Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as fronteiras da discórdia
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Preconceito contra a origem geográfica e de lugar - Durval Muniz de Albuquerque Jr.
história.
Capítulo 1
A construção das fronteiras: uma revisão bibliográfica
Para entendermos como surgiram, historicamente, os preconceitos em relação à origem geográfica dos indivíduos e os estereótipos que marcam povos, regiões ou nações, é preciso que façamos a história do estabelecimento das divisões territoriais, das fronteiras que separaram, separam e dão identidade aos diferentes grupos humanos que habitam, hoje, a terra. História dinâmica, pois só no século XX, inúmeros foram os rearranjos, as mudanças, as remarcações que sofreram as fronteiras nacionais. Continentes como a Europa, a África e a Ásia viram, ao longo do século passado, constantes mudanças em suas divisões territoriais, de denominação de países e de suas capitais, motivadas pelas duas grandes guerras mundiais, pelo processo de descolonização que levou ao surgimento de muitos países africanos e asiáticos e pelos confrontos gerados pela guerra fria e a divisão de países ou antigas colônias europeias em dois Estados, com regimes econômicos e políticos distintos, como foram os casos da Coreia, do Vietnã e da Alemanha, divididos pelo choque entre socialismo e capitalismo. Só com a criação do Estado de Israel, em 1948, e com as guerras árabe-israelenses que se seguiram, todo um rearranjo territorial e de fronteiras foi realizado no Oriente Médio. Na década de 1980, com o fim do socialismo em muitos países do leste europeu, notadamente na União Soviética, um grande número de novos países surgiram e antigas rivalidades nacionais e étnicas explodiram em conflitos genocidas, como os que antepuseram as etnias e povos que compunham a antiga Iugoslávia: sérvios, croatas, bósnios, montenegrinos, macedônicos, eslovenos, herzegovinos. Em vários países africanos, a construção do Estado Nacional pós-independência colocou em conflito diferentes etnias e grupos rivais, como no regime de apartheid da África do Sul, nas guerras civis de Angola, Sudão, Serra Leoa, Mali, Ruanda, dando origem a verdadeiros genocídios.
Estes conflitos, somados a outras tensões que dividem os vários países, nações e povos na contemporaneidade têm colocado o tema das relações internacionais e da história da produção das identidades espaciais no centro da produção intelectual, acadêmica e, mais particularmente, feito emergir um conjunto de obras no campo da história, uma historiografia, voltada para tratar da emergência destas divisões territoriais e abordar a invenção histórica destas fronteiras e destas identidades, sejam nacionais, sejam regionais, sejam locais. Um grupo de autores se volta para o passado na tentativa de entender como se configurou, ao longo do tempo, as fronteiras que estão estabelecidas hoje e que lutas e enfrentamentos econômicos, políticos ou culturais gestaram estas distinções e estas separações que nos identificam atualmente. Ao contrário do que normalmente pensam os estudantes de primeiro ou segundo graus, a história e os historiadores não se interessam apenas pelo que é velho, pelo que passou e por nada que tenha a ver com nossos dias, com nossas vidas. Quando o historiador vai ao passado é para entender o nosso próprio tempo. Estudamos e produzimos história para entender o presente e não apenas o passado. Porque os professores de história e historiadores sabemos que o passado não está lá atrás, fechado em si mesmo, acabado. O passado continua convivendo com o presente; muito do que somos, fazemos, pensamos, gostamos, odiamos, nos vem do passado, nos chega através das gerações anteriores. Como veremos neste livro, muitos dos nossos preconceitos, muitas das nossas formas de caracterizar os outros, de ver os habitantes de dados lugares e países, foram pensados e produzidos em outro momento, em outro contexto histórico, motivados por situações diferentes das de hoje, mas que, no entanto, continuam se repetindo em opiniões, imagens e estereótipos, que não sabemos direito de onde vêm e, o pior, muitas vezes achando que aquilo que dizemos é uma realidade incontestável, naturalizando assim o que não é natural. É para isto que estudamos história: para que percamos a inocência em relação às coisas que nos cercam; para passarmos a perceber que todo e qualquer aspecto de nossa sociedade e de nossa cultura tem um passado que o produziu, que se explica por um processo que o antecedeu. Nada é assim porque tem que ser ou porque é assim mesmo, mas foi produzido pelos próprios homens, em algum momento, e segundo determinados interesses e em meio a determinadas disputas, lutas, conflitos. E é isso que a história nos ajuda a ver. A história nos retira a inocência diante daqueles eventos que nos cercam, prepara a nossa subjetividade para ter uma visão crítica diante das coisas que nos dizem como sendo verdades incontestáveis.
Um primeiro conjunto de obras que nos interessam, ao discutirmos o tema do preconceito quanto à origem geográfica, são aquelas que tratam da emergência das nações modernas e do nacionalismo como discurso e prática que, paulatinamente, irão acompanhá-las. As nações ou Estados Nacionais, como conhecemos hoje, nem sempre existiram. Elas são uma criação relativamente recente e realizada apenas na Europa, num primeiro momento. O próprio conceito de nação foi profundamente alterado, passando de uma palavra que nomeava qualquer conjunto de pessoas que partilhavam costumes, crenças, hábitos e modos de viver como, por exemplo, a nação judaica, para designar um conjunto de pessoas que vivem sob o mesmo governo, que obedecem a um mesmo Estado, que pertencem a um mesmo território sob a soberania de um dado regime político. Este fenômeno, o surgimento dos Estados Nacionais, vai se dar lentamente a partir do século XI, sendo Portugal considerado um dos primeiros Estados modernos a se constituir, ainda no século XIV. Somente com o fim da descentralização do poder político que vigorara durante a Idade Média é que vai surgir este fenômeno que marcará uma nova etapa na forma dos homens se organizarem politicamente e estabelecerá o ponto de partida para novas formas de rivalidades e disputas entre os grupos humanos. As antigas nações, que eram definidas usando critérios tão díspares como o uso da mesma língua, o pertencimento a uma mesma etnia, o uso de um território comum, uma história partilhada ou traços culturais idênticos, passam agora a ser definidas fundamentalmente a partir de um critério político, ou seja, para ser nação passa a ser necessário ter uma organização política, um Estado próprio. Para cada nação um Estado, este tornou-se o que se convencionou chamar de princípio das nacionalidades. Este novo sentido da palavra nação só vai se firmar por volta do século XVIII, com a crise do absolutismo e a emergência das teorias liberais em torno do Estado. É esta definição que aparece, ainda hoje, na Enciclopédia Brasileira Mérito que define nação como sendo a comunidade de cidadãos de um Estado, vivendo sob o mesmo regime ou governo e tendo uma comunhão de interesses comuns, subordinados a um poder central que se encarrega de manter a unidade do grupo
(Hobsbawm, 1990, p. 27-28).
A relação entre nações e nacionalismo vai se dar de forma mais tardia ainda, sendo em grande medida uma consequência da Revolução Francesa ou das revoluções burguesas que puseram fim ao Antigo Regime e do pensamento liberal, que irá considerar como fundamental para a existência de uma nação, além do Estado, a existência de um vínculo subjetivo, afetivo, entre o cidadão e seu país, entre o cidadão e sua nação. O discurso nacionalista vai considerar que as nações não são apenas o Estado e seu território, mas fundamentalmente dependem para existir de seu povo, que deve amá-las e estar disposto a defendê-las e por elas se sacrificar, seja no trabalho, seja no campo de batalha. As nações, para os nacionalistas, não nasciam já definidas. Elas eram uma construção política e cultural, que se dava através da educação e do inculcamento do amor à pátria e do sentimento cívico, que se daria nas várias instituições sociais responsáveis pela criação e manutenção das nacionalidades: a família, a escola, a Igreja, o Estado etc. Este discurso nacionalista tendeu a se exacerbar, ao longo do século XIX, à medida que as disputas entre os Estados Nacionais europeus por áreas coloniais na África e na Ásia se acentuaram, no período conhecido como era do imperialismo. A independência das treze colônias norte-americanas, no fim do século XVIII, e das colônias da América Latina, no século XIX, foi feita sob a bandeira do discurso nacionalista. No século XX, o nacionalismo foi uma das variáveis fundamentais nos acontecimentos que levaram às duas guerras mundiais e esteve presente também em acontecimentos como a descolonização africana e asiática. As chamadas revoluções socialistas — apoiadas no pensamento marxista (de Karl Marx, filósofo alemão do século XIX), que propunha a união internacional de todos os trabalhadores para enfrentarem os patrões e a sociedade capitalista, sendo, por isso, identificada como uma proposta política internacionalista, já que não levava em conta as divisões nacionais em suas atividades revolucionárias — terminam por se realizar como revoluções nacionais, revoluções que visavam fundar o socialismo em um só país, e, portanto, se tornam veiculadoras e promotoras de discursos nacionalistas, muitos deles se apresentando como versões nacionais do pensamento marxista como o maoismo (de Mao Tse-tung) na China ou o castrismo (de Fidel Castro) em Cuba. Muitos dos preconceitos quanto à origem geográfica advieram do discurso nacionalista ou foram uma forma de veicular o discurso da nacionalidade. Podemos considerar que a animosidade existente entre brasileiros e argentinos ou entre mexicanos e norte-americanos tem como um de seus componentes principais a questão nacional. A ideia de nação, à medida que generaliza as pretensas características que teria um dado povo, é um alimento constante também para a construção de generalizações preconceituosas a respeito deste mesmo povo. Se o discurso nacionalista brasileiro nos faz crer que somos todos alegres e hospitaleiros, o que é uma generalização inadmissível, pois conhecemos centenas de brasileiros que não possuem estas características, isto é um passo para que os argentinos nos caracterizem a todos como sendo macaquitos
, por sermos todos pretensamente negros e gostarmos de imitar os outros, ou talvez por fazermos muita micagem, o que não deixa de ser uma outra versão, com o sinal trocado, para nossa pretensa alegria inata, defendida pelo nosso discurso