Ian: A música das esferas
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Alternando a narrativa entre os olhares e sentimentos de cada um desses personagens, a autora entrelaça com sensibilidade o passado conturbado e dolorido com o presente incerto. Por que Lenora, vocalista de uma banda que embalou toda uma geração, partira de forma tão trágica? O que aconteceu com Ian Yates, cujo corpo nunca foi encontrado? Estaria vivo? Onde? Por que a sonoridade única da Triaprima, "a música das esferas", exercia tamanho encanto nos ouvintes? Cian, o pequeno virtuose negro, de olhos azuis e cabelos encaracolados, que se apresenta nas praias de Floripa tocando múltiplos instrumentos, seria um herdeiro do talento de Ian?
Em meio a tantas perguntas e antigos conflitos que renascem com a mesma intensidade e capacidade de destruição de outrora, como se todos estivessem presos em alguma dobra do tempo, a Lenora de hoje precisa mergulhar em seu íntimo e explorar sua potencialidade de artista como nunca antes a fim de que não seja mais uma vítima da geração Amy Winehouse — imolada pela exposição e pela sede de factoides e polêmicas da mídia.
Mesclando realismo, magia, lendas célticas, referências musicais e literárias de épocas distintas, Heloisa Prieto desenvolve em Ian uma trama envolvente e de rara fluidez, que prende o leitor do início até o último riff da guitarra, e mostra que, invariavelmente, lacunas do passado precisam ser preenchidas.
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Book preview
Ian - Heloisa Prieto
Heloisa Prieto
Ian
a música das esferas
Para Lucas Nemeth
Sumário
Para pular o Sumário, clique aqui.
Melodia do passado
Em casa
No ar
Na praça
Na praia
Aeroporto – Florianópolis
A caminho
Na pousada
No palco
Quarto de hotel
Cordas
Na rede
Depoimento de Calímaco Santiago
Adversários
À margem
Diante do oceano
Juntos
Lenora em duas
Redemoinho
Tão longe, tão perto
Efeitos
Caldeirão
Ouro de tolo
Sucesso é para os Fracassados
Fracassos do sucesso
Em suspenso
Na estrada
Tramas
Triaprima
Trevas
Abismo
Confiança
Só música
Duelo
No papel
Dobra do tempo
Linhas tortas
Na estrada
Show
Sem retorno
Dália negra
Pânico
Força
Desenho animado
A onda
Flauta mágica
Música das esferas
Menestrel
Novas dunas
Voo solo
Sucesso é para os fracassados.
Créditos
A Autora
Os anjos estão se inclinando
Acima da sua cama
Cansados da tropa marchando
Com os mortos choramingando
Os deuses riem no paraíso
De te ver tão bem
Os sete marinheiros ariscos
Estão no clima também
Eu suspiro que te beijei
E estou decidido
Que tua falta sentirei
Quando você tiver crescido
– Ian Yates, Música das esferas
, álbum duplo da banda Triaprima
Melodia do passado
FLORIANÓPOLIS. DEZEMBRO DE 2011
O menino tocava uma flauta prateada. Cabelos encaracolados, negros, corpo forte e miúdo, ele dançava dando saltos assustadores. Dez anos talvez? Olhos azuis. Pele de pantera. A praça foi ficando repleta de turistas, de curiosos, até mesmo os lojistas se aproximaram hipnotizados pelo chamado melódico. O garoto parecia não vê-los; tomado por alguma espécie de transe sobrenatural, ele girava, apontando a flauta para todos os lados, como se fosse um indiano encantador de serpentes.
– Ratos de Hamelin! – gritou alguém.
A plateia toda reconheceu o riff da mais famosa canção de Ian Yates, o gênio musical da antiga banda Triaprima. Gente batendo palmas, gente batendo no próprio corpo, as pessoas se aproximavam umas das outras cantando versos que haviam permanecido mesmo tanto tempo após o fim daquele trio de talento excepcional.
Uxa viu a neta correndo na direção da música. Ela parece uma ratinha encantada
, pensou. Balançando o corpo, ela sentiu como se a música das esferas se espalhasse por suas lembranças. O aglomerado de turistas já estava se transformando numa verdadeira multidão. Nina desaparecera agora das vistas da avó, inquieta. Uxa sentia a perturbação aumentar rapidamente. Não conseguia mais avistar a neta. Não conseguia parar de dançar. Sentia-se tão dominada por aquela melodia quanto no passado. Nos idos tempos em que acompanhara cada passo de Ian, Lenora e Duda. Os shows inesquecíveis, as festas, os ensaios inacreditáveis e o término abrupto. A multidão na praia, Nina tinha desaparecido. O peito de Uxa apertou. Ela já vivera uma situação muito semelhante. E tinha toda razão do mundo para sentir aquela apreensão. Ou melhor, para o medo aterrorizante que, inexoravelmente, a invadia, mais e mais.
Em casa
Duda encontrara a porta aberta ao entrar no apartamento de Lenora. A sala vazia, mas já com as malas prontas para a viagem. O aroma do café, a voz distante de Tânia. O cantarolar de Lenora, provavelmente ainda no chuveiro.
– Nada como um velho e bom jornal impresso – murmurou ele, ao sentar-se para ler a primeira página.
– Eu sabia que você ia gostar disso – disse Tânia, apressada, o celular na mão. – Eu prefiro ler tudo na tela, rapidinho. Mas você, Duda, parou no tempo e não quer sair, não é mesmo?
Duda não respondeu. Deu um sorriso largo, um sorriso tão raro que seu rosto ficou quase irreconhecível. Tânia, mãe de Lenora, era uma das poucas pessoas que respeitava na vida.
– Calma, querida – disse Tânia ao celular –, Lenora logo virá conversar com você. Mas ela terá só alguns minutos, já vou avisando. Duda já veio buscá-la para o show de Floripa.
Em seguida, Tânia veio à sala carregando a bandeja com café e pão quente.
– Pão na chapa, melhor que na padaria – comentou ela ao deixar o lanche sobre a mesa de centro.
– É a tal de Lisa outra vez? – perguntou Duda, já mastigando.
– Pois é. Ela não para de telefonar. Fico bem irritada, se você quer saber...
– O problema da Lenora é o excesso de bondade, paciência, compreensão, compaixão... – disse Duda, já com outro sorriso, sarcástico. – Qualidades que, no mundo de hoje, viraram defeito. Eu te digo, Tânia, eu não suporto mais essa amiga da Lenora.
– É só uma garota carente, uma dessas meninas loucas para virar artista, Duda, como tantas outras hoje em dia...
– Carente, não. Interesseira. Uma atriz nata. Tanta emoção, tanta choradeira. Detesto todo tipo de performance afetiva, você sabe. Essa garota perturba Lenora. Toda semana inventa um novo amor exótico e impossível. Sempre tem que dar errado, lógico. Senão, do que ela poderá reclamar, não é mesmo? Tem gente que tem horror à serenidade. É cansativo.
Tânia riu. Ela confiava plenamente na vivência de Duda. Caso contrário, jamais teria permitido que a filha única tivesse um mentor artístico trinta anos mais velho, ex-roqueiro, com um passado totalmente condenável.
Duda virou o rosto em direção à janela. Tânia reconheceu as rugas profundas que marcavam a boca amarga. Os sorrisos de Duda deram lugar à melancolia que lhe era tão peculiar.
– Como foi mesmo que você escolheu esse nome para sua filha?
– George e eu nos conhecemos numa festa. Havia música ao vivo. Ele dançava sozinho perto da banda. Posso ver como se fosse agora – prosseguiu Tânia. – O cabelo solto, longo, a camisa xadrez... George era um pão
, como diziam naqueles tempos.
Duda sorriu. Desta vez cinicamente, mordendo a segunda fatia, como se quisesse provocar.
– Você ri porque George já não está assim tão esbelto, não é mesmo?
– Eu gosto muito dele. E tenho admiração por vocês dois. Eu, que nunca tive filhos ou família, jamais teria sido capaz de criar alguém como a sua Lenora.
– Mas, voltando ao passado – prosseguiu Tânia, divertindo-se –, eu não tinha coragem de chegar perto e cumprimentar George. E ele então... Bem, você conhece a timidez patológica dele. Ficamos horas daquele jeito