariano, Claudia Baltar e Flávio Wiik.
À minha mãe, Cida, ao meu pai, Massato, ao meu irmão, Flávio e à minha irmã, Katiani.
Agradeço, também, à Raissa Wihby Ventura, pelas valiosas dicas, já desde a construção do projeto. Assim como ao Tito Galvanin Neto, ao Alexandre Jerônimo Correia Lima, ao Eduardo Brunello e ao Rodrigo Kubo, amigos que, de diferentes formas, foram partícipes importantes para a conclusão deste trabalho.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – Código de Financiamento 001.
PREFÁCIO
Os Relatórios do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (RDHs) são ainda pouco estudados no âmbito acadêmico. O livro de Fabio Akira Shishito, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), preenche essa lacuna ao propor uma reflexão que compara esses documentos com um conjunto de investigações sobre o desenvolvimento brasileiro e latino-americano. Sua preocupação não é somente constatar os diagnósticos e prognósticos sugeridos pelos elaboradores (equipes diversas incumbidas da produção dos RDHs), encampadores e divulgadores (Pnud/ONU) desses materiais, mas também lê-los à luz de um conjunto de ações, procedimentos e teorias sociais que travaram, ao longo da segunda metade do século XX, alguns embates sobre as potencialidades, ou não, de efetivação de alguns projetos socioeconômicos e políticos que se agruparam em torno das expectativas modernizantes.
Ao destacar que as prescrições – de técnicos, organismos internacionais, lideranças políticas – ancoradas em ações para alcançar a modernização eram distintas, econômica e politicamente, daquelas que visavam alcançar o desenvolvimento social, o autor desta obra, que ora vem a público, retoma e atualiza um dos debates de maior alcance no mundo acadêmico e político latino-americano: as (im)possibilidades de mudanças substantivas (aquelas capazes de desconcentrar renda, recursos e poder) no continente.
A atualização desse debate, no século XXI, passa pela averiguação dos caminhos traçados pelos diagnósticos e prognósticos associados às políticas de desenvolvimento humano, as quais dizem respeito à construção, por parte dos Estados, técnicos, governantes, lideranças políticas, organizações da sociedade civil e de organismos internacionais, de práticas capazes de conduzir a melhorias da renda, educação, saúde, saneamento básico, participação política, observância dos direitos e fortalecimento das instituições e valores democráticos.
A reorientação das ações e dos procedimentos políticos favoráveis ao desenvolvimento humano enfrenta muitos obstáculos em virtude dos quais já se tentou, em meados do século XX, guinar uma modernização favorecedora de alguns interesses preponderantes para um processo de desenvolvimento social capaz de combater a pobreza e as múltiplas formas de desigualdades. São ainda atualíssimos os inúmeros entraves e desafios, que emergem – também, mas não somente, dos continentes formadores do Hemisfério Sul – e inviabilizam, ainda que em parte, mudanças potencialmente voltadas para a inclusão social e política daqueles que, ao longo de séculos, não têm sido contemplados por qualquer processo de modernização.
Entre os muitos desafios ao desenvolvimento social e humano que surgem da periferia capitalista (postos ao desenvolvimento social e humano), o autor destaca a perene dificuldade de expansão das capacidades (políticas) e dos funcionamentos (expansão dos valores democráticos, participativos e voltados para a constituição de novos equilíbrios de poder). Destaca-se que novamente vêm à superfície os mesmos dilemas e duelos políticos, levantados por técnicos, intelectuais e governantes, que já estavam presentes desde a década de 1950 e podem ser sintetizados nesta questão: é possível uma expansão das capacidades e dos funcionamentos sem desconcentrar a renda, o patrimônio, os recursos e o poder? Esta pesquisa de Fabio Akira Shishito indica que não. Embora seja essencial a expansão das capacidades e habilidades profissionais e políticas, estas não se viabilizam sem que haja um melhor processo distributivo.
Esta investigação põe foco nas agências e agentes que, segundo os elaboradores e encampadores dos Relatórios do Desenvolvimento Humano (RDHs), seriam os responsáveis pela construção de políticas de melhorias sociais capazes de combater a pobreza e as desigualdades extremas. Pela própria natureza prescritiva dos documentos analisados, o autor lança luzes sobre as sugestões e as potencialidades de operacionalização do envolvimento de diversos agentes (Estados, sociedade civil, setores voluntários, ONGs, sindicatos, entre outros) no processo de construção do desenvolvimento humano.
Isso leva a uma reflexão sobre os desequilíbrios de poder que desafiam e emperram a construção de uma lógica democrática e participativa (duradoura e efetiva). É visível que o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) passa a dar destaque ao fato de que os organismos internacionais constituem-se, no limiar do século XXI, em agências voltadas para orquestrar uma nova modalidade de participação tanto destituída de enfrentamentos e confrontos quanto plena de consensos, controles e arranjos inclusivos. Verifica-se que a perspectiva, posta nos RDHs, refugiada, inteiramente, no presente, acaba por idealizar processos de mudanças inexequíveis se postos à luz das exclusões sociais e políticas sedimentadas na periferia.
Por fim, podem ser destacados, ainda, dois outros aspectos fundamentais tratados neste livro: as desigualdades crescentes entre países que dificultam a exequibilidade das prescrições postas pelo Pnud nos RDHs e o modo como as desigualdades políticas e os desequilíbrios de poder, externos e internos, obstam a efetivação de processos de governança democrática, nos quais esses diversos agentes possam, de fato, colocar suas demandas em contextos de interações menos desiguais e mais receptivos às demandas dos segmentos mais pobres e com maior dificuldade de participação e intervenção na arena pública. A governança democrática no cenário internacional, como também nos cenários nacionais diversos da América Latina, defronta-se com impossibilidades conjunturais e estruturais de grande monta.
Sem dúvida este livro de Fabio Akira Shishito é uma leitura essencial para desvendar diversos desafios sociais, econômicos e políticos atuais.
Boa leitura!
Maria José de Rezende
Doutora em Sociologia pela USP
Professora de Sociologia da UEL
lista de abreviaturas e siglas
Sumário
INTRODUÇÃO 17
CAPÍTULO 1
DESENVOLVIMENTO SOCIAL E DESENVOLVIMENTO HUMANO: CAMINHOS, DESAFIOS E PERCALÇOS DE DOIS CONCEITOS PROPOSITIVOS 29
1.1 O debate do pós-guerra:
desenvolvimento e modernização como caminhos distintos 36
1.2 O pensamento cepalino ou estruturalismo latino-americano:
a Redescoberta
da América 41
1.2.1 Celso Furtado e a teoria do subdesenvolvimento 45
1.2.2 O projeto de desenvolvimento social: aspectos centrais 50
1.3 A Abordagem das capacidades: fundamentos teóricos e o desenho propositivo 55
1.3.1 Capacidade e funcionamentos: os conceitos fundamentais da teoria de Amartya Sen 58
1.4 Introdução ao conceito de desenvolvimento humano: inovação ou renovação conceitual? 63
CAPÍTULO 2
A PRIMEIRA DÉCADA (1990-2000): SURGIMENTO E CONSOLIDAÇÃO DA PROPOSTA 67
2.1 Adentrando os relatórios: definições conceituais 71
2.2 O problema da agência promotora do desenvolvimento 74
2.2.1 A noção de mesointervenção na base dos primeiros aconselhamentos 76
2.2.2 Novas Faces da Agência: Voluntariado e ONG 82
2.3 Da visão sobre as desigualdades entre países 91
2.4 Repensando a organização política: descentralização e participação no centro do debate 101
CAPÍTULO 3
OS RELATÓRIOS DA SEGUNDA DÉCADA E OS DESAFIOS POSTOS AO DESENVOLVIMENTO HUMANO 113
3.1 A Cúpula, a declaração e os objetivos de desenvolvimento do milênio 115
3.2 A problemática da agência e o fortalecimento de protagonistas transnacionais 119
3.3 Da visão sobre as desigualdades entre países no século XXI 128
3.3.1 Interdependência e governação: ambiguidades e possibilidades 131
3.4 Democracia e governação democrática: sinônimos? 142
3.4.1 Descentralização e Empowerment: 145
3.5 Desenvolvimento humano como projeto político: algumas problematizações 152
CONSIDERAÇÕES FINAIS 165
REFERÊNCIAS 169
Índice remissivo 183
INTRODUÇÃO
O ano de 1990 marca o início do período em que a Organização das Nações Unidas (ONU) começa a operar com o conceito de desenvolvimento humano. Essa nova forma de abordar a problemática do desenvolvimento, tema que vinha sendo matéria de ampla discussão no interior do órgão desde o fim da Segunda Guerra Mundial, torna-se, gradativamente, a ideia central em direção à qual será orientada grande parte das atuações da ONU com destaque para as análises pautadas no novo conceito e as sugestões direcionadas aos países. Tanto as análises a respeito do desenvolvimento, como as sugestões para alcançá-lo, são difundidas por meio dos Relatórios de Desenvolvimento Humano (RDHs) lançados anualmente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) a partir da década final do século XX.
A pesquisa que ora apresento examina as propostas e as sugestões contidas no interior dos RDHs, entre 1990 e 2010 acerca de ações promotoras do desenvolvimento humano. A investigação buscou elucidar os desafios, as implicações e as consequências sociais, econômicas e políticas que os relatórios podem enfrentar diante de condições específicas do mundo subdesenvolvido. Certamente falar em mundo subdesenvolvido remete a um número grande de países e a um contingente populacional bastante heterogêneo, o que dificulta um tratamento conjunto – ainda que haja entre eles problemas em comum. Por isso, a investigação terá como referência fundamental os dados e os estudos relativos ao Brasil.
Ao longo deste livro mobilizarei a ideia de mundo subdesenvolvido
ou países subdesenvolvidos
porque parto da concepção de que essas noções marcam com mais precisão as distinções socioeconômicas da clivagem centro-periferia do que as expressões correntes países em desenvolvimento
ou países emergentes
. Isto é, recorrerei à noção de subdesenvolvimento como uma referência conceitual abrangente e aberta para se referir tanto àqueles países que possuem elevados índices de crescimento econômico conjugado a problemas sociais, como aos que conjugam baixo rendimento e mazelas sociais. Em síntese, o subdesenvolvimento será tratado como um padrão de organização social e político que pode se desenhar de maneiras distintas em diferentes estruturas, mas que tende a subsidiar formas de convivência social fundadas em desigualdades de poder.
Os autores que teorizaram sobre suas características enfatizaram fortemente esse aspecto, vale dizer, não se trata de uma etapa do processo de desenvolvimento, é sim um fenômeno marcado por especificidades estruturais decorrentes de um tipo particular de inserção na economia internacional e por uma forma específica de organização do poder interno (FURTADO, 2000). Trata-se, portanto, de um fenômeno que se concretiza e se manifesta intra e internacionalmente. Assim, a teoria do subdesenvolvimento afirma haver uma assimetria de poder entre países centrais e periféricos, assim como um desequilíbrio de poder no interior das sociedades subdesenvolvidas. Não por outra razão, os problemas típicos das sociedades subdesenvolvidas sejam concentração aguda da renda e da riqueza, níveis elevados de pobreza absoluta, desigualdades regionais, entre outros.
O conceito de subdesenvolvimento com o qual se opera nesta pesquisa tem, ainda, dois elementos fundamentais. O primeiro diz respeito à ideia de que o subdesenvolvimento não é um problema de ordem estritamente econômica, ele é expressão de um complexo de relações econômicas, políticas e sociais. O segundo aspecto ressalta que ele não constitui uma etapa do processo de desenvolvimento, é, antes, uma forma singular de organização social que, não raro, manifesta-se ao lado de processos de desenvolvimento. Nesse sentido, menos porque nomeia dada formação social e mais porque apresenta critérios para pautarmos a análise, a noção de subdesenvolvimento estará na base da investigação que segue. Com efeito, países como o Brasil ou a Índia, por exemplo, vêm atravessando mudanças significativas em suas economias; houve ao longo dos últimos 60 anos expressiva diversificação de suas estruturas produtivas, não obstante manterem, ainda, características de países periféricos. Certamente o fenômeno do subdesenvolvimento se renovou ao longo das últimas décadas e precisa ser resgatado e reanalisado a partir das novas configurações. O Brasil, por exemplo, observou significativa diminuição do desemprego e da pobreza absoluta durante as primeiras décadas do século XXI, o que acarretou, certamente, alterações na dinâmica econômica, mas estariam esses elementos incidindo sobre as estruturas do subdesenvolvimento?
Podemos indagar, por exemplo: de que modo às sugestões contidas nos RDHs equacionam o foco nas capacidades dos agentes e a reprodução insistente da desigualdade de renda¹? Como a proposta do Pnud/ONU trabalha o problema da participação política da sociedade civil nos países em que a sociedade é historicamente marcada por autoritarismos? Como os Relatórios entendem o papel do Estado no processo de desenvolvimento e que implicações esse entendimento pode ter diante dos desafios de combate à pobreza e às desigualdades?
As variáveis que se elegem para verificar se o processo de desenvolvimento avançou ou recuou são construções intelectuais que dependem de uma visão de mundo, de uma concepção de indivíduo, de um entendimento do que seja uma sociedade, de como se compreendem e quais os valores que devem pautar as relações e as ações sociais, entre outras formulações teóricas. Ora um, ora outro ponto de vista sobressai num contínuo embate de teorias e narrativas que, longe de ser apenas disputas discursivas, criam e reproduzem as condições da mudança social, ao mesmo tempo em que são criados por elas. Eis porque se entende que o desenvolvimento é um tema essencialmente político.
Aí reside também a razão pela qual a ideia de desenvolvimento revela em seu âmago uma ambiguidade de origem que impõe desafios para toda a operacionalização conceitual ulterior. Historicamente essa ideia assumiu essas duas faces distintas, mas nem sempre percebidas: a de um conceito analítico e a de uma ideia política. Os resíduos teóricos de sua raiz dos séculos XVIII e XIX subsistem até os dias atuais do século XXI, motivo pelo qual, alerta Norbert Elias (1994), aqueles que pretendem resgatar, a partir do final do século XX, o conceito de desenvolvimento correrão o risco de sofrer as duras críticas da geração que vivenciou o desastre do antigo conceito de desenvolvimento, aquele que entrevia o progresso inescapável da humanidade. Contaminados pelo estigma da desilusão, conceitos como ‘progresso’ e ‘desenvolvimento’ pareceram tornar-se impossíveis de usar na pesquisa
(ELIAS, 1994, p. 144-145).
Essa contaminação pelo estigma fragiliza nos conceitos sua face analítica, ou seja, a desilusão impregnada nesses conceitos borra as fronteiras entre o conteúdo teórico-explicativo e o conteúdo ideológico-normativo, fazendo com que a balança pese, no mais das vezes, para o lado do segundo. Para esse movimento contribuíram também os sociólogos que, ao invés de conduzirem as investigações sobre o desenvolvimento eliminando do processo de pesquisa os elementos estigmatizadores, simplesmente evitaram a temática e, quando não, em vez das teorias processuais apropriadas ao assunto, colocaram no centro de seu trabalho teorias e conceitos revestidos do caráter de lei
(ELIAS, 1994, p. 145).
Norbert Elias (1994), no entanto, partilhava de uma teoria particular do processo civilizacional que