O dia em que comemos Maria Dulce
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Book preview
O dia em que comemos Maria Dulce - Antônio Mariano
Prefácio
Antônio Mariano: Sem favor algum
Paulo Bentancur
Contos
A construção do silêncio
Heroi interrompido
Estas imagens
Olhos no chão
Três cruzes
Chocolate quente
Veneno do arrependimento
Observação interrompida sobre as aranhas
O dia em que comemos Maria Dulce
Entre o nariz e o beiço
O poeta
Seguindo Alice
Imensa asa sobre o dia
Referências das epígrafes usadas
Sobre o autor
Orelhas - Whisner Fraga
Créditos
Para
Mariano Francisco de Lima, pai;
Marluce Francisca de Oliveira, mãe;
Ivo Limeira de Lima, filho,
histórias de ontem e de amanhã.
Antônio Mariano: Sem favor algum
Paulo Bentancur*
O dia em que comemos Maria Dulce, livro de contos de Antônio Mariano – poeta, ficcionista e romancista – não traz esse título por acaso. Nem por acaso esse é um dos melhores contos do volume, o de título homônimo. Parte de um contexto do precário, no qual a fome é uma diária recorrência. O conjunto de treze histórias, inevitavelmente diferenciadas, embora homogêneas na excelência verbal, brotam marcadas por estigmas fabulatórios. A aparente ambiguidade do título é, na verdade, contundente.
Numa comunidade onde a pobreza é cenário, a constituir-se na essência da condição humana, o estômago é o órgão mais agredido e a desesperança pelo alívio, mais que pelo prazer, mostra-se como uma atmosfera de inquietude, de um desesperado desejo, de uma necessidade que não tem forças para negociar com o tempo. É preciso comer, e já!
A súbita aparição da menina Maria Dulce, que a cada encontro com os adolescentes amigos seus sempre traz alimentos, vai construindo uma relação de espera, a cada dia, pela chegada da menina. Essa relação diz muito de si, pela intensidade. Maria Dulce é uma espécie de ser emblemático a amenizar o sofrimento dos companheiros.
Numa transição muito bem realizada, quase imperceptível, a menina, espécie de figura na linha do surreal, vai sendo consumida lentamente, à medida que seus colegas lhe descobrem no corpo não um corpo como os seus, mas os mais variados quitutes, doces, comidas em cada órgão. Assim, um dedo que alguém chupa, e logo morde, é, na verdade, além de um dedo, uma espécie de pirulito. Um braço é também algo consistente para se comer. Uma perna, um membro delicioso onde, já sem resistir, os amigos devoram.
Maria Dulce é real, embora sugira uma aparição. Um conto tão desconcertante e original assim, parte de um lugar paupérrimo, sofrendo brutalmente as faltas essenciais para sobreviver, e propicia uma pausa de natureza estética típica do fantástico.
Quando nada mais sobrar de Maria Dulce, a sugestão é que com o tempo, sem outras saídas de típico estranhamento, nada mais vai sobrar de todos os outros. Uma espécie de apocalipse.
Se isso é impressionável em si, sem nenhuma dúvida, impressionam também diversos outros contos. Antônio Mariano possui as duas mais importantes características de um escritor de primeira linha: 1) é um raro criador de tramas, inesperadas, perturbadoras; 2) e costura uma linguagem sólida e dotada do que eu chamaria de a poesia da prosa, isto é, uma prosa cuja expressividade aproxima-se bastante da metáfora. As cenas que apresenta ficam entre o cinematográfico em função de um estilo cujo zelo atinge um altíssimo nível.
O conto de abertura do livro, A construção do silêncio
, carrega em si um peso metalinguístico considerável. Temos um pai que simplesmente mergulha num mutismo que equivale ao possível diálogo com a família. Um conto – gênero sustentado pela palavra – no qual o silêncio é a grande comunicação buscada, cada vez mais, até o fim, convenhamos, supera como projeto ficcional muito do que se tem produzido na literatura contemporânea nacional.
E assim como ele, praticamente a maciça maioria das histórias breves.
Antônio Mariano é dotado de tantos recursos que em Herói interrompido
um passante, testemunhando um roubo, corre atrás do ladrão e, paradoxal e ironicamente, acaba ele, o herói por acaso
, pagando o crime do culpado, na confusão de tanta gente e de uma perseguição a se confundir com fuga. Um humor negro, amargo, perpassa ao fundo do enredo.
Entre o nariz e o beiço
é um conto de iniciação. As descobertas do desejo por uma menina, vizinha, e a hostilidade crescente pelo amor. Começando pelo medo e terminando pela coragem, pela decisão de provar-se capaz. Com isso ganha o macho e perde o menino encantado pela vizinha, naturalmente contrariada.
A cada conto comentado, algo igualmente maior, ou mais, se põe ao lado do que é dito: o estilo. Bouffon disse: O estilo é o homem
. Eis Antônio Mariano que, escrevesse contos menos surpreendentes, e ainda assim mesmo os faria com um capricho admirável. Não bastando isso, sua imaginação é de um tipo singular. Lê-se suas histórias com um prazer enorme e dúplice – o de quem lê o que emociona ou impacta, e também o que, no plano estético, demonstra uma beleza notável.
E quando achamos que já chega, que o autor atingiu o máximo de si, o ápice de uma imaginação bem-dotada, eis que surge O poeta
, um conto delirante no qual o personagem principal cria para si a persona do poeta que não é nem nunca será. Mas fica, sugerida, a pergunta: afinal, qual é mesmo a natureza exata do poeta? E também um humor provocativo.
Seguindo Alice
é um drama envolvendo dois adolescentes numa exploração de terreno. A forma como se dá a agilidade da dupla os envia para uma perseguição desafiadora de quem é mais hábil. Contando assim, parece um enredo pouco mais que singelo. No entanto, sempre tendo à mão um trunfo, o autor chega ao desfecho do conto de uma forma terrível. Uma trama, efetivamente, de horror.
A história que fecha o livro, Imensa asa sobre o dia