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Poéticas Orais Quilombosertanejas: Identidade Cultural em Volta Grande – Barro Alto, BA
Poéticas Orais Quilombosertanejas: Identidade Cultural em Volta Grande – Barro Alto, BA
Poéticas Orais Quilombosertanejas: Identidade Cultural em Volta Grande – Barro Alto, BA
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Poéticas Orais Quilombosertanejas: Identidade Cultural em Volta Grande – Barro Alto, BA

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Nesta obra são analisadas as marcas culturais e a identidade étnico-racial expressas nas poéticas orais e nos modos de vida da comunidade quilombola de Volta Grande, município de Barro Alto, sertão baiano.
LanguagePortuguês
Release dateSep 3, 2020
ISBN9788547334611
Poéticas Orais Quilombosertanejas: Identidade Cultural em Volta Grande – Barro Alto, BA

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    Poéticas Orais Quilombosertanejas - Carlene Vieira Dourado

    VII).

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    CAPÍTULO 1

    Morfologia do trabalho de pesquisa

    1.1 Metodologia

    1.2. Estrutura do estudo

    CAPÍTULO 2

    RETROSPECTIVA HISTÓRICA: ESTADO E SOCIEDADE

    2.1 Gênese do Estado português e de seu correlato brasileiro

    CAPÍTULO 3

    AS VICISSITUDES DO ESTADO MODERNO: ESTADO-PROTETOR/ESTADO-PROVIDÊNCIA/ESTADO NEOLIBERAL

    3.1. Estado-nação moderno: transição da concepção protetora à concepção providencial de Estado

    3.2. As políticas sociais: passado e presente

    3.2.1. Definição de política social

    3.2.2. Origens e evolução das políticas sociais

    3.2.2.1. O período keynesiano

    CAPÍTULO 4

    MODERNIZAÇÃO, REFORMA DO ESTADO E RACIONALIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL DO REAL

    4.1. Estado e administração pública: considerações teóricas

    4.2. Panorama da modernização administrativa

    4.3. A transformação concreta da Administração Pública Federal e as vicissitudes acadêmicas da Administração Pública enquanto disciplina: a confluência do campo do poder com o campo da cognição

    4.4. O gerenciamento público

    4.5. A lógica do Estado no Governo FHC: os novos modos de representação estatal

    4.5.1. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado

    4.5.2. As bases jurídico-políticas e administrativas: da reforma desejada à reforma possível

    4.5.3. Reforma do Estado e serviço público: um cotejo sucinto entre as experiências brasileira, francesa e britânica

    4.5.3.1. A condução da mudança administrativa

    4.5.3.2. A relação administrativa

    4.5.3.3. O regime estatutário dos servidores públicos

    4.5.3.4. A arquitetura administrativa

    4.5.3.5. Considerações finais relativas às experiências administrativas evocadas

    4.5.4. Desestatização e reduções das funções públicas

    CAPÍTULO 5

    O CONTEXTO INTERNO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL SOB A ÉGIDE DO MODELO GERENCIAL DE GESTÃO

    5.1. Os círculos constitutivos do sistema de decisão central

    5.1.1. A tecnoestrutura estatal

    5.1.1.1. Caracterização funcional dos Analistas em Planejamento e Orçamento e Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamenta

    5.1.1.1.1. Os Analistas em Planejamento e Orçamento

    5.1.1.1.2. Os Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental

    5.2. Instantâneos do processo decisório governamental

    5.3. Derradeiras considerações acerca dos Analistas e Gestores Governamentais: a diferenciação de ofícios e o advento do gerenciamento público

    CAPÍTULO 6

    APARELHO DE ESTADO E AÇÃO SOCIOPOLÍTICA

    6.1. Os problemas da dinâmica do Estado capitalista

    6.2. As políticas públicas de emprego

    6.3. A tardia experiência brasileira

    6.4. Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador (Planfor)

    6.4.1. Antecedentes históricos e conceituais

    6.4.2. Desenho e estrutura

    6.5. O funcionamento do Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador à luz das transformações no âmago da Administração Pública Federal

    6.5.1. O Planfor e o modelo gerencial de administração

    CAPÍTULO 7

    ESTADO, ECONOMIA E SOCIEDADE

    7.1. A Administração Pública Federal à cata da legitimidade perdida

    7.2. A ubiquidade estatal: pretérito e presente

    7.3. Estado performático: síntese do Estado prescritivo e do Estado gerencial

    7.4. A Reforma do Estado e a conjuntura nacional e internacional

    7.5. Os revezes da reforma do Estado

    7.6. A Nova Administração Pública

    7.7. A fonte atual de legitimidade e sua prospecção

    7.8. O significado sociopolítico latente conotado pela emergência do sistema de avaliação das políticas públicas no Brasil

    CONCLUSÃO

    REFERÊNCIAS

    INTRODUÇÃO

    Os acontecimentos que assinalam os ritmos da vida atual revelam um mundo dotado de feições bem diferentes daquele do princípio do século XX. Os novos modos de organização da vida social, política, econômica e cultural confirmam isso sem que seja preciso fazer muito exercício de demonstração. Os resultados no cerne dos processos de produção, circulação, distribuição e consumo de bens e de serviços têm-se revelado um fator exponencial de mudança social, embora não seja o único, como se depreende a partir dos efeitos das tecnologias da informação e das telecomunicações na interação entre os povos, da consolidação da democracia enquanto conceito de vocação mundializada, e mesmo da relativa uniformização de valores, padrões de consumo e de comportamentos compartilhados etc.

    Os fundamentos do processo de acumulação do capital têm conduzido sociedades inteiras rumo à articulação do que se convencionou chamar de globalização. Tal fenômeno – que não é necessariamente recente, a não ser na intensidade do ritmo, no pós-80, nos países centrais, e em seu aspecto eminentemente financeiro – se traduz por uma vigorosa interação econômica, política e cultural a nível mundial via grandes corporações transnacionais. Significa dizer que nessa fase de desenvolvimento do capitalismo a determinação do ritmo do processo de acumulação depende quase exclusivamente das necessidades de reprodução sistêmica do capital via instituições privadas, do que do Estado. Na realidade, essa aludida entidade político-jurídica, que em período imediatamente anterior substituía o mercado, não apenas perdeu parte da hegemonia de que outrora desfrutava, permitindo sua retração do mercado enquanto agente produtor de bens e serviços, como ainda viu-se às voltas com a concorrência de novos ordenamentos jurídicos, criados pela própria complexidade econômica mediante a articulação funcional entre os três principais mercados básicos, sob a égide da reprodução ampliada do capital: o mercado de capital, o mercado de produto e o mercado de trabalho.

    No Brasil, a visibilidade de semelhante situação problemática é inequívoca. Tradicionalmente, sobretudo a partir da década de 1930, o Estado brasileiro sempre exerceu um papel ativo na configuração econômico-industrial do País. Desempenhou as mais variadas funções públicas em prol da industrialização e de suas condições de reprodução/acumulação. Agora, os desafios de um mundo globalizado e de uma sociedade local pejada de problemas sociais e políticos, paralelamente à existência de debilidades estruturais, agravadas por sucessivas crises econômicas, durante a década perdida, impõem ao Estado a redefinição de seu papel. Tal redefinição do papel do Estado brasileiro é induzida tanto pelo relativo esgotamento deste em ordenar a economia e financiar o desenvolvimento, vitimado por um prolongado período de crise econômica, quanto – ato contínuo – pela interrupção de transferências maciças de rendas (incentivos fiscais, créditos facilitados, subsídios etc.) para as empresas privadas (nacionais e internacionais), fato este que serviu de justificativa para que seus representantes desfraldassem a bandeira do neoliberalismo, quando no passado propugnavam, segundo conveniências próprias, pelo intervencionismo estatal na economia; logo, implica vê-lo limitar-se a funções de regulação, mediação e legislação – quando se torna empiricamente inviável a imposição da dominação absoluta do mercado.

    Assim, a crise econômica deflagrada na década de 1980 provocou uma crise fiscal que desembocou numa crise de governabilidade, atingindo em cheio o Estado brasileiro, fazendo com que este incorresse num déficit de racionalidade que, em última instância, após fracassar em atender as demandas sociais por bens e serviços, atos legais e administrativos, cristalizasse em crise de legitimidade. Daí a proposta do governo FHC, que, entre outras medidas, promoveu a incorporação administrativa da lógica gerencial no setor público, recurso técnico de gestão originalmente implantado em momentos de transição, cujo objetivo é a reconquista da legitimidade perdida.

    É com base nesse cenário histórico-estrutural, excepcionalmente dinâmico e caracterizado pela abertura econômica nacional ao mercado mundial, que desenvolvemos a presente pesquisa, cujo centro de gravidade são as transformações que se operam na estrutura do Estado. Essas transformações lhe concedem uma nova configuração político-jurídica e administrativa, influindo sobre a sua capacidade em dar conta da complexidade da sociedade, e assim elaborar e implementar políticas públicas na área social em consonância com as demandas dela provenientes; no que nos diz respeito, políticas públicas de emprego via qualificação de trabalhadores e trabalhadoras. E tais políticas visam a diminuir os efeitos avassaladores do processo de privatizações das empresas estatais, da reestruturação produtiva, por sua vez resultante da modernização tecnológica – a adoção da automação flexível –, da procura por novas modalidades concorrenciais e competitivas por parte das empresas, e da inserção de novos paradigmas de gestão e de organização empresarial, e que foram possibilitados pela abertura abrupta do mercado interno ao mercado externo de produtos e serviços.

    Desse modo, assediado pelas disjunções programáticas da economia de mercado, anárquico por natureza, as finanças públicas se veem às voltas com problemas de ordem fiscal que inviabilizam a postura tradicional do Estado de promotor direto do desenvolvimento econômico. Este, com o intuito de resolver o desequilíbrio financeiro das contas públicas, empreende uma série de modificações constitucionais, institucionais e organizacionais que conduzem à redefinição de seu papel em relação ao mercado, o que afeta o quadro macroestrutural da sociedade brasileira. Em função disso, ainda que tardiamente, quando se compara com a experiência internacional, a Administração Pública Federal brasileira é alvo de uma inoculação sistemática de padrões de conduta administrativa de natureza exógena que o insere no rol dos países que adotaram o modelo de gestão gerencial.

    Essas alterações no contexto interno do Estado o induzem a um novo padrão de representação sociopolítica, que, por sua vez, expressa uma nova postura perante a sociedade. Essa postura pública de caráter estatal é objetivada pela produção de políticas públicas referentes aos vários setores constitutivos da sociedade inclusiva – trabalho, saúde, educação, transporte, indústria etc. Envolto, pois, em questões de natureza fiscal, com suas respectivas repercussões sociais, políticas e econômicas, o Estado procura adotar padrões novos de administração que racionalize os parcos recursos materiais disponíveis. A adoção de tais padrões é consubstanciada na introdução da lógica gerencial em um terreno tradicionalmente dominado pela lógica burocrática e, sorrateiramente, pela lógica patrimonialista. Porém a questão da mudança de representação estatal está vinculada à transferência para o mercado das determinações centrais do processo de condução econômica, mediante a política de desestatização e desregulamentação e à necessidade de aquisição de legitimidade por meio da eficácia dos métodos de gestão no contexto da relação global/setorial, ou seja, no equacionamento dos problemas que assolam o quadro macrossocioeconômico-político.

    Embora seja problemática a adoção do termo modernização devido à polissemia e aos enfrentamentos retóricos que o cercam, é evidente que ele evoca substancialmente a ideia da definição do papel do Estado e de sua missão em relação ao mercado, bem ao nível das discussões ideológicas que vicejavam nos estertores do século XX – e que ainda perduram, presentemente, em seus efeitos –, logo, tais discussões supõem [...] que o problema do Estado (e, portanto, do poder) pode ser regulado por fórmulas organizacionais². De qualquer modo, desde o início dos anos 1980, vem se intensificando em todo o mundo esforços de mudanças no setor público. Isso porque o propósito de modernização da administração pública constitui um dos traços identitários mais recorrentes da agenda governamental de quase todos os governos. E nunca, em tempo algum na história, esse voluntarismo sociopolítico em prol da transformação do aparelho do Estado alcançou tanto vigor e celeridade.

    No Brasil, isso tem se produzido desde o Governo Collor, com a instituição do Programa Nacional de Desestatização. Porém, a partir do Governo Fernando Henrique Cardoso, o processo de Desestatização é intensificado paralelamente ao esforço de modernização do aparelho do Estado. Daí a necessidade de um estudo aprofundado acerca da reforma do Estado ter de levar em consideração tais fenômenos de natureza socioeconômica e política, sob pena de não compreender o que se passa ao nível mesmo das transformações que assinalam o mundo globalizado, em que a tendência à uniformização dos espaços de reprodução econômica conflui com a tendência à uniformidade dos problemas de caráter eminentemente sociais.

    Convém acrescentar ainda, como observa Offe³, que a execução de uma reforma administrativa, como a que ainda está em curso, extrapola os limites de sua efetividade puramente administrativa, no sentido de que influi sobre a qualidade dos serviços públicos ofertados, o público-alvo atingido e as condições de acesso a tais serviços. Quer dizer, o fundamental é não perder de vista que as mesmas mudanças operadas (ou em operação) no cerne do Estado também produzem impactos consideráveis nos demais setores da estrutura social brasileira, engendrando novas situações de desequilíbrio sistêmico (ou de contradição) que tornam urgentes a sua mediação. Tal mediação é tão mais necessária porque nos estertores do segundo e derradeiro Governo de Fernando Henrique Cardoso a estabilização macroeconômica possibilitada pelo Plano Real não mais resultou em nenhum efeito distributivo de renda, e sim de reconcentração, portanto, de intensificação do aumento das desigualdades e das exclusões sociais.

    CAPÍTULO 1

    Morfologia do trabalho de pesquisa

    A composição do quadro geral da obra obedece a uma lógica simples e didática. Enfatiza-se o Estado em sua vertente multifacetada. Cada capítulo procura explicitar algo acerca do Estado, de modo que o leitor, do começo ao fim, é confrontado com detalhes que o desnudam de suas indumentárias mais manifestas, assim como das mais absconsas. Os conceitos que lhe são adscritos são apresentados em toda a estrutura do texto, de modo a serem operacionalizados em outra abordagem que destaca os aspectos fenomenológicos e semiológicos, sem os quais a sua apreensão claudica na reles apreciação de sua aparência estática, negligenciando a importância de sua apresentação dinâmica, que é justamente a circunstância funcional que revela a sua plenitude formal e informal.

    1.1 Metodologia

    A nossa estratégia de pesquisa passa pelo diagnóstico das alterações significadas introduzidas na máquina estatal, e em que isso tem influenciado no processo global de atendimento às demandas por recompensas provenientes da sociedade. Contudo o nosso intuito não é constatar os resultados quantitativos dessa ação estatal, mediante as mais diversas modalidades de políticas públicas. Na realidade, escolhemos uma delas, no caso, a política pública de emprego centrada na qualificação do trabalhador, sob os auspícios do Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador – Planfor.

    Uma leitura nos manuais consagrados às análises das políticas públicas nos poderia conduzir a fazer uma avaliação desse Plano com foco no funcionamento (os meios empregados e o respeito às regras da contabilidade pública), ou no resultado (a conduta, o desempenho, os efeitos – esperados ou não – produzidos, os resultados alcançados etc.). Optamos por uma estratégia que concilia a averiguação do modus operandi dos responsáveis pela formulação, implementação, acompanhamento e avaliação da política em geral com o funcionamento do referido Plano. As razões para tal nos parecem logicamente as mais acertadas. E isso se justifica devido ao fato de que o sobredito Plano possui um desenho operacional cujo funcionamento se baseia na descentralização territorial ao nível político. Ou seja, a responsabilidade dos agentes públicos federais responsáveis por sua gestão e acompanhamento não reside no desenho, na formulação e na implementação, e sim na avaliação da viabilidade técnica e operativa dos programas estaduais que são propostos por essas circunscrições territoriais; e no acompanhamento e avaliação destes – avaliação concernente ao cumprimento das diretrizes do Plano e do acompanhamento das alocações dos recursos conforme os resultados acordados, conforme as metas previstas.

    Assim sendo, uma vez que a política de emprego é descentralizada, uma análise acurada do plano passa pelo mecanismo de monitoramento que a administração central opera, e que passa, também, pela mudança de cultura administrativa, mediante a adoção do modelo gerencial de administração pública, assim como pela reengenharia funcional do aparelho de Estado. E, mais recentemente, pela congregação de todos os programas do Governo Federal no quadro geral do Plano Plurianual Avança Brasil 2000-2003, sendo que cada um desses programas dispõe de um gerente responsável pelo acompanhamento no cumprimento das metas previamente estabelecidas.

    Pierre Muller⁴ destaca, a propósito da análise das políticas públicas, que inexiste quadro metodológico ‘padrão’. Urge compatibilizar o método adotado com os efeitos que ele pode gerar, já que existe uma relação direta entre o objeto de determinada pesquisa e o método escolhido para realizá-la: "[...] tudo vai depender da questão colocada"⁵. Mesmo assim, entende que o estudo das políticas públicas supõe três distintos modos de abordar o assunto, embora esses modos de construção do objeto política pública não sejam inteiramente independentes entre si. Na verdade, trata-se de direcionar o foco da análise sobre um ou outro dos seguintes modos do tema em apreço: 1) como surgem e se transformam as políticas públicas, isto é, a partir de que processos sociais, políticos e administrativos um problema social específico se torna objeto de um problema de política pública, de modo a ser inscrito na agenda dos poderes públicos; 2) como funciona o conjunto das organizações públicas envolvidas no processo de desenho, formulação e implementação de uma política pública, ou, em outros termos, quais as estratégias utilizadas pelos responsáveis por sua confecção e execução; e 3) qual o impacto de tais políticas sobre o público-alvo, no sentido de averiguar e avaliar os efeitos – esperados e não esperados – decorrentes de sua implementação.

    À primeira vista, trata-se de escolher uma dessas abordagens. Seria a atitude mais plausível. Quer dizer, em condições normais, certamente seria a escolha metodológica mais acertada. Porém a situação geral em que se envolveu o Estado brasileiro, não só pela onda acirrada de debates acerca de sua ineficiência no processo global de ingerência na vida econômica e social da sociedade – ideia amplamente disseminada na esteira do declínio do Estado-providência –, aliada à escassez de recursos públicos e ao avanço da Oposição, predominantemente representada pelo Partido dos Trabalhadores – PT –, tem impelindo vigorosamente as elites dirigentes no âmago do Estado a adotar uma estratégia de mudança de cultura organizacional, mesmo antes que o modelo burocrático clássico, de matiz weberiano, tivesse podido se instalar de modo generalizado nos meandros do aparato estatal brasileiro. Consequentemente, isso nos conduz a centrar as nossas atenções sobre a estrutura da administração pública, de modo a descrever em linhas gerais as principais mudanças nela implementadas e que são responsáveis pela revisão do papel do Estado. A partir disso, busca-se averiguar os efeitos dessa mudança de perfil operacional na operacionalização da estrutura do sistema público de decisão e da otimização da política pública de emprego associada à qualificação profissional. Em função dessa estratégia metodológica – que não repousa na escolha de um dos três modos de encarar o problema relativo à política pública –, optamos por empreender uma análise acerca do funcionamento do Planfor objetivando identificar indícios que o vinculem à natureza mesma da reforma administrativa no que concerne à adoção do paradigma gerencial de administração.

    A análise das políticas públicas não é um campo de estudo que apresente uma insustentável univocidade tanto teórica quanto técnico-metodológica. Afinal, o tema política pública não constitui uma reserva de mercado de nenhuma disciplina que disponha de um estatuto cognitivo próprio. Ela é igualmente objeto de estudo da ciência política, da economia e da sociologia, com seus respectivos vieses cognitivos; e tais vieses cognitivos são encarados pelo lado da formalidade dos campos do conhecimento científico dos fatos humanos, quanto à tentativa em dar conta dos múltiplos fenômenos que seus objetos de estudo impõem pelo lado da demanda do conhecimento, uma conduta de inelutável impulso rumo à transdisciplinaridade. Logo, as análises das políticas públicas não se esgotam na perspectiva condicionante de uma ciência qualquer, com seus recortes epistemológicos (os fundamentos de verificação do grau de certeza do conhecimento científico em seus vários ramos e áreas temático-cognitivas), seus arrufos paradigmáticos, seus referenciais técnico-metodológicos, enfim, suas idiossincrasias mais arraigadas e autoevidentes. Ademais, no contexto de um mesmo campo de conhecimento, podem-se constatar tanto diversidades de métodos e variações temáticas quanto uma multíplice manifestação de estilos cognitivos, que, por sua vez, se assemelha esteticamente ao modo de produção artesanal, com seu inconfundível modo de expressão e seu irredutível apreço pela originalidade, pela repulsa à uniformidade das coisas que cria e pela persistente preocupação com o que ainda-não-é, mas que pode vir a ser; sem, contudo, ser uma imitação de algo diferente, que por isso mesmo não o pode depreciar, e tampouco superar, a não ser no quadro de julgamento das mentalidades sociais de uma época, deixando-se conduzir pela influência do valor estético correspondente, ao manifestar as suas predileções mais íntimas. Nesses termos, a ciência, ao contrário da arte, está condenada a um perene obsoletismo, como há muito Max Weber⁶ percebera, em Ciência como Vocação. Mas também não são incompatíveis, como ensina Eugen Ehrlich⁷.

    O exemplo que nos acomete não poderia deixar de ser o mais apropriado. Estamos nos referindo, naturalmente, à sociologia, pois constitui a ilustração cabal do que acabamos de aludir. E a propósito do que foi dito, as palavras do fundador e sistematizador da sociologia jurídica, na expressão intelectual de Eugen Ehrlich, se nos apresentam com uma sapiência lapidar:

    Entre ciência e arte não há contradição. Toda verdadeira obra científica é uma obra de arte e é pobre o homem da ciência que não é simultaneamente um artista. Uma obra científica deve ser executada com as mesmas características que uma obra de arte; ambas exigem espírito aberto, fantasia, capacidade de síntese. Por isso cada pesquisador autônomo deve criar seu método, assim como cada artista original deve criar sua técnica. Quem trabalha com método alheio pode eventualmente, como quem trabalha com técnica alheia, ser um grande discípulo, mas não mais do que um grande discípulo que aperfeiçoa a obra do mestre e não dá origem uma obra nova. Por isso pode ensinar um método ou uma técnica próprios ou alheios, mas não o método científico ou a técnica artística. Pois o espírito que pensa e trabalha de forma autônoma estará à procura de novos métodos e novas técnicas que correspondam à sua peculiaridade⁸.

    Mas a criação e aplicação do método devem ser conjugadas com a preocupação epistemológica que ecoa na verve sociológica, no sentido de que o postulado da observação empírica deva sempre ser um instrumento da busca da verdade, mesmo que esta sempre se mostre arredia à transparência dos fatos. Assim, a articulação do método com a arte deve estar a serviço da capacidade do pesquisador em traduzir adequadamente no plano da ciência as impressões que tomam de assalto a consciência desperta de investigador. Para isso, é preciso desenvolver diligentemente a aptidão para se conceber as ficções idealizantes, na expressão de Edmund Husserl, ou, segundo a percepção do pai da sociologia jurídica, a predisposição à captação da arte idealizada. Eis, então, o que nos adverte Ehrlich:

    Mas independente do método e da técnica, sempre partirão daquilo que o mundo exterior oferece ao espírito humano; pois este só consegue transformar as impressões que recebe de fora. A cada dedução precedeu necessariamente uma indução e a cada idealização a percepção da impressão externa daquilo que é idealizado. Só que a indução e a percepção muitas vezes acontecem com velocidades extremas, de forma inconsciente, sem qualquer intenção dirigida e só o posterior trabalho de dedução e de idealização aflora na consciência. É isto que dá origem à aparência de uma ciência indutiva ou uma arte idealizada⁹.

    Eis aí uma razão para que o nosso estudo deva pautar-se por um método diferente. Mas nunca pela obsessão da diferença em si mesma, e sim pela busca em contemplar questões de pesquisa diferentes – como também o é a natureza das inovações no cerne do Estado –, e com a correspondente abordagem e seus respectivos centros de gravidade.

    O diagnóstico geral do funcionamento do Estado quanto às modificações sofridas supõe vê-lo ao modo de um sistema, identificando suas facetas institucionais, organizacionais e funcionais. A tática que se observou foi o ajustamento dos modos de agir, de empreender ações. Não cobrimos todas as mudanças numa área, mas procuramos inventariá-las. Trata-se de apontar tanto as aquisições mais importantes quanto as exclusões organizacionais, assim como as implicações dessas mudanças no modo de compatibilizar a estrutura organizacional ao quadro dos recursos humanos, com base na regularização dos concursos públicos e do fortalecimento dos órgãos decisionais e operacionais. Isso também supõe a sua capacidade de decidir com isenção, embora politicamente condicionada e dotada de autonomia relativa.

    A estratégia de investigação acerca da problemática da mudança dos modos de representação do Estado no Brasil obedeceu a um recurso simples, porém eficiente e capaz de salvaguardar um quantum mínimo de pureza epistemológica que todo trabalho científico deve perseguir com denodo. Exaustivas incursões nos meandros do Estado foram exercitadas com acuidade e espírito revestido de obsessiva probidade intelectual. Documentos emitidos pelo próprio Governo Federal foram destrinçados à saciedade, não importando que fossem apresentados sob forma escrita ou virtual. Em sua esmagadora maioria, tais documentos foram extraídos, na época, da então rede de informações do governo disponibilizadas em seu site oficial - . Munidos de uma profusão de informações relativas aos esforços governamentais de implementar uma mudança considerável nos padrões organizacionais e administrativos da máquina pública federal, realizamos comparações de procedimentos similares verificados em vários países, com especial destaque para a Grã-Bretanha e a França. O objetivo principal era comparar o voluntarismo, a amplitude e o ritmo com que as mudanças foram implementadas nessas distantes plagas ultramarinas, para então precisar com relativa exatidão se o processo aqui deflagrado obteve a mesma expressão quantitativa e qualitativa e o mesmo impacto transformacional no aparelho do Estado. Uma vez envidados esforços nesse sentido, fato este que resultou na confecção do quarto capítulo, que por seu turno constitui a espinha dorsal da presente tese, a atitude subsequente foi a de constatar empiricamente, mediante as verbalizações de distintos agentes públicos estratégicos do Estado, até que ponto nossas percepções foram acertadas.

    O desdobramento dessa estratégia determinou que o último capítulo precedesse em sua feitura orgânica os capítulos 5 e 6, posto que, na esteira da compreensão da questão da reforma do Estado em sua feição stricto e lato sensu, urgia empreender uma abordagem fenomenológica e semiológica do Estado, assim como compor uma explicação geral sobre o processo de reforma encetado a partir de 1995, de modo a concluir uma percepção de investigação que doravante seria submetida ao crivo de uma verificação empírica, mediada pelas percepções de atores públicos situados nos meandros da máquina pública federal, cujas atribuições institucionais os tornaram sujeitos e objetos do processo de modernização da Administração Pública Federal brasileira.

    A justificativa para tal procedimento de investigação decorreu da preocupação epistemológica em não se deixar levar pelas percepções de terceiros, caso contrário, delas seríamos reféns. Consequentemente, a adoção de um procedimento inverso ao previamente escolhido nos lançaria na indeterminação objetiva de nosso objeto de estudo, transformando-nos em objetos passivos da projeção da subjetividade de nossos principais interlocutores de pesquisa. Além do mais, tornaríamos vítimas de percepções parciais da realidade em foco, já que esta se apresenta com um grau elevado de coeficiente de opacidade, como oportunamente destacou Pierre Bourdieu, que se arrima numa bem urdida confluência de constatações epistemológicas a partir dos clássicos da sociologia. Trata-se do princípio da não consciência, que por sua vez conduz à ilusão da transparência.

    Ainda que a descrição das atitudes, das opiniões e das aspirações individuais possa dar conta do princípio explicativo do funcionamento de uma organização, é a apreensão da lógica objetiva da organização que conduz ao princípio capaz de explicar, além do mais, as atitudes, as opiniões, as aspirações. Este objetivismo provisório, que é a condição da compreensão da verdade objetivada dos sujeitos, é também a condição da intelecção completa da relação vivida que os sujeitos mantêm com sua verdade objetivada dentro de um sistema de relações objetivas¹⁰.

    Esse princípio da não consciência é agravado pelo fato de que certas questões que se traduzem em preocupações de pesquisa são apreciadas em termos analíticos que revelam uma percepção pontual, no mais das vezes condicionada pela pouca sistematicidade do assunto aventado e, também, pela força da situação localizada num espaço cuja capacidade de apreensão da situação problemática revela um indisfarçável enfoque parcializado – os sujeitos que integram uma rede de atores públicos bem situados na tecnoestrutura estatal não têm como escopo principal o deslindamento da estrutura estatal, a menos que estes desenvolvam uma atividade cognitiva nesse sentido, em que o espírito crítico direciona suas baterias a serviço da inteligibilidade da totalidade do aparato estatal. Mas isso não impede que tais sujeitos de pesquisa – que também não deixam de ser atores ativos no processo em apreço de transformação do Estado – possuam uma visão por demais aproximada do grau e da amplitude das mudanças que se verificam na máquina pública. Na realidade, trata-se de sujeitos dotados de uma capacidade de racionalização digna de nota; e em muitos deles é comum encontrar-se uma louvável imaginação sociológica, o que nem sempre – infelizmente – se constata em milhares de portadores de títulos de graduação enquanto sociólogos. Essa elite administrativa possui uma perspectiva de análise que destoa da média dos agentes públicos, além de gozarem de um prestígio considerável.

    1.2. Estrutura do estudo

    O primeiro capítulo especializa-se em apontar os procedimentos tanto teórico-metodológicos quanto técnico-metodológicos, como já tivemos a oportunidade de discutir no tópico precedente. O segundo capítulo desenvolve uma retrospectiva histórica de formação do Estado brasileiro a partir de seu correlato português. A justificativa para tal intento decorre de duas linhas de atuação sociológica: uma de natureza essencialmente histórica e a outra de natureza essencialmente epistemológica, e que se estriba no movimento de constatação objetiva manifestada pela via precedente. A primeira delas tem como escopo lançar fachos de luz sobre um processo tão curioso quanto impressionante da formação de um Estado, conforme o imperativo da soberania jurídica que emana do Estado-protetor, sem que a vontade coletiva – embora engessada numa constrangedora criação artificial de um Estado – dela tenha tomado parte, dela tenha imprimido os minúsculos pigmentos de sua própria forjadura, ao exercitar os mais elevados augúrios da soberania social que apenas no século que tragicamente se anuncia parece configurar em esboços relativamente desarticulados; bem ao inverso do que transcorreu com o Estado lusitano, que por seu turno era hipostasiado na figura plenipotenciária do rei. A segunda enfatiza o zelo pelo movimento concreto das ações desenvolvidas pelas sociedades reais, com seus respectivos coeficientes de indeterminação histórica, ou de incerteza.

    O quarto capítulo constitui a espinha dorsal do presente estudo. Nela, tratamos de questões teóricas relativas ao próprio Estado e seu ordenamento jurídico, assim como das deficiências apresentadas pelo modelo burocrático de administração. Muito antes de nos debruçarmos nas modificações introduzidas no aparelho de Estado pelo Governo Fernando Henrique Cardoso, empreendemos uma retrospectiva histórica do processo de modernização administrativa do Estado brasileiro. O fizemos exclusivamente com o intuito de preparar o leitor para os conceitos e movimentos reformistas no âmbito do setor público. A tentação em acompanhar o desenlace dessa trajetória modernizante é completada, no tópico imediatamente subsequente, ao se averiguar as mudanças da mentalidade administrativa no campo cognitivo da Administração Pública, numa típica estratégia de cotejar as mudanças histórico-administrativas no campo real dos acontecimentos concretos com as mudanças histórico-cognitivas no campo do saber científico. Constatamos a existência de um movimento um tanto quanto sincronizado entre essas duas dimensões da realidade administrativa. E uma vez que o modelo gerencial foi aventado e destacado como um aporte importante para a realidade da administração pública, achamos pertinente dissecá-lo logo em seus aspectos instrumental, institucional e semiológico. Uma vez feita referência à administração pública gerencial, partimos para o destrinchamento do documento-mãe Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, para, então, identificarmos o que de fato foi implementado a título de reforma administrativa. Na sequência, julgamos oportuno comparar o exemplo brasileiro com os exemplos britânico e francês, de modo a aquilatar o alcance e a profundidade da reforma administrativa em solo brasileiro. Por fim, dedicamos o último tópico desse capítulo à análise do processo de desestatização. Embora tal processo tenha sido desencadeado muito antes da reforma do aparelho do Estado, mediante emendas constitucionais que abriram alas para a privatização de algumas das mais importantes e rentáveis empresas estatais, a sua localização no corpo do texto se justifica na medida em que o documento Plano Diretor constitui o referencial político-descritivo das mudanças introduzidas no contexto interno do Estado. Ou seja, o ponto de partida de nossa empreitada cognoscente com relação ao tema tratado foi o referido documento. Além do mais, esse documento é reticente quanto à privatização das empresas do setor público, provavelmente para não despertar precocemente as atenções e reações contrárias de setores nacionalistas da população brasileira.

    O quinto e último capítulo, que, por sua vez, constitui o fecho da abóbada, traça uma análise fenomenológica do Estado, ensaia uma tentativa de tipologizá-lo, enquanto Estado performático, discorre sobre a conjuntura nacional e internacional que serve de pano de fundo do processo de implementação efetiva da reforma da administração pública no Brasil, onde a síndrome do ajuste fiscal como que o molda à sua imagem e semelhança. Contudo o que se constata de fato é a consolidação do modelo de gestão gerencial. E os vários depoimentos dos agentes públicos entrevistados servem de transmissores de fidedignidade às conclusões às quais chegamos, uma vez que a feitura desse capítulo, em sua quase totalidade, foi realizada muito antes do início das entrevistas, que ocorreram no final do mês de outubro. As razões para isso já foram objeto de explanação na parte dedicada à metodologia do estudo. Nessa parte da obra, procura-se não somente apontar a fórmula perseguida pelos governos para a aquisição de legitimidade governamental; busca-se, também, apontar a relativa durabilidade dessa fonte de legitimidade, assim como o significado sociopolítico da avaliação das políticas públicas para a manutenção no poder das autoridades político-administrativas que cuidam da gestão pública.

    CAPÍTULO 2

    RETROSPECTIVA HISTÓRICA: ESTADO E SOCIEDADE

    Afora o conjunto de situações e/ou circunstâncias histórico-estruturais gerais que possibilitaram o ingente empreendimento do processo de exploração/colonização brasileiro, e que alguns autores o situam nos primórdios do que hoje se convencionou chamar de globalização, o que nos interessa pontuar é o fato singular de que nossa colonização, no que concerne ao caráter exclusivamente exploratório de sua empresa, com a consequente transposição de uma estrutura jurídico-político-administrativa, constituída segundo o modelo exportado pelo governo português, gerou uma situação curiosa na qual o Estado precedeu à formação da sociedade brasileira. Ou seja, o Estado brasileiro não constitui uma instituição autóctone, oriundo do entrelaçamento das relações sociais, econômicas e políticas, disseminado pelos quadrantes dos incipientes espaços geográficos, e subtraídos à revelia de seus naturais, com base em fundamentos geopolíticos que, por sua vez, expressavam casuísmos jurídicos de uma ordem mundial na qual o arrivismo e a rapinagem eram os seus vetores direcionais.

    À testa da exploração econômica da América portuguesa perfilava o Estado patrimonial e estamental lusitano. Uma situação inversa ao que ocorreu com a formação social americana, em que se cristalizou a colonização por povoamento, e na esteira da qual foi urdida a instituição orgânica do Estado. Lá, coube à iniciativa privada a tarefa de comandar a obra da colonização e da formação da economia nacional. Tais diferenças esclarecem um pouco as naturezas e formas de atuação do Estado nesses países, razão pela qual remontamos aos primórdios dos Estados português e brasileiro.

    2.1 Gênese do Estado português e de seu correlato brasileiro

    Para se entender a estruturação da organização política do Brasil, faz-se necessário remontar ao processo equivalente – e que naturalmente o antecede – de constituição do Estado patrimonialista português. As razões dessa preocupação em situar as raízes de nossa formação socioeconômica e político-jurídica vinculam-se a questões tanto de natureza teórica quanto de natureza sócio-histórica, que embasam as preocupações da sociologia histórica do político (ou do Estado), centradas nos processos de estatização (ou, recentemente, de desestatização) da sociedade. Afinal, a compreensão da feição assumida pelo Estado moderno, e, sobretudo, contemporâneo, está intimamente ligada ao conjunto dos acontecimentos histórico-estruturais que permitiram o esfacelamento do sistema de dominação fundado no feudalismo: a centralização e concentração do poder, proporcionada pelo constante estado de emulação territorial entre centenas de pequenas unidades territoriais de dominação, exigindo a manutenção de um exército permanente ou regular – A profissionalização do exército consequentemente fortalece a institucionalização do Estado¹¹ –; a instituição de uma política fiscalista – caracterizada pela regularidade e institucionalização incontinênti, pela tônica de caráter nacional e pela postulação de legitimidade – que possibilitasse suporte aos esforços de guerra, por sua vez voltados para a garantia da incolumidade dos domínios territoriais em questão, os quais constituem exemplos a sisa, em Portugal, a talha (taille royale) e a gabela (gabelle), na França, os serviços (servicios), na Espanha etc.; a formulação de diversos institutos jurídicos que servissem de formatação da ordem em ascensão, com suas correspondentes expressões filosóficas; e as demais instituições cujo advento se prendia à lógica da expansão econômica experimentada pelo período medievo, e que também coincide com o seu ocaso.

    Desse modo, o Estado moderno constitui uma criação singular dotado de características eminentemente diferentes dos demais institutos de dominação histórica da vida política em sociedade. Em outros termos, a edificação do Estado é definida [...] como uma ‘epigênese’ (expressão de Amitaï Etzioni), isto é, como o aparecimento (ou invenção) de uma nova forma de organização política inexistente, em germe, na realidade anterior¹²; como uma inovação particular, localizada no tempo e no espaço¹³; como algo que se torna, que evolui e que, em certa medida, se não desaparece, pelo menos se metamorfoseia em outras formas¹⁴, ainda que esta tenha sido formada por uma série de combinações institucionais cuja urdidura dificultava a translucidade de sua compleição organizacional quanto à prenunciação de suas inter-relações combinatórias posteriores:

    [...] uma configuração {no caso o Estado moderno} deve ser resultado de uma configuração anterior, ou melhor, de toda uma série de configurações, de um tipo bem definido, ainda que essas primeiras configurações, no entanto, não demonstrassem, necessariamente, que se transformariam naquelas que lhes sucederam¹⁵.

    Os primórdios fundacionais do Estado português – em cujo ventre império e monarquia amalgamam-se – podem ser cronologicamente fixados no século XII. Premido pelas sucessivas invasões de romanos, germânicos e mouros, no decorrer de sua história, e pela necessidade de reconquista territorial, seguida de uma política de expansão de seus domínios, o Estado português foi impelido a aperfeiçoar uma estrutura de dominação política e econômica que se constituísse numa garantia permanente de controle de poder calcado na supremacia do rei. Na esteira dessa constante peleja pela manutenção do domínio territorial conquistado, o rei se reveste de dois atributos cujos frutos se fizeram sentir em todo o processo de constituição histórica do reino de Portugal – o rei é ao mesmo tempo senhor da guerra e senhor de vastas terras. É exatamente essa natureza dupla, hipostasiada na pessoa do rei, que vai determinar o quadro das relações políticas entre

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