Pedro Pedra
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Publicado originalmente em 1982, quando recebeu o selo Altamente Recomendável da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil), Pedro Pedra marca a estreia do escritor, professor de literatura da Uerj, ensaísta e crítico literário Gustavo Bernardo na ficção juvenil. O romance apresenta o mosaico de sensações e questionamentos de um adolescente na difícil transição para a fase adulta com uma linguagem ao mesmo tempo simples, direta, mas cheia de lirismo e de jogos poéticos.
Nesta narrativa costurada entre o relato de um narrador indiscreto e a voz do próprio protagonista, Pedro – que na maioria das vezes "fala" apenas por meio de seus pensamentos e sonhos –, descortinam-se as angústias, os desejos, as perguntas muitas vezes sem respostas, o medo e a solidão de um garoto tímido, aparentemente fraco, mas consciente da sua timidez e forte o bastante para superá-la. Um garoto como tantos por aí, que tem "no olho esquerdo, uma lágrima teimosa que não escorre. No olho direito, o brilho confiante da certeza. Um dos dois olhos está mentindo. Ou os dois mentem? Não sei".
Seguindo Pedro em diferentes lugares e momentos, o narrador conduz o leitor na aventura de conhecer esse adolescente em busca de si mesmo e do mundo que o cerca. "Pedro é a pedra. Pedro é o modelo", diz o padre na missa, no capítulo que abre o livro. Mas o que há por baixo da pedra? O que encontra lá no fundo quem levanta a pedra de Pedro? Com suas reflexões, que passeiam pela filosofia com leveza, e seu tom por vezes irônico, Gustavo Bernardo constrói um romance que mostra o quanto é duro viver e crescer, mas também a beleza de se descobrir jovem, vivo e cheio de esperança.
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Book preview
Pedro Pedra - Gustavo Bernardo
Primeira vez
Pedra.
Pedro que me quero pedra.
A História que insiste e resiste.
Navegar é preciso, viver não é preciso.
Insistir é preciso, viver não é preciso.
Resistir é preciso,
Viver!
Essa história vem de insistir comigo.
Porque água mole em pedra dura
tanto bate até que fura.
Porque pedra dura em campo liso
tanto pesa até que existe.
Existe, adolescente.
Pedro, de sobrenome Pedra.
Pedro Pedra.
Começa.
NA IGREJA
Vamos encontrá-lo sentado num banco de madeira no meio de muitas pessoas, todas sentadas em bancos iguais. As pessoas olham para um único sujeito de pé que olha para elas. Apenas este sujeito fala e todos os outros escutam.
Pedro não é aquele que fala. Vamos procurá-lo entre os calados. Sem barulho, só com os olhos. Ah, olha lá. Ele. Sentado, com cara de assustado fingindo que não está assustado. No meio dos seus pais.
Com as mãos cruzadas em cima das pernas, apertado no banco, ele olha fixo para a frente. Olho meio arregalado, parece que nem pensa, só escuta e vê. Não se mexe nem para piscar.
... como estamos vendo, toda pessoa precisa de um modelo na vida. Um modelo para as suas atitudes, desde as maiores, na vida profissional, na vida em sociedade, até as menorezinhas, na vida em família, no retiro do lar, e mesmo na vida consigo mesma. Sim. Nossa existência neste lugar é curta, muito curta. Não podemos desperdiçar um só momento onde quer que estejamos, no que quer que façamos. Cada movimento, cada palavra, cada pensamento, tudo precisa ser muito bem medido para não nos desperdiçarmos à toa por aí. Nós não somos lixo. Nós não somos avezinhas alegres e irresponsáveis. Nós não somos animais sem consciência e movidos apenas pelo instinto. Somos homens. O homem é inteligente. A inteligência dá ao homem decisão, opinião e liberdade. Só a inteligência nos diferencia e portanto nos liberta. Lembremo-nos a todo instante desta verdade maior: somos homens. Logo, como homens, precisamos ser acompanhados por um modelo que regule as nossas vidas, que determine as nossas atitudes, que não nos deixe cair em tentação, que nos liberte dos níveis inferiores, dos níveis animais da existência. Esta é a lição de hoje. Esta é uma lição para sempre. Precisamos de um modelo. E o modelo humano que eu lhes forneço, para cada gesto, para cada palavra, para cada pensamento, é também um modelo santo. Falo de São Pedro, falo daquele que foi a pedra fundamental deste lugar que hoje nos reúne e nos irmana. Pedro, o homem, o santo, a pedra, deu a sua vida pelos outros, deu a sua vida por nós. Pedro dedicou cada movimento seu à construção desta igreja que nos protege, que nos orienta e que oferece a segurança necessária para sermos o máximo que podemos ser: homens. Pedro é o construtor. Pedro é a pedra. Pedro é o modelo. Se soubermos tudo que pudermos saber sobre ele, saberemos sempre que palavra dizer, que gesto fazer, que pensamento pensar. Onde quer que estejamos, não vamos nos perder, não vamos nos desperdiçar. Agora temos um modelo a nos orientar – podemos todos ser muito felizes, justamente graças a Pedro. Eis a lição de hoje, eis a lição de sempre. Oremos, no recanto da paz e da mensagem divina. Oremos: para nenhum sentimento mau, para nenhum sentimento de raiva, para nenhum sentimento de ódio permanecer conosco. Oremos: para que fique conosco apenas o sentimento do amor. Expulsemos o pesado inferno da alma e acolhamos a doce leveza do céu. Oremos e amemos. Amém.
Um coro de améns substitui os aplausos. Humildes, todos se ajoelham e reverenciam as palavras. A madeira escura dos bancos e o mármore das colunas parecem estar de acordo com as orações.
Vejo Pedro: a testa franzida, os olhos apertados, a boca seca e séria. Ele parece sentir a responsabilidade do seu nome. Por enquanto, permanece ajoelhado como os outros. As mãos tremem. Já não olha mais para a frente, muito menos para os lados, mas sim para baixo, para o seu próprio peito – como se procurasse lá no fundo a força para sustentar o peso da responsabilidade.
De um lado e do outro, o pai e a mãe. Ajoelhados como ele, olham de rabo de olho para o seu filho. Olham gulosamente, cheios de orgulho: o filho é deles. Eles o chamaram: Pedro. E Pedro mesmo, o que pensa? Será que as palavras do padre o tocaram? Se eu pudesse entrar na sua cabeça...
"Meu nome vem de pedra. Meu nome vem do santo. O santo que foi a primeira pedra. Vou virar santo? Me chamam de Pedro. Eu posso e eu quero ser um Pedro? Não sei direito o que quero, só sei que quero muito. Mas eu sou Pedro. Então tenho de seguir os passos desse cara. Como vão me chamar no futuro? Santo não posso ser, já tem um. Se eu tivesse nascido lá atrás com esse nome, mas não nasci. Fazendo que nem o santo eu não posso ser santo, só se tivesse outro nome. Posso ser o quê? Jogador de futebol, cientista famoso, médico de todos os pobres, presidente da República, o quê? São Pedro foi a pedra da igreja, a primeira. Do que é que eu posso ser a primeira pedra, aquela que faz a base de todo o edifício? Difícil demais, ainda não sou bastante homem para saber. Que nem papai diz: estudar muito, comer muito, crescer muito. Queria ser um pedro que nem o santo. Dar a minha vida pelos outros, pelo resto da vida ter meu nome lembrado pelos outros. Pedro deu a vida pela gente, incrível: tô ficando emocionado. É esse o meu caminho? Mas como é que se dá a vida pelos outros? Correndo riscos, pode ser. No filme de ontem à noite o moço salvou a moça de morrer atropelada arriscando a própria vida. Tenho de salvar muita moça de morrer atropelada, mas não posso morrer logo na primeira tentativa. Eu não quero morrer não; as pessoas têm de falar de mim comigo vivo, ora. São Pedro não morreu cedo, é verdade. Quem dá a vida pelos outros fica protegido, se é diferente dos outros, se é melhor do que os outros. Tem perigo não, minha vida vai ser longa. Queria crescer de hoje pra amanhã e ver tudo acontecer de uma vez para ficar famoso de vez. Bem que podia aparecer um gênio de noite no meu quarto pra acelerar tudo. Quem sabe. Um gênio ou São Pedro. Ele não é santo? Santo não é quase Deus? Não pode tudo? Então? Eu tenho o nome dele. Meu nome é Pedro, não posso ter dúvida de nada. Eu tenho de ser a verdade da vida. Sempre que eu falar, vai ser na bucha: nunca vou dizer besteira, só vou dizer coisa séria, importante e bonita. Preciso ficar sempre atento pra não vir na minha cabeça outras coisas que não sejam bonitas nem importantes nem sérias. Eu sou Pedro,