Essa música
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Essa música - Ivan Junqueira
OVÍDIO
O POEMA
Não sou eu que escrevo o meu poema:
ele é que se escreve e que se pensa,
como um polvo a distender-se, lento,
no fundo das águas, entre anêmonas
que nos abismos do mar despencam.
Ele é que se escreve com a pena
da memória, do amor, do tormento,
de tudo o que aos poucos se relembra:
um rosto, uma paisagem, a intensa
pulsação da luz manhã adentro.
Ele se escreve vindo do centro
de si mesmo, sempre se contendo.
É medido, estrito, minudente,
música sem clave ou instrumentos
que se escuta entre o som e o silêncio.
As palavras com que em vão o invento
não são mais que ociosos ornamentos,
e nenhuma gala lhe acrescentam.
Seja belo ou, ao invés, horrendo,
a ele é que cabe todo o engenho,
não a mim, que apenas o contemplo
como um sonho que se sustenta
sobre o nada, quando o mito e a lenda
eram as vísceras de que o poema
se servia para ir-se escrevendo.
Ó DEÂMBULA ALMA INQUIETA
Animula vagula, blandula,
Hospes comesque corporis (...)
PUBLIUS AELIUS HADRIANUS
Ó deâmbula alma inquieta,
por que te moves às cegas
nesse ermo que se enovela
entre o que és e o que pareces?
Por que te pões tão secreta,
se debaixo de teus véus
todos logo te percebem
nos mil papéis que interpretas?
Por que temes, alma inquieta,
esse dia em que, perplexa,
souberes que não te hospedam
o paraíso ou o inferno?
Não te basta o que é terrestre
e se dá à flor da pele?
Por que buscas o mistério
no abismo que desconheces?
É por angústia que o anelas
ou só por gula das trevas
que, profundas, te apetecem
como as carcaças ao verme?
É pela luz que, feérica,
confias ver entre as vértebras
da solidão que te cerca
desde que ao mundo vieste?
Sê mais sábia, ó alma inquieta,
e concede que te levem
as águas em que navegas
sem bússola ou planisfério.
Sê mais sábia – e não esperes
que te curem das mazelas
esses deuses a quem rezas
e que, surdos, te desprezam.
A NÓDOA
Não há nada que lave essa nódoa.
Alguns a lixam, outros a esfolam,
mas nem Deus nem o diabo a removem.
Está nas