O dragão pousou no espaço: Arte contemporânea, sofrimento psíquico e o Objeto Relacional de Lygia Clark
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Lygia, a princípio, atuou de maneira interdisciplinar, aliando a linguagem clássica da psiquiatria à criação dos objetos interativos num método alternativo. Mais tarde, desenvolveu uma terapia independente, que chamou de Estruturação do Self. Os Objetos Relacionais, ferramentas da Estruturação, eram instalações táteis, móveis, manipuláveis, de simples execução, com diferentes texturas, formatos e cores, aplicados no corpo do paciente, e que estabeleciam uma oportunidade de contato simultâneo com o mundo interno e externo. Os resultados, dos quais Lula extrai considerações que reforçam a ideia de uma psiquiatria mais participativa, são animadores do ponto de vista clínico.
Nesta obra, Lula explica detalhadamente os princípios da terapia, num estudo não-acadêmico, ilustrado com depoimentos reais e poemas dos pacientes, colhidos em nove anos de anotações espontâneas dos tratamentos que ministrou, além de descrever os avanços do seu trabalho chamado Palavragesto e o processo de criação do Espaço Aberto no Tempo, uma clínica para doentes mentais mantida por ele e demais psiquiatras.
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O dragão pousou no espaço - Lula Wanderley
42.
Percurso e paisagens
O TRABALHO – A arte sempre ocupou um espaço significativo entre meus interesses. E, como no mundo contemporâneo seus limites perderam precisão, aproximando-se do gesto criativo em si, buscando tocar em forças sociais, psicológicas e corporais, interessei-me por criar formas interpessoais de comunicação tendo a arte como instrumento. O contato com Nise da Silveira me fez levar essas experiências para um trabalho com esquizofrênicos em hospital psiquiátrico. Lá, a solidariedade tão especial que senti para com as pessoas fez com que me entregasse, com paixão, à busca de caminhos de saída para aqueles que sofrem uma experiência psicótica.
Na procura de acesso às vivências psicóticas, na avaliação das muitas informações teóricas existentes, tentei ver a essência das coisas, tomando minha sensibilidade como principal instrumento de trabalho. Só assim poderia fazer a ligação entre o sentir e o pensar, entre a arte e a ciência, através do meu olhar próprio. Condição indispensável para que eu não perca minha identidade criadora.
Esse olhar direto
fez com que o corpo fosse escolhido como ponto de partida, onde achava poder encontrar a forma mais visível, mais concreta do sofrimento psicótico.
O INSTRUMENTO – O que segue faz parte de um livro sobre arte e contemporaneidade. Mas, médicos, psicólogos, psicanalistas, enfim, todos os que trabalham com o sofrimento psíquico, não abandonem este livro mesmo que a arte contemporânea não esteja entre seus interesses; este é também um livro sobre a experiência psicótica. É no encontro entre arte e sofrimento que traço o percurso deste livro.
Em nossa época, arte e loucura aparentam ter uma relação muito estreita, a ponto de se imaginar que toda arte tem um pouco de loucura e toda loucura tem seus momentos de arte. Mas arte e loucura nada têm em comum, exceto o fato de que ambas dizem respeito à vida na qualidade de forças e limites da experiência de viver.
A reconstrução do mundo, empreendida por aquele que sofre a devastação de uma crise psicótica, algumas vezes assemelha-se à reconstrução do mundo contida na experiência da arte. Embora o sofrimento não determine a arte, a preocupação acerca do real e do imaginário, da fragmentação e da unidade, a experimentação de novo código de comunicação com o mundo aproximam as duas experiências. Isto faz com que toda vez que a psiquiatria abandona a objetivação racionalizante da medicina, que a torna incapaz de ver a originalidade da vivência psicótica e sua relação com a vida, encontre nas diversas linguagens de expressão utilizadas pela arte forte aliado na tentativa de reconstrução do mundo, antes bloqueada pelo sofrimento. Nas instituições psiquiátricas, os ateliês de pintura e escultura, as oficinas de dança, literatura, música etc. mostram que a expressão criativa, além de terapêutica em si (podendo ser utilizada pelos doentes na tentativa de comunicação com o mundo e de reestruturação da ordem interna), constitui importante acesso à realidade da fragmentação psicótica.
A psiquiatria contemporânea, ao reativar a cultura da não exclusão, dando ênfase à convivência, à integração, ao cotidiano construído dentro de um contexto social mais amplo, recorre às expressões criativas mais espetaculares (teatro, performance, dança) como instrumentos mediadores na relação (adaptação recíproca) entre aqueles com problema de inadaptação social e os que vivem em contato com eles.
Ao buscar a diversificação, impossibilitando a repetição vazia, produzir vida onde só há vazio, o cuidar terapêutico aproxima-se do gesto criativo em si – dos processos da arte. Aproxima-se do artista que, na segunda metade do século XX, rebela-se contra a banalidade da vida cotidiana e a obra de arte como mercadoria, buscando nova relação entre arte e espectador, aproximando a arte da vida através da valorização da ética sobre a estética.
Neste livro, tomo como ponto de partida o Objeto Relacional de Lygia Clark, artista que primeiro soube compreender a participação direta do público na criação da linguagem artística, criando essa original interação entre arte e espectador, entre arte e ciência, entre arte e vida.
Em nossa vida cotidiana, dizemos com muita facilidade que um determinado objeto é uma verdadeira obra de arte
, mas quando nos pedem para definir o que é arte, quando temos de conceituar, tudo se torna muito difícil. Nunca sabemos se a arte é uma coisa, um gesto ou uma característica qualquer, e quando conseguimos sentir a ilusão de uma certeza, encontramos pela frente um artista sempre pronto a nos confundir. Entretanto, quase não temos dúvida em afirmar que toda arte é uma forma de comunicação com o outro, por ser uma expressão que existe numa espécie de plano imaginário. Dito em outras palavras: toda arte necessita, para existir, de um suporte que chamamos de o objeto de arte
, feito para a leitura do outro, tendo esse objeto qualidades predominantemente físicas ou conceituais.
Mas o que aconteceria se tivéssemos uma linguagem artística que não fosse essa expressão em um determinado plano, que eliminasse o suporte, e, consequentemente, em que não existisse o objeto de arte
? Em primeiro lugar, encontraríamos uma linguagem onde não teríamos um espectador, esse alguém contemplativo seria agora ativo participante na criação da linguagem artística. Mas isso não quer dizer que haveria um objeto incompleto, possuindo uma atemporalidade mesmo dinâmica que necessitasse de um espectador continuamente a tentar completá-lo, porque não existiria o objeto. Suprimido do processo de comunicação e estabelecendo um contato direto, corpo a corpo, o objeto seria dissolvido e incorporado ao participante. Não existiria, portanto, nem o espectador nem o objeto, mas sim a relação que se estabeleceria entre os dois, acabando, dessa maneira, o mito do artista.
Na busca de uma relação direta e intensa entre o homem e a arte, Lygia Clark abandonou a obra como objeto determinante da arte e dirigiu-se ao corpo do espectador, que sai da condição passiva e puramente contemplativa e passa a ter participação na criação da linguagem artística. Percurso em busca do corpo: arte dentro de uma linguagem orgânica que acabava por nos revelar a nós mesmos.
Lygia Clark nasceu em Minas e iniciou sua experiência artística na pintura. Em sua primeira exposição, percebe-se um figurativo geometrizado que logo cede lugar a um sensível construtivismo de cores densas. As cores somem e o jogo ótico do preto e branco depura o quadro para uma sequência de construções espaciais (não mais representações) que investigam a relação entre o espaço virtual (o quadro) e o espaço real circundante, entre a fragmentação e a unidade. À medida que essas construções vão se tornando mais complexas, uma subjacente organicidade desprende-se e exige a participação ativa do público. Essa dimensão orgânica vai adquirindo uma linguagem plurissensorial que, ao se articular com a percepção e a fantasmática daquele que costumávamos chamar de espectador, abre passagem através de seu corpo tocando-lhe (excitando) a subjetividade e a fantasia. Lygia Clark percebe que suas propostas
(como passou a chamar seu trabalho), ao estabelecer relação entre o metafórico e o físico a partir da vivência do participante (como passou a chamar o espectador), ampliam a percepção que as pessoas têm de si e, consequentemente, recondicionam seu destino diante de sua realidade.
Sua trajetória não tem um ponto determinante, uma descoberta em torno da qual toda uma produção orbita. É uma experimentação artística contínua que cessa apenas quando, pouco antes de sua morte, dá por encerrado seu trabalho argumentando que a arte já lhe tinha proporcionado tudo que queria. Seu prazer de achar fez com que cada descoberta emitisse conceitos que se desdobraram em outra descoberta onde o longo processo de pesquisa une-se à revelação. Seu percurso – agora o vemos – é sua própria obra e aponta para a invenção, para o inesperado, para a liberdade.
Desse original percurso tomo, agora, como referência a passagem de suas esculturas Bichos até chegar ao