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Jogo de papéis: Um olhar para as brincadeiras infantis
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Jogo de papéis: Um olhar para as brincadeiras infantis

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As análises apresentadas neste livro consideram que as crianças desde cedo vivem em seu cotidiano situações plenas de formas de relacionamento interpessoal e de estados afetivos que ligam os parceiros. Tais formas são socialmente constituídas e constituem papéis, que são jogados, no sentido de experienciados, investigados, arriscados como modos de ação, pelas crianças. O jogo de papéis aparece mais claramente nas explorações conjuntas de objetos e nas disputas que as crianças fazem nas brincadeiras de faz de conta. Nelas, elas assumem papéis em vários tipos de interação que se entrecruzam, alternam-se, contagiam-se.
LanguagePortuguês
Release dateNov 30, 2017
ISBN9788524926143
Jogo de papéis: Um olhar para as brincadeiras infantis

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    Jogo de papéis - Zilma de Ramos de Oliveira

    Infantil.

    PARTE 1

    Um enfoque

    teórico-metodológico

    1

    Interações sociais: como estudá-las?

    A tendência adotada pelas ciências sociais no final do século XIX e início do século XX de voltar-se ao mundo das relações ao invés de estudar fatos isolados criou provocativas explicações sobre o desenvolvimento humano ao enfatizar a ideia de interação social como o modo básico de conceituar mudanças comportamentais.

    A relação entre condições de vida, formas culturais de interação e desenvolvimento psicológico permeia a perspectiva aberta pelos trabalhos de Vygotsky (1986) e Wallon (1966) que, de uma perspectiva inspirada no marxismo, discorreram sobre a formação da consciência e do sentido de si pelo homem. Compreender tal relação requer que os estudiosos do tema definam o que se entende por interação social, conceito fundamental na obra daqueles autores.

    Segundo eles, o desenvolvimento humano não decorre da ação isolada de fatores genéticos que buscam condições para o seu amadurecimento, nem apenas de fatores ambientais que agem sobre o organismo controlando seu comportamento. Ele se dá por meio das trocas recíprocas que se estabelecem durante toda a vida entre fatores biológicos e sociais, e entre indivíduo e meio, cada aspecto influindo sobre o outro. Nesse sentido, as características do indivíduo e o conhecimento que ele tem do mundo são construídos especialmente nas relações interpessoais em que ele se envolve e que o levam a atribuir sentido às situações, e a apropriar-se de formas de agir, sentir e pensar vigentes na cultura. É na interação da criança em determinado tempo e espaço com outros seres humanos em práticas sociais ocorrendo em contextos históricos concretos e, por consequência, simbólicos, com suas tecnologias, valores e seus modos de pensar e expressar emoções, que se dá a gênese do pensamento, a construção do conhecimento e a constituição de si mesmo como sujeito, pelo indivíduo.

    A ideia de interação social é assim aproximada da noção de ação conjunta, da relação Eu/Outro, em que sentidos são construídos sempre em resposta a uma alteridade. Mas tal noção vai além disso e abrange o social enquanto aparato histórico e ideológico, enquanto conjunto de normas, valores, representações. Assim, a atividade em parceria na realização de atividades culturais concretas — tais como: construir um brinquedo com sucata, consolar alguém, escrever uma carta, preparar um seminário, verificar a origem de um defeito em uma máquina, editar um texto no computador etc. — constitui uma condição necessária para a formação das funções psíquicas caracteristicamente humanas.

    O adulto como parceiro de interação da criança

    Em geral quando se pensa nos elementos necessários à coordenação da interação humana defende-se a ideia de sintonia, que implica a disponibilidade de um indivíduo para captar e complementar o papel que o outro assume em uma situação. Na literatura tradicional sobre o desenvolvimento infantil de bebês isso ocorreria, em especial, nas díades mãe-criança.

    Muitos trabalhos sobre o desenvolvimento de bebês, elaborados a partir da discussão de conceitos trazidos pela Etologia, procuraram estudar o par mãe-bebê entendido como um sistema adaptado evolucionariamente para interagir. Graças a isso, o bebê viria ao mundo especialmente equipado com determinadas estruturas orgânicas que, na forma de vieses perceptuais inatos, mediariam sua relação com o ambiente social. Tais estruturas o levariam a responder a estímulos associados sobretudo a outros seres humanos, particularmente os associados a figuras femininas, como a face e as vozes. Estes estímulos ativariam as estruturas básicas do recém-nascido as quais, por sua vez, levariam os adultos a lhe responderem, estabelecendo-se assim uma interdependência comportamental desde o início entre eles. A mãe, ou outro adulto, é quem auxilia o bebê a efetivar as primeiras regulações de seus atos reflexos e de suas reações fisiológicas difusas. Tal regulação começaria por uma dimensão temporal, com a mãe inserindo suas ações nos ciclos rítmicos do bebê. A partir daí haveria um ajuste dinâmico entre as capacidades de regulação da própria criança e a regulação coordenada pela mãe. Conforme aquelas capacidades tornam-se mais efetivas, observam-se maior iniciativa, flexibilidade e autonomia por parte da criança que, pouco a pouco, obtém os resultados pretendidos sem necessitar tanto do apoio materno (SCHAFFER, 1984).

    Essa visão da mãe como parceiro privilegiado do bebê foi reforçada pelo psicanalista John Bowlby que, solicitado pela Organização Mundial de Saúde a analisar a situação de privação materna ocorrida com muitas crianças na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, quando milhões de homens e mulheres foram mobilizados pelo esforço bélico, chamou a atenção para os efeitos desastrosos no desenvolvimento infantil da ruptura de laços afetivos entre mãe e bebê. Ele formulou uma teoria, denominada teoria do apego, ou da ligação afetiva, segundo a qual para haver um desenvolvimento normal a criança deveria estabelecer um vínculo afetivo durante os primeiros anos de vida, uma relação contínua e íntima com uma figura materna (a mãe ou quem a substituísse) (BOWLBY, 1969).

    A função do apego para a espécie seria favorecer a manutenção de uma proximidade entre mãe e bebê que assegurasse contato e proteção sempre que necessários, sendo que a proximidade com o adulto favoreceria a aprendizagem da criança por meio da observação de modelos (KONNER, 1972). O apego seria importante no processo de socialização da criança desde que, ao não considerar todas as pessoas que a rodeiam como equivalentes e estabelecer uma relação afetiva estável com poucos indivíduos de seu meio social, a criança inicia um processo de identificação que facilita a assimilação dos valores necessários à sua adaptação ao grupo social ao qual pertence (SCHAFFER, 1971).

    Voltando aos estudos de Bowlby, apesar do consenso existente na época quanto aos efeitos perniciosos da criação de crianças em instituições tipo orfanato, não era unânime entre os pesquisadores a interpretação de que a principal causa de todos os distúrbios observados na criança fosse a separação ou privação da mãe. Um ambiente onde prevalecesse uma ausência de estimulação sensorial, uma alimentação precária e inadequada e a ausência de relação individualizada entre adulto e criança poderiam igualmente responder pelos distúrbios verificados. Ademais, há necessidade de se considerar sempre na interpretação dos resultados apresentados por Bowlby a existência de um contexto social mais amplo permeando a relação adulto-criança. Um adulto encarregado de cuidar das crianças em época de guerra está sobrecarregado de preocupações que geralmente lhe dificultam ter disponibilidade pessoal para estar com cada criança, para brincar e dialogar com ela. Face a questionamentos feitos, a noção de apego foi ampliada de modo a abranger outras figuras-alvo, cujo número dependeria do ambiente social da família: família extensa ou família nuclear (ROSSETTI-FERREIRA, 1984).

    Apesar do valor do trabalho de Bowlby chamando a atenção para a afetividade na relação adulto-criança e abrindo uma linha de pesquisa para que essa afetividade na relação fosse estudada com maior rigor científico (AISNWORTH et al., 1978), seu relato terminou oferecendo argumentos contrários a uma política de facilitação do trabalho feminino através da abertura de creches (ROSSETTI-FERREIRA, 1984).

    No ambiente familiar ou comunitário a interação adulto-criança passou a ser cada vez mais estudada em relação ao processo de aquisição da linguagem. De acordo com Lemos (1981, 1982, 1986), os adultos atuam como interlocutores básicos da criança, fornecendo-lhe uma matriz de significações a partir da qual se dá não só a construção das categorias do mundo físico e social, como, sobretudo, a constituição da própria criança enquanto sujeito. A vivência de um bebê na díade mãe-criança contribuiria, progressivamente, para ajudá-lo a diferenciar-se, a separar aquilo que é seu daquilo que pertence a outrem, em um processo de apropriação pelo bebê da linguagem verbal de seu grupo cultural. Isso ocorre quando a mãe, interpretando pistas difusas do comportamento do bebê, responde-lhe de um modo compatível à atribuição feita.

    Por exemplo, se um bebê faz um determinado movimento de corpo acompanhado de um sorriso, a mãe pode aprontá-lo para sair à rua por ter assumido que os comportamentos do bebê indicam que ele quer passear. Com isso ela tira a díade de um momento de indiferenciação colocando suas ações e as do bebê em um determinado contexto de significações, ou seja, atribuindo papéis a si e a seu filho. Este, todavia, através de sua ação, contribui também para constituir a mãe como um sujeito: ao iniciar um choro forte e persistente, o bebê leva a mãe não só a investigar as causas do possível desconforto, como também a construir representações a respeito de seu próprio papel de mãe e sobre como deveria agir para reduzir o desconforto e educar bem a criança.

    Muitos estudos têm apontado que cada ser humano possui uma capacidade biologicamente herdada de viver culturalmente e de compreender os outros seres humanos como agentes intencionais iguais a si mesmo (TOMASELLO, 2003). Pouco depois de nascerem, os bebês humanos entabulam com quem cuida deles protoconversas que são profundamente sociais, por terem conteúdo emocional e estrutura alternada de participação. Nessas interações os bebês imitam alguns movimentos corporais dos adultos como forma de se identificar com eles. Isso evolui de modo que, perto dos nove meses, os bebês começam a participar de comportamentos de atenção conjunta que parecem indicar uma compreensão emergente das outras pessoas como agentes iguais a si mesmo e cujas relações com objetos, situações, podem ser acompanhadas, dirigidas ou compartilhadas.

    Retomando o que foi exposto, se admitirmos o caráter básico da díade adulto-criança no desenvolvimento infantil, teremos várias questões a fazer sobre a creche como contexto de aprendizagem e desenvolvimento de crianças pequenas, visto que ela constitui um ambiente onde poucos adultos são responsáveis pelo cuidado e educação de um grande número de crianças e onde outras crianças são os parceiros mais disponíveis para a interação (CAMAIONI, 1980; ROSSETTI-FERREIRA et al., 1985). Investigá-la constitui uma excelente situação para testar o modelo dialógico de desenvolvimento aqui exposto.

    Estudos realizados em creches na região de Ribeirão Preto voltadas para o atendimento de população de baixa renda, realizados na década de 1970 (ROSSETTI-FERREIRA et al., 1981), mas que descrevem situações até hoje observadas em muitos locais (vide trabalhos de avaliação da qualidade do trabalho em creches realizados pela Fundação Carlos Chagas (MALTA CAMPOS, FULLGRAF e WIGGERS, 2006), apontaram baixa frequência de interação envolvendo adulto-criança. Condições negativas presentes no ambiente de trabalho (como indefinição de funções, sobrecarga de trabalho, baixos salários, inexistência de um processo de seleção e treinamento adequado para as educadoras, baixa razão adulto-criança, ou seja, grande número de crianças por adulto) poderiam estar contribuindo para a existência desse meio interacional pobre. Além disso, as educadoras representavam a criança como alguém carente afetivamente, definindo seu papel como sendo prioritariamente o de propiciar cuidados físicos e algum apoio afetivo. Desse modo, a educadora não se percebia como alguém que deve também interagir com as crianças, estimulando-as a interagir com seus pares (PICCOLO, 1983; SECAF SILVEIRA et al., 1987), o que poderia terminar prejudicando o desenvolvimento da criança, dada a pouca oportunidade que esta teria para se envolver em interações com parceiros privilegiados que a auxiliassem a recortar seu comportamento, tornando-o significativo.

    Seria importante, portanto, verificar como se dá a construção da criança pequena enquanto sujeito quando ela passa grande parte do tempo de vigília em um ambiente onde a possibilidade de envolver-se em atividades com parceiros mais experientes e que lhe garantam complementação de papéis é menor e onde predominam oportunidades de interação de coetâneos. Com essa preocupação, nosso grupo de pesquisa passou a investigar as interações que as crianças estabelecem com parceiros de idade em creches.

    O estudo das interações criança-criança

    O interesse por investigar as funções das interações das crianças pequenas foi observado nas décadas de 1920 e 1930, com o desenvolvimento de métodos de observação, de experimentação, de métodos sociométricos, seguido por um período de declínio de interesse por quase 40 anos, depois do qual houve uma retomada, na década de 1970, de pesquisas sobre interação criança-criança traduzindo uma diversidade de preocupações (MUELLER e COOPER, 1986; RUTANEN, 2007).

    Em geral as pesquisas realizadas após os anos 1970 partiam de concepções divergentes acerca da interação humana: ora investigavam a presença de respostas dirigidas aos parceiros (olhar, sorriso, vocalização, entrega ou tomada de objeto etc.) de forma pouco contextualizada da situação, ora estudavam a ocorrência de comunicação entre crianças vista como a formulação e o entendimento de mensagens por parceiros já constituídos. Muitas vezes o processo interativo era encarado de forma excessivamente linear, expresso em algumas poucas categorias que não apreendiam sua dinâmica de ser e modificar-se.

    Havia preocupação com uma metodologia rigorosa capaz de controlar variáveis e garantir replicações, adotando-se o delineamento de situações experimentais que, por serem excessivamente planejadas, chegavam muitas vezes a perder sua validade ecológica. Predominava nesses estudos o exame estatístico de correlações. Com isso, perdia-se de vista o processo de desenvolvimento e investigava-se categorias-produto, sem compreender sua gênese. Em alguns casos eram realizadas análises de episódios ou apresentados relatos mais ou menos minuciosos de interações de crianças sem, contudo, uma explícita base teórica que fundamentasse as discussões dos dados. Tais relatos mostravam que as crianças interagiam, mas não explicavam como o faziam. Em suma, preponderava na área uma postura mais preocupada em acumular informações descontextualizadas do que em explicar o processo que lhes era subjacente.

    Com base nesse olhar metodológico, a capacidade de interação do bebê com o coetâneo era pouco reconhecida, os comportamentos socialmente orientados das crianças eram frequentemente vistos como isolados e sem articulações que permitissem interações mais longas e sustentáveis. De modo geral, entendia-se que, por não serem capazes de perceber os desejos ou intenções do parceiro, de se ajustar ao que ele propõe, de negociar um acordo conjunto, era difícil para essas crianças estabelecerem interações mais complexas e duradouras.

    No início dos anos 1980, poucos trabalhos acerca da interação de crianças apoiavam-se em uma determinada teoria em Psicologia do Desenvolvimento. Alguns deles questionavam o conceito piagetiano de egocentrismo (MUSATTI, 1986; STAMBACK et al., 1983), outros partiam da noção walloniana de diferenciação Eu-Outro e investigavam a imitação imediata entre crianças (NADEL e BAUDONNIÈRE, 1981). O clima de renovação de paradigmas de análise levou alguns estudos a questionarem o conceito de interação utilizado em investigações anteriores e a apontarem que a atividade e a interação de crianças não dependiam apenas do seu

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