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O melindre nos dentes da besta
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Ebook156 pages2 hours

O melindre nos dentes da besta

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Mais que a história, a narrativa. O texto de Carol Rodrigues é hipnótico, tem um ritmo intenso e cativa o leitor com a urgência de suas imagens inesperadas. Na voz do prisioneiro, em sua travessia rumo ao exílio, a autora vai tecendo com engenho e habilidade os fios dessa história de crime e castigo e nos guiando pelos labirintos da memória e da linguagem para revelar aos poucos o que se oculta por dentro dos silêncios da ilha. A costura sutil é executada com maestria, remontando ao nascimento das gêmeas Mitra e Varuna, as carrancas com os dentes já prontos, a infância vivida junto com a amiga Ulina, o presságio das paixões avassaladoras e das tragédias que viriam a tomar conta do lugar. Depois da estreia com os contos do premiadíssimo Sem vista para o mar, Carol Rodrigues se afirma de vez com este romance como um nome de peso na literatura nacional, com talento e originalidade.
LanguagePortuguês
Publisher7Letras
Release dateAug 31, 2020
ISBN9786586043723
O melindre nos dentes da besta

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    O melindre nos dentes da besta - Carol Rodrigues

    Para Lino,

    o avô-menino

    correndo como um touro azul

    por sua própria sombra, arremetendo

    com bravura contra ninguém,

    cecília meireles

    Essencialmente a questão é:

    você vive, ou você insiste nas palavras?

    john cage

    parte i – Museu

    1.

    Escolhe; diz a última voz, duas mãos ou galhos secos apontam direções: bombordo é tomado pelo sol, estibordo guarda em sombra a grande barra de metal. O emissário espera que eu caminhe pra mover os ombros insuficientes, entre o chapéu e o pescoço viveria uma maçã. Meu topo da cabeça raspa o teto baixo, encurvo e perco as mãos em uma saia de cigana, que se vira e os olhos não são de turmalina. Sento no último banco e ofereço a mão aberta, o emissário tira algema e chave do bolso, ajusta o meu pulso ao parapeito e tapeia as minhas costas só com a palma, sem os dedos, aperta a aliança com o polegar; pisca de soslaio os cílios muito longos de boneco, vai ao convés fumar o charuto que ganhou por me trazer.

    Torço o dorso e me olham sem medo, oscilantes ora aéreos, ora minúsculos, indo vindo os pés em cascas e chinelos rotos, trouxas de potes e panos, panos soltos, alguns sapatos, poucas malas, um dois três quatro quadrados de couro. O motor vai alto e sem a fala tremem mais as mandíbulas. Tento apontar julgamento nas pupilas mas já não enxergo bem e nenhum interesse perdura, muito menos perguntam nas mãos, nem as crianças, o que eu teria feito. O que me atormenta é a falta de certeza na escolha, se o melhor não era sentar no lado ocupado pelo sol. As horas levarão a barra de metal a noventa ou cem graus; isso me tiraria alguns centímetros de pulso, o que talvez eu mereça, mas agora o barco já desliza.

    Procuro na água um navio sumido, um afogado, não sei se o corpo vai pro fundo assim que expira ou se sobe antes de descer, se na descida pulsa involuntário, se o pulmão filtra a água e retém pra fora o sal ou se permite que entre e que se forme uma pedrinha branca no exato miolo do peito, e se ela se aperola com o tempo ou se faz pontas transparentes de cristal, e qual a probabilidade do afogado voltar à mesma praia ou de aparecer em outra civilização; e qual seria o interesse das baleias, e qual a tolerância dos peixes ao corpo reagente: se apreciam, esquecem, se assistem, se lamentam, ou se pra eles não faz diferença.

    A vista volta ao barco e tremo o quanto me permite o pulso preso, que os olhos da menina de pé e muito perto admitem uma grossa faixa de esclera por baixo das pupilas. Espero a petrificação e as serpentes dos seus cabelos, mas pulsam os ovos que me deram de manhã, a última refeição que talvez tenha sido, porque não se sabia das condições de recepção, doze ovos, o enxofre reverbera à garganta, não existe espaço seguro, o parapeito se estende em mais de meio metro. A menina ainda me olha à sua maneira. O bulbo faz tossir o tronco e a cabeça, escarro sozinho no silêncio, nada vem, ela me olha e eu mereço, a pena recomeça e não estou embrulhado e não engulo um tapete a cada golpe do carro forte, não soluço o desprazer da minha mão não chegar às costas mordidas pelas trinta e duas pulgas da última transferência. O fraque azul, o circo mínimo a ser visto com lupa quando todas as pulgas saltassem pro tapete feito à mão, bordado em lã, cheio de reentrâncias e devidamente aquecido. Tive algum tempo de sentir pena do senhor muito idoso dentro do fraque e logo me vi um menino que sabia pouco; tentei reconhecer o homem velho: um carcereiro aposentado ou cozinheiro, o exato homem velho pintado com a cabeça nas mãos, a função que sempre foi cobrir o rosto. O emissário olhava o que havia sido ensaiado mas não sorria, só alocava o indicador nos próprios lábios frouxos. Fui enrolado ao tapete e carregado ao presídio aonde não chegava nem o meu juiz, que quando soube ordenou a extração mas eu só vou entender isso depois.

    Um jaleco manchado arrasta pelo barco um carrinho onde se lê sorvete no cascalho. Um menino puxa a saia ao lado até que ela se vire e entenda e ameace fazer que não mas faz que sim e beija o menino na testa, enfia dois depois três depois quatro dedos no decote e dele emerge uma moeda que faísca. O menino se encaminha enroscando o chinelo nos chinelos dos outros e entrega a moeda ao jaleco. Que guarda no bolso, abre o tampo do carrinho, encolhe e abre os dedos num susto ou mágica triste ou semeadura de grãos. O menino olha tudo. O menino toma o tempo que ele quer. O jaleco cutuca o indicador comprido e duro no ombrinho. Vai derreter ele diz sem dizer. O menino cobre os próprios olhos na mão de dedos curtos e com a outra mãozinha aponta, vira de costas e espera o resultado respirando com alguma afetação, pode ser sopro, ou sobrepeso, e se espanta genuíno e caminha de volta pro seu banco com a bola amarela equilibrada no cone, resgatando na pontinha da língua toda gota que se perca.

    O jaleco para ao meu lado, camarão frito em óleo velho, poderia ser o velho do fraque em outra cena, sua testa franze e me cutuca o braço, aponta o carrinho. Eu sacudo o pulso como quem dissesse eu não posso, ele sacode o ombro como quem dissesse e daí, e um baque bruto paralisa o barco e faz o resto todo se mover, traz o homem pro meu colo e o carrinho à outra ponta, onde mora o sol. Não é grande a exasperação, o homem se levanta e se ajeita cordial. Eu se fosse ele corria antes que tudo se derreta mas ele desamassa o jaleco nas mãos, o motor é desligado, o emissário se entorta de cima pra me ver.

    Olho pro mar que não tem mais, do barco até a ilha eu calculo ainda uns dois quilômetros, vejo riscados de palmeiras, talvez uma cruz, e daqui até lá um chão seco de corais. Os marinheiros são meninos em bermudas e chinelos que sobem nos parapeitos. Uma perna quase me pisa a mão presa, desce a âncora que bate no chão. A marola chega mansa, mal encosta no calado. Os marinheiros ajudam a descer o menino do sorvete e a mulher de saia. Seguram os chinelos e dão saltos curtos nas pontas dos pés. As silhuetas se afunilam até que se fundem aos riscados das palmeiras e da cruz. Ninguém mais demostra interesse em se mover. O emissário não volta lá de cima.

    Então ficamos assim até que a maré suba outra vez. Não pergunto e ninguém vai dizer. O berro de um bebê ocupa sozinho a banda sonora. A medusinha me olha fixo e nem tenta disfarçar, nenhum esforço. Os velhos e as velhas olham adiante não da ilha mas do mar, calculam quanto tempo vai levar pra maré encher outra vez e navegar o barco; não me diriam se pudessem dizer. Se eu pudesse dizer eu também não diria que é do meu destino a água se afastar.

    2.

    Eu não vi mas escutei o carimbo que protocolou o pedido: uma semana de pátio. Nenhum outro homem tomou sol durante os sete dias. Começou com algumas horas de urros de torcida, mas as canecas de alumínio nas grades dissiparam o som até que sumisse e logo dividiram entre si uma pena profunda, de cima, de onde me viam.

    A pele torrava de dia e repuxava no vento da noite. Fui me tornando a crosta e a rachadura entre os pedaços de terra, riscos que cruzaram pra sempre o rosto e as linhas das mãos. Foram ganhando contornos luminosos, filamentos de tungstênio, minha retina se despedia assim porque tudo caía do alto: bananas, pedaços de pão. Nunca soube se eram da comida oficial ou se a comida oficial pra mim era nenhuma e os prisioneiros dividiam suas rações. O que era oficial eu sabia: derramavam água das guaritas nos quatro cantos do pátio, em baldes, três vezes ao dia. Eu devia correr até o ponto do despejo que era sempre o extremo oposto de onde eu me sentava, e quando alcançava a água tinha sempre acabado de cair. Eu me dispunha em quatro patas, sugava o que não evaporava, depois derrubavam de outro canto e eu devia correr novamente, esganando no próprio fiapo, apanhador.

    Os presos armaram uma torcida gritando meu nome nas muitas sílabas, como se o nome cortado e urrado me empurrasse a um destino melhor do que o que tinha riscado dez anos atrás. E nesse modo os guardas impediam mais ainda o que era falta, jogando menos água, ou mais rápido, ou gotejando por horas inteiras, um projeto que não vingou porque eu sorri quando constatei: as gotas me davam o que contar e ao contrário das palavras os números seriam sempre meus.

    Pra onde ia a sombra do prédio ia também uma placa de madeira com pregos que os guardas dispunham pelas horas do dia. Eu não tinha estofo pra ser esse homem. Nos primeiros dias buscava a sombra mínima, embaixo de um cano, na risca de um poste, depois eu me expus e julguei o sol de volta, torrando os pés e os cotovelos no asfalto pontiagudo, gritando meio insano que agora ele matava o que tinha deixado viver, até que as paredes pararam de torcer e me mandaram ficar quieto. Já que era do meu hábito, obedeci.

    Por trás dos buracos nas pedras os sussurros das mais de mil bocas se tornaram o surdo e impreciso som de torneira pingando, um vazamento na descarga, o ruído de uma casa infiltrada onde só eu vivia com medo de dormir e me afogar, e se fosse mesmo a minha casa eu trancava ela por fora e jogava a chave no primeiro bueiro. Fui me acuando ao centro, ouvindo ainda as conversas abafadas e me concentrando com força pra que evaporassem ao tocarem minhas bordas. Dessas vozes eu me protegi mas o sol mandava descer os seus vultos. Com eles eu não tinha muita escolha, perguntavam e eu devia responder, dizer meu nome, contar o que eu fiz e como, porquê. Quando ao fim dos sete dias me levaram de volta pra cela tinha um deles na beira da cama, em calças e chapéu fora de época.

    A figura eu já conhecia, não lembrava exatamente de onde, a pouca lucidez me dizia que eu ficasse atento, que o homem na calça de tecido claro era eu mesmo e a retina queimada, mas olhei melhor: tinha os lábios sanfonados de quem fumou a vida inteira, discrepantes dos olhos redondos e suaves; eu nunca fumei e tenho os olhos da minha mãe, em desconcerto.

    Perguntei a ele se subiu do pátio ou se desceu de cima, ao que ele me pediu calma com as mãos espalmadas, como se eu girasse o tambor de uma pistola. Sentei no chão e encostei a cabeça na grade, ri de deboche e tormento. O vulto disse: não me reconhece? Sim, o seu contorno. Você não me reconhece ele dizia repetindo agudo e encolhia os ombros, baixava os olhos, eu sabia desse truque e decidi não me entregar. Alonguei a coluna, lembrei de respirar, contando o ar que entra e o que sai, desviando dele o melhor que eu pude, o rosto esmagado entre as grades, e lembrei de estar no presente e o presente me dizia: Dodô, sou eu.

    Arregalei os olhos e estive certo, certíssimo. Fechei, reabri, era ele, o vulto, o meu juiz dizendo, despenteado, que não ordenou aquilo, que encaminhou uma denúncia aos direitos humanos mas os direitos humanos não tinham mais a voz e que por isso, até o fim dos sete dias, ele tinha fracassado em me ajudar. O mundo pra eles é assim e disse isso apontando com o queixo pra fora: fez aquilo e não sabia?

    Engoliu um copo de saliva e depois disse que ia se mexer pra me minimizar, ele teve esse ato falho, na verdade minimizar a dor, ele quis dizer, uniu as pontas dos dedos, minimizar a sua dor, ele disse, que tinha planos de me exilar, olhou pras unhas, que não permitiria que eu passasse por aquilo outra vez, que se cumpriam os dez anos, que outros tinham conseguido, que investigava todas as possibilidades de eu sair dali com vida, e olhou pra mim e a parte da vida

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