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O Que é Comprimido Hoje?: A Psicanálise em Crise
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O Que é Comprimido Hoje?: A Psicanálise em Crise

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O que é comprimido hoje? Por que consumimos tantos psicofármacos e cuidamos tanto da saúde hoje? Será que não estamos enfeitiçados pelo imperativo da performance, como também pelas promessas de longevidade e imortalidade? Considerando que a busca por esses ideais nos conduz a realizar uma permanente auto-gestão dos riscos, é preciso perguntar: será que a noção moderna de finitude não vem sendo silenciada em nome do risco e, a partir do imperativo do medo, procuramos nos precaver de nossa vulnerabilidade, buscando ferramentas que confiram emblemas performáticos e fálicos? E tudo isso, está a serviço de quê? Não será da lógica neoliberal que promulga a eficiência, nos convocando a sermos empresários de nós mesmos, como mostrou Foucault?
LanguagePortuguês
Release dateSep 9, 2020
ISBN9786555230178
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    O Que é Comprimido Hoje? - Natasha Mello Helsinger

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAÚDE E HUMANIDADES

    Na moralidade neoliberal, cada um de nós é responsável apenas por si mesmo, e não pelos outros, e essa responsabilidade é principalmente e acima de tudo uma responsabilidade por nos tornarmos economicamente autossuficientes em condições em que a autossuficiência está estruturalmente comprometida.

    Judith Butler¹

    Ela sorri, ela diz que é a primeira vez, que ela não sabia antes de encontrá-lo que a morte podia ser vivida. Ela o olha através do verde filtrado das suas pupilas. Ela diz: Você anuncia o reino da morte. Não se pode amar a morte se ela for imposta de fora. Você pensa chorar por não amar. Você chora por não impor a morte. Ela já está no sono. Ela lhe diz de modo quase inteligível: Você vai morrer de morte.

    Sua morte já começou

    Marguerite Duras²

    AGRADECIMENTOS

    Primeiramente, gostaria de expressar minha enorme gratidão ao Prof. Joel Birman que apostou nessa pesquisa e foi um grande orientador. Obrigado por ser uma bússola, uma memória, um horizonte, um presente. Obrigado por me encorajar a correr riscos, sem nunca me deixar à deriva. Sem dúvida, sua presença é uma verdade-acontecimento em minha vida.

    Agradeço à Simone Perelson e à Silvia Alexim Nunes por contribuírem para o desenvolvimento dessa pesquisa, sobretudo, no Exame de Qualificação e na Banca de Defesa. A leitura atenta e instigante de vocês só provou, como diz Deleuze, que pensar é um ato raro e perigoso.

    À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pelo apoio financeiro dessa e das demais pesquisas realizadas no Brasil. Não basta nosso país ser gigante pela própria natureza, pois, para o futuro espelhar essa grandeza, é necessário esse tipo de investimento.

    À Universidade Federal do Rio de Janeiro e, mais precisamente, ao Instituto de Psicologia e ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, onde tive a oportunidade de desenvolver essa pesquisa. Agradeço aos professores pelas múltiplas leituras da psicanálise. À Alice e Zé Luis por sempre se fazerem tão presentes. Ao grupo de pesquisa Trauma e Catástrofe, pelas interlocuções tão urgentes e pelos bons encontros, dos quais destaco Regina Herzog, Isabel Fortes, Fernanda Canavêz, Flávia Guerra, Paulo Vaz e, sobretudo, Cunca Bocayuva, com quem venho tecendo uma bela troca.

    Aos amigos da UFRJ que acompanharam a pesquisa mais de perto, agradeço pelas potentes interpelações: Luiz Paulo Martins, por estar sempre atento aos efeitos de verdade, pelos brindes à resistência; Mariana Pombo, por bagunçar as normas e lutar pelo polimorfo; Maicon Cunha, por viver sem receitas, sem nada comprimido; Mariana Toledo, pelos acontecimentos e devires que nos aproximam; Cristina Birck, pelo inconsciente como poesia; João Galvão, pelo instinto que lhe faz borda sem querer caber na filosofia; João Gabriel Lima, por me presentear com o homem neuronal, tão precioso nessa pesquisa.

    À Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde iniciei meu percurso acadêmico. Agradeço aos professores, sobretudo, os que se tornaram grande amigos: Álvaro Pinheiro que com a mão na argila constrói mundos, onde nos encontramos no criar; Claudia Garcia, com quem tanto aprendi a navegar entre a psicanálise e a cultura e que hoje reencontrei de braços dados na luta democrática; Auterives Maciel, por me ensinar a afirmação da diferença como ética e por estar sempre junto nas reterritorializações da vida: nossa amizade é devir. Agradeço aos amigos Gabriel Ninô, Julia Patrocínio, Daniel Senos, Marcela Americano, João Pedro Viola, Tami Gabeira, Clarice Arantes, Pedro Laureano e Felipe Bó.

    À Casa Verde e às pessoas queridas que encaminham esse belo trabalho: Carmen Tourinho, Sônia Araguez e Ana Paula Sanzana. Agradeço pela possibilidade de compartilhar da arte e da potência da loucura, sem disciplina, sem guardiões, sem manicômio.

    Ao Instituto de Estudos da Complexidade, não só pela inesquecível experiência clínica, mas por sustentar, de forma efetiva, o entrelaçamento entre psicanálise e social. Agradeço pelas amizades que fiz nesse espaço - como Michelle Machado, Isabela Guimarães, Livia Salles, Fernanda Memeri, Arthur Chimeti, Gabriela Maia, Yvone Gabriel, Camila Leal e Carolina Paixão - e aos alicerces desse potente projeto: Fátima Amin - pela vivacidade vibrante que ampara e encoraja - e Tereza Estarque, pela força criativa que faz do talento da escuta um constante alento, ainda mais quando acompanhada da alegria de Domingo.

    Ao Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, por primar pela relação institucional tecida sob a égide da horizontalidade, fazendo disso um trabalho pungente e inegociável. Por afirmar a pluralidade do saber psicanalítico, pensando este em articulação com a experiência coletiva, política, estética e ética. Estas coordenadas não só estão em total consonância com este livro, mas são sua condição de possibilidade. Por isso mesmo, nesse espaço, pude apresentar eixos dessa pesquisa e obter frutíferos retornos de colegas muito queridos, como: Pedro Cattapan, Priscila Magalhães, Ana Beatriz Lima, Rodrigo Ventura, Beth Donicci, Paulo Próspero, Margarida Cavalcanti, Cristina Louro, Julio Bandeira, Fabio Lacombe, Zelia Villar, Igor de Paula, Suzana Neves, Vilma Rangel, Camila Lacerda, Anna Seixas, Marcia Balmberg, Maria da Salete e Cláudia Zuccaro.

    Destaco os amigos com quem trabalhei de maneira mais próxima nos últimos dois anos: Marielena Legey, Paula Gaudenzi, Beth Mourão, Nelma Cabral, Leila Ripoll e Luciano Dias. Pela forte amizade, não posso deixar de enfatizar os dois últimos. Leila, pela admirável capacidade de fazer acontecer sem negociar com a gestão dos riscos e com a indigestão das repetições. Por sempre se aventurar na construção de novos mundos possíveis, me levando junto. Luciano, por todas as empreitadas que inviabilizam qualquer síntese. Contento-me em agradecer pela leveza com que espanta os fantasmas, pelo talento de transformar risco em potência, por insistir sempre nos trilhos da feminilidade. Por tudo que nunca precisa ser dito. Por ser uma tradução.

    Desses encontros surgiram outros importantes, como Eloá Bittencourt, Wania Cidade e Débora Abramant. A partir dessas alianças, se iniciou, em 2018, a organização do Coletivo Psicanalistas Unidos pela Democracia que sustenta uma força de resistência face às ameaças dirigidas à democracia em nosso país. Destaco algumas parcerias que emergiram desse movimento: Luciano Elia, Mariana Mollica, Antonio Quinet, Ana Cristina Figueiredo, Natasha Corbelino, Héder Bello e Vera Vital Brasil.

    Agradeço à Shirlene Vargas da Silva, pela beleza da sua luta e pela generosidade dos seus gestos, sempre acalentadores. Manoel Caetano, pela batalha do dia a dia, na política, na vida, na amizade. Meus padrinhos Fernando Rocha e Eni Mendlowicz, pelo olhar carinhoso com que acompanharam meu crescer. Adriana, José Eduardo e Gabriela Motta pelo entusiasmo com que participaram da minha trajetória e pelo abraço familiar de sempre. Lionel Fischer, eterno parceirinho, pela amizade que não cessa com o tempo. Carla Penna e Inês Simonsen, da infância ao reencontro na psicanálise, presentes no afeto e no pensar. Annelise Lusser, pela corajosa potência com que abraça o mundo e aposta nos futuros. Mara Rocha, pela presença tão aconchegante e generosa... pelo que nos enlaça com amor.

    Fernanda Mauro, Rafaela Gevaerd, Priscila Sollon, Lucas Moretti, Kiki Moretti, Ana Paula Barbosa, Alejandra Tarin, Carol Koeler, Jeanny Marques, Isadora Ganem, Ana Paula Rabello, Sarvin Patel, Tiago Neves, Guilherme Erthal, Daniel Kveller e Pedro Kosovski por cada encontro singular na história da longa duração. Fernanda Andrade, dos medos compartilhados às políticas abraçadas; Laura Harvey, monumento de singularidade, antídoto para crise; Patrícia Flórido e Isabel Nóbrega, pelo lar que nunca deixará de me habitar; Giovanna Bins, pelo nosso eterno Nelson Rodrigues; Mariana Terra, por provar, com coragem, que a vida pode triunfar às forças contrárias.

    Gabriela Bezerra, por estar infinitamente aqui junto ao indescritível Paulo Fischer: obrigado pelo abraço sem hora e que agora espera Vicente. Manuela de Lamare que brinca com a cadência da vida, fazendo os sonhos pularem das listas para desafiarem fronteiras, na ousadia de se relançar sem nunca deixar de se fazer presente. Miranda Villa-Lobos: tudo fica mais bonito quando você está por perto, mas, mesmo longe, nada desata nós. Junto ao Rui Nuno, que ganha de Moliére com suas hipocondrias poéticas, e à bela Aurora, estão escrevendo uma linda estória, da qual tenho alegria de ser um capítulo. Maria Luiza Carneiro, pelo seu jeito todo especial de ser. Da aurora da adolescência (quando a rua era um cenário cinematográfico) até hoje: obrigada por nunca ter saído do meu lado. Meu pensamento sempre voará ao seu encontro e, também, de Joaquim.

    Ney Klier que, não se deixando capturar pelos relógios da performance, prova que é possível criar o próprio tempo e compartilhá-lo com o outro: peça-chave nessa ciranda. Eduardo Medeiros, pela presença efetiva e afetiva, inclusive, nessa escrita. Agradeço por todos os espinhos que tirou do caminho e as flores que colocou, junto de Ana Amélia, João Luis, Antônio e Carolina. Rafael Telles, obrigado por remediar o mal-estar com a leveza de seu passo; Diego Sanzana, pelos giros clínicos às trocas dançantes; Gustavo Liuzzi, por recusar o pensar como estátua e afirmá-lo como onda, por cada tinta sem medo; Breno Aouila, pelo irrefutável afeto que nos une, vamos e convenhamos na filosofia.

    Pedro Tambellini, por ser um sentimento moletom que nunca me deixa habitar uma nota só; Christian Bittencourt, pelos sonhos pintados que tensionam bordas: um aquário sempre bom de mergulhar; Moraes Moreira que, pela lei natural dos encontros, se fez tão presente, inclusive, assistindo a defesa dessa pesquisa. Tristemente nos deixou, mas mantendo as trincheiras da alegria acesas: na eterna noite, sempre a primeira, você estará.

    Frederico Motta, por tomar cada sonho como seu e por todos territórios desconhecidos que me levou a transitar, sem nunca deixar de ser âncora. Obrigado por abraçar o tempo e fazer dele história. Gabriel Raggio que, de cara para o vento, atenta sempre ao tempo: obrigado por refazer minhas nascentes e mostrar que nesse tempo – que não começa nem termina – nunca ando só.

    Rafael Cavalheiro, um acontecimento que até hoje carece de explicação: um raio vital que transpassou e me deixou fora de mim. Com normas e Eros, fazemos alquimias.

    Amizade e gratidão caminham juntas, pois não existe amizade egoísta nem gratidão solipsista. Nesse sentido, ressalto minha amizade com Patricia Andrade, um dos maiores presentes que a psicanálise me deu. Quem me encorajou a entrar nessa aventura e driblou, com um amor gigantesco, todos os impasses que apareceram. Sem você, nada disso teria sido possível. Obrigada por provar, diariamente, que amigo é casa, junto à doce Bea - que cria enquanto alimenta a vida - e Ricardo que, com sua generosidade sem fim, transborda afeto.

    Essa casa também é construída por Priscila Spínola: na força da sua beleza, sinto firmeza e paz; por Alejandra Vargas que aposta no feminino sem certificado de garantia; pela pequena Maitê que se lança nesse mundão ensinando que lúdico é resistência; pelo meu grande amigo Conrado Tapajós, matéria vida, tão viva, na minha vida, um coração vermelho que faz o sol vermelhecer sem nunca me deixar no escuro. Compartilham dessa morada Taiz Lima, que brilha mais do que milhões de sóis, junto aos seus queridos filhos: Jojô, um peito cheio de promessa, e Antonio Pedro que luta por nossa pátria mãe tão distraída.

    Agradeço a meus queridos tios Eleonora, Geraldo e Luciana e primos, Guilherme, Duda, Carolina, Juliana, Isabel e Renata, por derramarem tanto amor, seguindo o bonde de Lígia e Helvécio, meus avós, que nunca caíram nas amarras dos discursos da saúde e da prevenção. Obrigado pelos longos anos de afirmação da vida, por ensinarem que longevidade é saber viver.

    Ao meu analista Carlos Alberto Silva que durante todos esses anos me impulsionou a fazer de cada crise uma verdade-acontecimento, fazendo-me pensar sobre os riscos que deveria correr e quando era melhor correr dos riscos. Obrigado por me ensinar a construir saídas criativas a cada vez que o desamparo se coloca.

    À Olinda Rocha, pelo fogo que faz vida, pela morte que grita por poesia, pelo risco que arrisca: obrigado por mostrar que vento é corpo, então vá. E no ir, vem João, amor grão, que semeia pelos cantos, fazendo da voz um risco no silêncio, transformando os medos em sementes que rabiscam qualquer insensatez. Obrigado por ser flor que vence canhão e por fazer de nós o mais forte refrão.

    Ao meu pai, Luis Alberto Helsinger, que não pôde me ver entrando no mestrado, mas que tenho certeza que ficaria orgulhoso. Minha eterna admiração a você que tanto me instigou o pensar e o criar, desde criança. Sem dúvida, esse livro tem sua marca e te agradeço por essa herança. Mas, mais do que isso: obrigado por mostrar que a morte não anula a vida.

    À Eliana Mello, pela exigência de trabalho que me impulsiona a ter um savoir-faire com os riscos, com a vida, com a imperfeição, com a feminilidade. Com a água que passa e com a areia que fica no lugar. Obrigada por cada inesquecível afago e por ter me apresentado Eros em toda sua potência. Por provar que sobrevivência é desejo e desejo é sobrevivência. Minha força sempre estará amarrada no seu passo.

    À minha irmã Luana Helsinger, obrigada por fazer medo virar desafio, fobia virar aventura, crise virar arte. Por fazer dos gritos e sussurros um belo dizer. As saudades só me deixam dizer que em toda Terra do Nunca há um terreno do sempre, minha Fanny e Alexander. Obrigada por atravessar oceanos para estar comigo nas defesas, por estar sempre na coxia, entrando em cena na hora certa, nas sonatas de todas estações. Por jogar xadrez com a vida, ao meu lado.

    PREFÁCIO

    OUTRA FORMA DE VIDA?

    O título em questão nesta publicação, O que é comprimido hoje? A psicanálise em crise, é um denso ensaio que procura problematizar³ os impasses presentes na contemporaneidade. Esses impasses se inscrevem em diferentes registros de leitura, a saber, a economia, a política, o laço social, a moral e a subjetivação. O que implica em dizer, bem entendido, que os impasses em pauta se ordenam sob a forma da complexidade,⁴ o que demanda necessariamente, em contrapartida, que seja realizada uma investigação de ordem transdisciplinar. Com efeito, não obstante ter sido escrito como uma dissertação de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a obra em questão se inscreve decididamente no campo de pesquisa transdisciplinar, no qual o discurso psicanalítico ocupa a posição estratégica de ser o fio norteador dessa empreitada.

    O ponto de partida de Natasha Mello Helsinger nesse percurso é um conjunto de interrogações pertinentes, que delineiam assim as diferentes bordas dos impasses presentes na contemporaneidade. Portanto, são tais impasses que circunscrevem os problemas cruciais a serem devidamente pesquisados, de forma sistemática, sob o estilo retórico da problematização desses problemas.

    Assim, por que será que tememos tanto a doença e a morte, ao ponto de saturarmos nossos corpos com práticas sistemáticas de cuidados, nas quais se aliam intimamente os discursos da medicina e os discursos dos exercícios corporais ao infinito, numa busca frenética da prevenção absoluta do mal? Ao lado disso, porque será que nos intoxicamos tanto com drogas pesadas e com medicamentos psicofarmacológicos para promover o incremento permanente da excitabilidade? Sem esquecer, é claro, de que tal excitabilidade está a serviço da exaltação de si, pela qual o eu se dilata e se inflaciona de forma ilimitada, ao ponto de que nessas inflexões se produz o conflito permanente e até mesmo o confronto mortífero entre os indivíduos. Enfim, porque será que nos preocupamos tanto com a segurança, como se o medo de sermos destruídos atravessasse permanentemente as nossas entranhas e nos impusesse o espectro terrificante da evisceração iminente?

    Antes de tudo, é preciso destacar que o risco como experiência possível passou a pautar como um espectro as nossas vidas. O risco nos petrifica de forma permanente, se inscrevendo no psiquismo de maneira persecutória. Seria em decorrência da violência atribuída ao risco que o corpo se destaca como o alvo privilegiado das preocupações dos indivíduos, que querem se proteger do Mal pela medicalização infinita da vida, que se faz assim aliada das práticas securitárias permanentes. Contudo, é o imperativo de performance o que se impõe aos indivíduos como o que sustenta as práticas de exaltação de si, por um lado, e da excitabilidade permanente, pelo outro. Enfim, é a reluzente expansão fálica o que delineia de maneira viril a construção enrijecida das formas corporais.

    Portanto, o que se afirma assim com eloquência, nessa nova forma de vida promovida no mundo contemporâneo, é o imperativo da extensão infinita da vida e até mesmo o da restauração do mito arcaico da imortalidade. Seria ainda isso que estaria inscrito de forma imanente na pretensão das culturas do risco e da performance, que definem um novo estilo de existência para as individualidades,⁵ na atualidade.

    O que se evidencia assim é que a contemporaneidade estabelece a ruptura e a descontinuidade eloquente com as coordenadas presentes na aurora da modernidade, situada na passagem do século XVIII para o século XIX, na qual o filosofema da finitude da vida se impôs como um imperativo incontornável, na medida em que como enunciou Bichat a vida seria o conjunto de forças que lutam contra a morte, no que concerne o registro do vivente.⁶ Contudo essa formulação lapidar de Bichat, constitutiva que foi do discurso do anátomo-clínica,⁷ foi retomada por Freud e por Heidegger respectivamente, no discurso psicanalítico e no discurso da analítica existencial, para enunciarem seja a finitude do sujeito do inconsciente pelo confronto interminável entre as pulsões de vida e as pulsões de morte,⁸ seja a finitude do Desein pelo enunciado do ser para morte.⁹

    Ao lado disso, a filosofia de Kant já delineava a passagem crucial para a emergência da modernidade com a enunciação do filosofema da finitude, que se materializaria segundo Foucault, logo em seguida, pela constituição da episteme moderna, centrada nas categorias da história e do tempo,¹⁰ marcando de forma eloquente a descontinuidade com a episteme clássica da representação.¹¹

    Contudo, numa perspectiva genealógica o que estaria em pauta com a emergência da contemporaneidade seria certamente a constituição do neoliberalismo como forma de vida. O que implica em dizer, bem entendido, que o neoliberalismo não se reduz à condição de ser apenas uma técnica de gestão da economia no tempo da globalização, nem tampouco o neoliberalismo seria a retomada literal na atualidade dos pressupostos fundamentais do liberalismo clássico existente no século XIX, mas implicaria antes de tudo na invenção radical de uma nova forma de vida.

    Porém na invenção dessa nova forma de vida existiria certamente a criação de um Estado neoliberal, assim como de uma sociedade e de uma economia neoliberais, que se articulariam de forma complementar e coerente. Porém, é preciso evocar ainda que a ordem neoliberal constituiria também um ethos, que forjaria assim novos registros para o corpo, o psiquismo e os laços sociais, pelos quais se delineariam novas formas de subjetivação.

    Assim, pode-se enunciar que se a ordem neoliberal desconstruiu sistematicamente a concepção de sociedade existente desde o século XIX – silenciando a figura do cidadão e colocando em destaque a do consumidor/empreendedor como seu contraponto, assim como a universalização do mercado apagou a existência da sociedade –, tal ordem neoliberal constituiu ainda outro ethos, no qual a concepção do sujeito foi silenciada, sendo substituída pelos registros da cognição, do comportamento e do funcionamento cerebral do organismo. Em decorrência disso, a psicologia cognitiva, o neocomportamentalismo e a psiquiatria biológica, de base naturalista, silenciaram a existência ética do sujeito. Por isso mesmo, a psicanálise entrou em crise desde os anos 80 do século XX, quando essa viragem e descontinuidade se impuseram efetivamente no registro do ethos.

    Portanto, com essa descontinuidade, o que se produziu foi a construção do indivíduo centrado em si de forma eloquente, no registro do eu, sem qualquer fenda e fissura, tal como Foucault formulou no Nascimento da biopolítica¹² com a constituição do empresário de si próprio e com a promoção do capital humano como fonte de produção e de acumulação de riqueza. Seria então por conta disso que a concepção da finitude, articulada a de sujeito marcado pela divisão e pela conflitualidade enunciados pela psicanálise desde Freud, indica um colapso vertiginoso, numa nova ordem do mundo que promove a performance, a exaltação de si, o risco e o imperativo da segurança.

    Não obstante tal ideário fálico/performático, a psicanálise como discurso se delineia ainda como contraponto possível, para colocar decisivamente em cena o registro da feminilidade em articulação tensa com as marcas da finitude e da divisão do sujeito, como matriz crucial do inconsciente e das formas de subjetivação.¹³

    Enfim, foram tais propostas teóricas e políticas, ao mesmo tempo ricas, interessantes e instigantes, que este livro denso nos enuncia, num ensaio marcado pela inteligência, pela vivacidade e pela escrita pujante.

    Joel Birman¹⁴

    Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 2018.

    Apresentação

    O livro O que é comprimido hoje? A psicanálise em crise é fruto da dissertação de mestrado intitulada A psicanálise em tempos de riscos e performance: o que é comprimido hoje?, orientada pelo professor Joel Birman. A pesquisa foi desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e defendida em fevereiro de 2015.

    Considerando a eficácia produtiva dos dispositivos de saber-poder, o livro investiga os modos de subjetivação que estão sendo forjados em tempos de exigência de performance e de gestão dos riscos, interrogando como a atual conjuntura sociocultural, política e ética contribui para a crise da psicanálise. A hipótese que almejo sustentar consiste em pensar que a problemática da finitude, que se colocou como questão central na modernidade¹⁵, vem sendo silenciada em nome do risco. E, a partir do imperativo do medo, procuramos nos precaver de nossa feminilidade¹⁶, buscando a longevidade e a conquista de um espírito performático, o que contribui para que o sujeito seja eclipsado, tal como os campos de saber que o valoram.

    A problemática da subjetividade se coloca hoje, na medida em que ela interpela, segundo Birman, as formas de experiências que são colocadas para os indivíduos na sociedade contemporânea (informação oral)¹⁷. É possível perceber a ameaça de homogeneização maciça dos indivíduos, por exemplo, pela matemática, pela estatística e pela intensa produção da imagética corporal. O psicanalista acrescenta que as neurociências, a psicologia, o cognitivismo, a psiquiatria e a medicina biológica, ao apostarem na organização do pathos da experiência – concebendo suas variações a partir de critérios normativos – promovem, também, a objetivação das subjetividades. Isto é, o que está em jogo é o fantasma do apagamento das diferenças pelo processo de homogeneização que se dá às expensas da singularidade.

    Partindo da tese de Foucault¹⁸ de que o poder é menos repressor do que produtor, o problema que me proponho trabalhar é: que formas de subjetivação são forjados em tempos de gestão de riscos e de exigência de performance? Esta indagação remete para uma questão que lhe é subjacente: será que os discursos da psiquiatria biológica, das neurociências e da psicologia, ao privilegiarem os fatores bioquímicos, cerebrais, a mente e o comportamento, colocam em xeque a noção de sujeito?

    Tendo isso em vista, discuto no livro como a lógica neoliberal incide nas modalidades de mal-estar e, ainda, como ela corroborou para que as neurociências, a psiquiatria biológica e as tecnopsicologias conquistassem uma notoriedade científica e social nas últimas décadas. Exploro como esses discursos se inscrevem na cultura do narcisismo e no ideário da performance que, por sua vez, preconiza o reforço da normalidade por meio da gestão dos riscos, dos psicofármacos, da instrumentalização e da naturalização das propriedades humanas. Indico como isso é acompanhado pelas promessas de longevidade e de imortalidade que serão pensadas como um signo de que a problemática da finitude, tal como inscrita na modernidade, está sendo eclipsada em nome da preocupação generalizada com os riscos e com a saúde. Essa discussão remete para o projeto do biopoder e para a nova cartografia do corpo da medicina contemporânea, que radicalizou o projeto de fragmentação do organismo.

    A questão que se coloca é que as dimensões simbólica e histórica do sujeito estão sendo silenciadas, na medida em que este tem sido fracionado em uma série de fatores e reações bioquímicas. Nesse sentido, quando me refiro ao silenciamento do sujeito, estou considerando que este é caracterizado por uma perspectiva histórica e simbólica que transcende os parâmetros biológicos e comportamentais e, também, qualquer universalidade. Isto é, estou pensando o sujeito em sua singularidade. Em uma leitura psicanalítica, estou me referindo ao sujeito da finitude que é marcado pelo erotismo, pelo corpo erógeno e pulsional¹⁹. No que concerne a isso, vale enfatizar que a psicanálise é um discurso fundado no inconsciente que, por sua vez, remete para o campo da sexualidade e do desejo, o que evidencia que o discurso freudiano valorou o desejo que havia sido negativado pela tradição cristã, na medida em que esta o aproximou do pecado²⁰. Ademais, estou pensando a condição descentrada do sujeito, seja por este se inscrever na problemática da finitude, por não estar centrado no campo do eu e da consciência, por ser atravessado por uma luta constante entre diferentes forças e instâncias psíquicas, ou ainda, por ser atravessado pela alteridade.

    É por essa vertente que se encaminha a investigação sobre a perda do poder simbólico da psicanálise como um discurso fundado no inconsciente. Finalmente, o livro se volta para a importância de a psicanálise sustentar a singularidade do discurso freudiano, resistindo aos paradigmas normativos e naturalistas, o que supõe problematizar quando ela se coloca a serviço da normalização e quando ela propicia a estilização. A partir desta, as noções de feminilidade e da finitude são apresentadas como formas de resistência ao discurso do risco e ao imperativo da performance.

    Sumário

    Introdução

    Capítulo 1

    Corpo pulsional, corpo-indivíduo e o corpo-espécie:

    riscos no investimento do corpo?

    1.1. A modernização do social, a exclusão do corpo e dos afetos

    1.2. Risco e diagnóstico: a herança mórbida do higienismo e da degenerescência

    1.3 A eficácia produtiva: o homem, a liberdade e o corpo-indivíduo

    1.4. A população, o biopoder e o corpo-espécie

    1.5. Medicalização e saúde: um obscuro objeto de desejo?

    1.6. Anatomoclínica, tempo e história: o homem e a finitude

    Capítulo 2

    O supermercado da performance, dos riscos e dos

    psicofármacos: o consumidor, o consumo da dor e o sujeito consumido

    2.1 Neoliberalismo e insegurança: luz, performance e ação?

    2.2 Os riscos na pós-modernidade: globalização, gestão e biopoder

    2.3 Neuróticos, desculpem os transtornos estamos trabalhando para melhor

    medicá-los

    2.4 O neokraepelianismo: o retorno dos que não foram?

    2.5 Remediando o mal-estar: a gangorra da psicanálise e da psiquiatria

    2.6 A eficácia do sujeito cerebral

    2.7 Imortalidade, humanismo e animalismo: a crônica de uma morte exorcizada?

    2.8 Crise da psicanálise: o sujeito comprimido no supermercado da eficácia?

    Capítulo 3

    Eficácia, longevidade e finitude da psicanálise:

    a crise e seus contornos

    3.1 Clínica e ética: a finitude no discurso freudiano

    3.2 A psicanálise

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