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Literatura e ética: Da forma para a força
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Ebook157 pages2 hours

Literatura e ética: Da forma para a força

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Entrecríticas é um espaço teórico para se pensar a literatura em suas conexões com outras práticas artísticas, reflexões críticas e objetos culturais contemporâneos. É isto que cada um dos ensaios desta coleção de autores latino-americanos persegue, a partir de diferentes perspectivas: abordar a literatura não como um campo fechado em si mesmo, e sim como um movimento em direção a tudo o que a estimula e a transforma.
Paloma Vidal
A argentina radicada no Rio de Janeiro parte dos binômios arte e vida, literatura e vida, escrita e vida, para analisar "o que pode a literatura", ao final. Transitando por autores como Roland Barthes, Julio Cortázar, Tamara Kamenszain, Roberto Bolaño e por sua própria experiência criativa, a autora discorre sobre a escrita como ato ritual e forma de existência que os aproxima, a despeito de suas diferentes poéticas.
LanguagePortuguês
PublisherRocco Digital
Release dateSep 1, 2014
ISBN9788581224640
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    Literatura e ética - Diana Klinger

    Créditos

    CUIDADO ao cão

    que morde dentro

    EDUARDO STERZI, Aleijão

    Abre-se na vida de quem encontra o acaso, como na de quem encontra verdadeiramente uma imagem, uma lacuna imperceptível que o obriga a renunciar à luz tranquila e à linguagem usual, para manter-se sob a fascinação de uma outra claridade e em relação com a dimensão de uma outra língua.

    BLANCHOT, O livro por vir

    Primeira carta: um campo de forças

    Querida Lu,

    Agora que você está longe e que não dividimos mais nossa cotidianidade, o café da manhã e o papo descontraído antes de cada aula, vai ser bom botar as coisas por escrito, continuar esse diálogo que ao vivo eram apenas fiapos de conversa entre chimarrão e chimarrão, e que, depois de ler sua tese, acabou se materializando em um caudal de provocações a meus pensamentos.

    Uma vez ouvi de alguém uma anedota, acho que era do etnólogo James Prichard, algo que só posso reproduzir com toda a imprecisão da minha pobre memória, pois nunca mais consegui recuperar a referência. Seja como for, o que importa é a força evocadora daquela situação: o antropólogo fazia trabalho de campo em uma aldeia na África, quando, após uma forte chuva, uma cabana desaba sobre um homem que dormia dentro dela e que fica gravemente ferido. O chefe da tribo faz um ritual de bruxaria para descobrir, junto aos deuses, por que isso teria acontecido. O antropólogo, um pouco constrangido com a situação, tenta explicar para os nativos o que teria acontecido: Simplesmente, os pilares da cabana estavam velhos, a madeira apodrecera com as chuvas e por isso a cabana desabou. O chefe da tribo olha para o antropólogo arregalando os olhos, impactado. Escuta a explicação até o final e depois responde: Professor, o que o senhor está explicando é evidente, isso aí todo mundo sabe... o que nós queremos saber é por que isso aconteceu naquele momento, quando aquele homem, e não outro, estava precisamente dormindo dentro...

    Passamos anos das nossas vidas agindo (escrevendo) como o antropólogo. Mais próxima do nativo, hoje me sinto muito menos tentada a provar e constatar o que, no fundo, todo mundo sabe, que não é mais do que a aplicação da lógica e da física ao fato cotidiano – nossas cabanas que desabam são os textos –, e muito mais a fim de procurar algo da ordem do inconstatável. De interrogar o céu.

    Como o nativo, sou menos movida pela procura de conhecimento que pelo desejo de imaginar fios invisíveis que ligam as coisas deste mundo entre si, que tecem tramas tênues de sentidos. Isso não significa uma apologia do amadorismo ou do impressionismo, mas a tentativa de mergulhar no que me atinge existencialmente e pensar a partir daí. Por outro lado, é impossível – felizmente – me desfazer da minha bagagem teórica, pois ela se parece muito menos com uma cartola cheia de recursos do que com a pele que habito, o ar que respiro.

    Se te escrevo essa carta, Lu, é porque a minha pesquisa (não gosto dessa palavra) se tornou inseparável da amizade, dos diálogos cotidianos (e não só dos diálogos acadêmicos que fazem parte de qualquer pesquisa), das conversas que tive e tenho com você e, também a distância, com tantos outros amigos. Este livro é para e de meus amigos. As ideias que se tecem no diálogo não pertencem nem a um nem ao outro, mas exclusivamente à relação.

    Comecei a escrever este livro ao mesmo tempo que entrei na análise. Não era o primeiro começo, pois já tinha feito outras na vida. Mas algo que vai muito além da empatia com a minha analista me fez acreditar que dessa vez seria diferente. Por algum motivo que não sei definir, parece que a vida se divide num antes e um depois: da velha, sobrevivem as amizades, da nova advém uma estranha sensação de potência transformadora, da qual eu nem suspeitava que seria capaz.

    Quando comecei – escrita e análise –, eu tinha dois caderninhos. Em um ia escrevendo uma espécie de diário da cura, onde eu registrava alguns dos pensamentos sobre a minha vida que vinham a partir da análise. No outro, tudo o que me chamava a atenção e serviria para minha pesquisa. Houve vários momentos em que eu não sabia em qual dos dois caderninhos anotar, até perder um deles e assim todas as observações de quase um ano. A pesquisa e a vida se misturaram de uma forma inédita para mim. Essa é minha virada ética. A literatura é meu pacto silencioso com o vazio do mundo. Não é meu consolo. É minha aceitação, meu amor fati. Meu compromisso.

    Ao longo de um semestre, dialoguei sobre os assuntos que me interessavam com meus alunos. Foram meses de convívio intenso. O afeto entre a gente foi crescendo, ao mesmo tempo em que o caderninho cinza foi se enchendo das sugestões que eles me davam, dos comentários, dos diálogos... Na última das minhas aulas, o caderninho sumiu. Foi algo muito misterioso. Voltei para casa com todos os livros e o computador que tinha levado para a aula. Mas o caderno não estava mais. Passei duas semanas procurando. E nada: o caderno com as anotações do semestre inteiro, que iam se transformar neste livro, sumiu para sempre. Assumi a perda como um sinal do destino; afinal, tudo desde o início esteve marcado por uma série de coincidências. Há um tempo que procuro escutar o que o acaso tem a dizer, procuro encontrar sentido para as coisas que aparentemente não o têm (de novo, o nativo dentro de mim). E o sentido você só pode dar retrospectivamente. Os pontinhos, você só junta para atrás. Esse livro tinha que nascer daquilo que se perdera com o caderno, desse vazio, desse esforço por recomeçar. Tinha que nascer de novo, de uma página em branco. Daquilo de que eu me lembrasse e do que não. Não havia outra opção.

    Ironia do destino, essa perda acabou se revelando algo como a constante a partir da qual eu escrevo e vivo, a constante sobre a qual se constrói minha vida acadêmica e afetiva. Isso ficará mais claro ao longo das páginas que seguem. Estas anotações partem de situações autobiográficas, que são o impulso que me arrasta a certas leituras, a certos autores, a certas perguntas. É o livro mais exposto que eu poderia escrever: resolvi me expor com toda a força, a fraqueza, a potência e a vulnerabilidade de meu próprio eu. Falo em nome próprio e falo de mim mesma. Não tive a intenção de esgotar nenhum dos temas teoricamente. Muito pelo contrário, permito-me um percurso fluido, descontraído, caprichoso. Pois, como diz Deleuze, os conceitos são exatamente como sons, cores ou imagens. São intensidades: convêm ou não convêm, passam ou não passam.

    Estou apenas ensaiando, Lu, e o ensaio é uma revolta contra a estrutura, contra a doutrina segundo a qual o mutável e efêmero não são dignos de filosofia, como diria Adorno. O ensaio recua contra o dogma que atribui dignidade ao resultado da abstração. No ensaio, os conceitos não são definidos, mas se tornam mais precisos por meio das relações que estabelecem entre si: cada conceito se articula em configurações com os outros, sem formar uma estrutura. Os elementos se cristalizam por seu movimento. Essa configuração é o que Adorno chama um campo de forças, expressão que toma de Walter Benjamin e que se aproxima de suas constelações. Há uma ordem cósmica, a ser lida nos astros, nas vísceras, nos acasos. Benjamin lê como se fosse um astrólogo: constrói constelações. Como diz, em A doutrina das semelhanças, o dom mimético, fundamentado na clarividência, teria migrado para a linguagem e para a escrita, produzindo um arquivo de semelhanças extrassensíveis. A clarividência confiou à escrita e à linguagem suas antigas forças, no correr da história.

    Fico com o campo de forças porque espero que surja daí, dessas aproximações entre as leituras, mais do que um sentido, precisamente uma força. Tenho tentado construir isso: algo assim como um campo de forças. Pois a verdade, Lu, é que sempre escrevi para não afundar.

    Daí, este poema de Marcelo Reis de Mello, a falar por mim:

    I

    Aqui, segurando esta faca

    nos dentes

    (a cabeça entre as mãos)

    desafiar o rio com que o tempo

    docemente – nos rasga.

    II

    Aqui,

    agarrando-nos com força

    ao coração

    da correnteza

    (na aspereza da água)

    amar

    e afundar

    enquanto alguém amarra

    uma pedra aos pés

    de uma flor.

    O vento do inverno sopra

    Os olhos dos gatos

    Piscam

    BASHÔ

    1. O remorso da literatura

    [1]

    Fevereiro de 1982

    Na tela do computador, a minha imagem se reflete enquanto escrevo. Posso ver, no reflexo, o rapaz que estuda na mesa vizinha: parece bonito e tem um cachecol. Adoro homens de cachecol. Faz muito frio aqui dentro, na sala de leitura do CCBB, em contraste com o denso calor lá fora. Gosto de trabalhar aqui, e, apesar do silêncio, começo um diálogo secreto com ele. Me pergunto se ele percebe que eu o observo. De vez em quando, ele olha para mim, de lado. Disfarça. Eu também disfarço: volto ao livro, à página opaca, sem reflexos. É um volume de contos intitulado Deshoras, o último livro publicado por Cortázar, há 30 anos. Imagino Cortázar na frente da Olympia, fumando seus Gitanes, olhando para fora da janela a cidade cinzenta. Anoitece e, lá fora, faz muito frio. É Paris. As janelas estão um pouco embaçadas e o pequeno apartamento cheira a cigarro. Posso imaginar, no silêncio do final da tarde, o barulho que fazem as teclas da Olympia ao digitar. Imagino, ainda, o branco opaco da folha em que se imprimem uma a uma as letras ao ritmo da inspiração de Cortázar e que agora aparecem para mim nessa página já amarelada pelo tempo. É um livro que achei uma vez na biblioteca de meus pais, no final da década de 1980, alguns anos depois de ter sido publicado e muitos anos antes de eu saber que ganharia a vida ensinando literatura. Naquela época, eu lia um pouco de tudo – de antropologia à divulgação científica, de poesia medieval a psicanálise – ao acaso do que encontrava na dispersa biblioteca de meus pais. Mesmo que fossem grandes leitores, eu tinha a impressão de que eles nem sabiam direito o que tinham nas estantes, pois os livros não seguiam nenhuma ordem, estavam colocados lado a lado aleatoriamente. Mergulhar nessa estante de madrugada, a deshoras, como eu fazia com frequência, era se deparar sempre com alguma coisa inesperada.

    Foi assim com Deshoras. Não que seja o melhor livro de contos de Cortázar, longe disso.

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