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VAGABUNDO ORIGINAL - Gorki
VAGABUNDO ORIGINAL - Gorki
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Ebook384 pages5 hours

VAGABUNDO ORIGINAL - Gorki

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About this ebook

Máximo Gorki é, sem dúvida, um dos maiores escritores russos de todos os tempos. Sua sensibilidade e percepção do mundo lhe garantem lugar em qualquer biblioteca, além de uma leitura obrigatória para todos que apreciam a boa literatura e desejam entender mais sobre a sociedade Russa pré revolucionária. Assim como ocorre em suas outras obras, Gorki em: O Vagabundo Original nos apresenta vários temas que se passam tanto na cidade como no campo, mostra-nos as características, o modo de vida, alegria, tristezas e alegrias de seu povo. O texto, embora ficcional, destaca os valores da vida e da cultura russa de sua época. O Vagabundo Original é um bom livro para corações abertos e vontade de conhecer outros povos, outras culturas.
LanguagePortuguês
Release dateOct 15, 2020
ISBN9786587921549
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    VAGABUNDO ORIGINAL - Gorki - Máximo Gorki

    cover.jpg

    Máximo Gorki

    VAGABUNDO ORIGINAL

    1a edição

    img1.jpg

    Isbn: 9786587921549

    LeBooks.com.br

    A LeBooks Editora publica obras clássicas que estejam em domínio público. Não obstante, todos os esforços são feitos para creditar devidamente eventuais detentores de direitos morais sobre tais obras.  Eventuais omissões de crédito e copyright não são intencionais e serão devidamente solucionadas, bastando que seus titulares entrem em contato conosco.

    Prefácio

    Prezado Leitor

    Gorki é, sem dúvida, um dos maiores escritores russos de todos os tempos. Sua sensibilidade e percepção do mundo lhe garantem lugar em qualquer biblioteca, além de uma leitura obrigatória para todos que apreciam a boa literatura e desejam entender mais sobre a sociedade Russa pré revolucionária.

    Assim como ocorre em suas outras obras, Gorki em: O Vagabundo Original nos apresenta vários temas que se passam tanto na cidade como no campo, mostra-nos as características, o modo de vida, alegria, tristezas e alegrias de seu povo. O texto, embora ficcional, destaca os valores da vida e da cultura russa de sua época.

    O Vagabundo Original é um bom livro para corações abertos e vontade de conhecer outros povos, outras culturas.

    Uma excelente e proveitosa leitura

    LeBooks Editora

    Sumário

    APRESENTAÇÃO

    Sobre o Autor

    Sobre a Obra:

    UMA CIDADEZINHA

    INCÊNDIOS

    OS DESENRAIZADOS

    VAGABUNDO ORIGINAL

    A MULHER VIRTUOSA

    A ARANHA

    O CARRASCO

    INVESTIGADORES

    UM MESTRE DE ESCRITA

    UM ESCRITOR FRACASSADO

    O VETERINÁRIO

    O PASTOR

    DORA

    A SÓS CONSIGO MESMO

    PÁGINA DE DIÁRIO

    A GUERRA E A REVOLUÇÃO

    O JARDINEIRO

    UM LEGISTA

    UM MONÁRQUICO

    FIGURAS DE SÃO PETERSBURGO

    FÔLEGO PERDIDO

    QUADRO DE COSTUMES

    A GUISA DE POSFÁCIO

    UM GUIA

    A MAMÃE KEMSKI

    ASSASSINOS

    O EMBLEMA

    AS BARATAS

    APRESENTAÇÃO

    Sobre o Autor

    img2.jpg

    Vim ao mundo para não estar de acordo.

    Nascido na Rússia Aleksey Maksimovich Peshkov (1868-19320) adotou em 1892 o pseudônimo de Maksim Gorki (O Amargo), que incorporava sua visão de mundo. Cresceu na pobreza e defendeu a causa dos pobres por toda a vida.

    Foi ativo no emergente movimento comunista marxista, se opondo publicamente ao regime czarista chegando até a se associar com Vladimir Lenin e Alexander Bogdanov (Facção bolchevique).

    Gorki é considerado um dos fundadores do realismo socialista na literatura, suas obras descrevem as brutalidades da pobreza e a coragem e o orgulho daqueles por ela afetados. Suas opiniões políticas levaram-no à cadeia em muitas ocasiões. Nela escreveu romances e peças politicamente carregadas como O submundo e os filhos do Sol. Viveu por algum tempo na Itália, mas voltou à Rússia em 1932. Morreu em circunstâncias suspeitas e Genrikh Yagoda, chefe da polícia de Stalin, esteve envolvido no caso.

    Sobre a Obra:

    Gorki é com certeza é um dos maiores escritores russos de todos os tempos. Sua sensibilidade e percepção de mundo lhe garantem lugar em qualquer biblioteca e leitura obrigatória para todos que desejam entender mais sobre a sociedade Russa pré revolucionária.

    O que a vida e a obra de Gorki mostram não é o revolucionário perigoso que, segundo os seus adversários, teria envenenado o mundo através da literatura, mas o homem em que a memória, marcada pela lembrança das agruras sofridas e das injustiças presenciadas, anseia pela transfiguração do mundo.

    A obra de Gorki centra-se no submundo russo. O ficcionista registrou com vigor e emoção personagens que integravam as classes excluídas: operários, vagabundos, prostitutas, gente humilde, homens e mulheres do povo. Autores realistas e naturalistas já tinham incorporado estes setores sociais à literatura, mas olhavam para os pobres de fora, apenas com piedade ou com frieza. Gorki, ao contrário, conhecia aquele universo por dentro – ele próprio era um desses desvalidos – e soube captar o que havia de mais profundo na alma do povo russo. Daí a impressão de autenticidade que suas obras nos transmitem.

    Sem dúvida, ele foi o criador da chamada literatura proletária que teve seguidores no mundo inteiro em sua época. Mesmo que o mundo resolvesse suas diferenças e corrigisse as injustiças sociais, ainda assim faltaria o último toque, aquele toque que construiu o templo literário de Gorki, resistente às manobras ideológicas e imunes à ação do tempo.

    Em seus livros, Gorki conta o aprendizado que teve sobre a sociedade e a cultura a partir dos lugares que frequentou como por exemplo a padaria, o prostíbulo e a faculdade, a qual afirmou não ser lugar para pessoas de origem social baixa igual a dele.

    Há em Gorki a força do natural e a beleza do espontâneo, que tanto fascinam, em nossa busca de legitimidade. Há também a transfiguração da realidade, o surrealismo da fuga ao legítimo, que é uma espécie de descanso do espírito, no seu enquadramento real.

    Outras obras de Máximo Gorki:

    Makár Tchudrá (1892)

    Chelkásh (1895)

    A velha Izerguíl (1894-1895)

    Malva (1897)

    Os ex-hombres (1897)

    Varenka Olessova (1898)

    O canto do falcão (1899)

    Tomás Gordéiev (1899)

    Os três (1900)

    Pequenos burgueses (1901)

    O canto do petrel (1901)

    O submundo (1902)

    O homem (1903)

    Os veraneantes (1904)

    Os filhos do sol (1905)

    Os bárbaros (1905)

    Os inimigos (1906)

    Três Vidas (1907)

    A mãe (1906-1907)

    Os últimos (1907-1908)

    A vida de um homem desnecessário (1908)

    A confissão (1908)

    A cidade Okurov (1909)

    A vida de Matvéi Kozhemiákin (1909)

    Vassa Zheleznova (1910)

    Por Rússia (1912-1917), um ciclo de contos

    Сontos da Itália (1913)

    Infância (1913-1914)

    Entre os homens (1915-1916)

    Mis universidades (1923)

    A casa dos Artamonov ou A família Artamanov (Portugal) (1925)

    Quarenta anos. A vida de Klim Sanghin (1925-1936), tetralogía

    En Guadia! (1931)

    Yegor Bulychóv e os outros (1932)

    VAGABUNDO ORIGINAL

    UMA CIDADEZINHA

    Encontro-me fora da cidade, sentado em uma colina sem vegetação, apenas salpicada por uma relva escassa; a minha volta existe túmulos que mal se percebem, pisados como o foram pelos cascos de animais e desfeitos pelo vento. Tenho as costas apoiadas em uma barraquinha de tijolo recoberta de zinco; de longe pode-se mesmo julgá-la uma capela; mas, junto dela, parece-se mais com uma casinha de cachorro. Por trás da porta chapeada de ferro mantém as correias, correntes, chicotes e outros instrumentos mais que foram utilizados para torturar os homens que ficaram enterrados nestas colinas. Tudo aqui ficou assim propositadamente para a cidade recordar-se e não se revoltar outra vez.

    Os moradores da cidade, porém, olvidaram-se já de a quem pertenciam os homens tombados aqui; alguns dizem que eram cossacos de Stepane Razine, declaram outros que se tratava de morduanos e tchuvaches de Emiliane Pugatchov.

    E apenas Satistchev, um velho que está sempre embriagado, é que diz gabola:

    — No que me tange, revoltei-me com ambos...

    Do alto do campo inclinado e árido, as casas da cidade, comprimidas contra o solo, antes dão a impressão de montes de entulho; aqui e ali, uma vegetação poeirenta e basta cresce nos telhados. Em meio a este agrupamento de coisas velhas, levanta-se uma dezena de campanários e a torre dos bombeiros; as alvas paredes das igrejas brilham; podia-se dizer que eram peças novas de seda colocadas sobre farrapos sujos.

    E um dia festivo. Até o meio-dia os moradores permaneceram nas igrejas, depois até as duas horas comeram e beberam, e agora repousam. A cidade está quieta: nem mesmo se escutam as crianças chorando.

    O dia está horrivelmente tórrido. O céu, de azul tirante a cinzento, derrama sobre a terra chumbo invisível derretido. Este céu possui algo de impenetrável e melancólico; o sol, de um branco que ofusca, parece dissolvido, diluído no céu; sobre as tumbas, as raquíticas ervas amareladas estão murchas e quietas. O solo estala, faz-se em escamas ao sol, como um peixe seco. No lado esquerdo das colinas, mais além do rio invisível, derrama-se por sobre os campos nus uma bruma quente, na qual vacila e se desfaz o campanário extenso de uma grande aldeia. Cem anos antes, está aldeia era posse da famosa Saltikova, que se celebrizou pelo requinte com que torturava os escravos.

    No tocante a cidade, recobre-a uma nuvem de poeira baça e de cor amarela. Quiçá seja a respiração dos dorminhocos.

    Esta cidade é habitada por uns estranhos seres.

    O dono da fábrica de feltro é homem sério e não é nada tolo; há quatro anos vem lendo a História do Estado Russo de Karamzine, e já entrou no nono volume.

    — É uma excelente obra! — afirma ele, afagando respeitosamente a encadernação de couro. — Um livro real! Vê-se logo que foi redigido por um mestre. Quando, em noite de Inverno, ficamos a lê-lo, imediatamente olvidamos todas as preocupações diárias. É agradável. O livro é um grande consolo para um homem! Quando é escrito do cimo da razão...

    Um dia, entretanto, tocando a sua linda barba, convidou-me com um sorrisinho acumpliciado:

    — Quer presenciar algo interessante? Tenho por hóspede, nos fundos da casa, um doutor que recebe uma dama, não é pessoa daqui, mas sim estranha a cidade. Através da claraboia das águas-furtadas assisto divertirem-se; a janela dele fica uma tanta escondida por uma cortina, porém pelo vidro do alto podem-se ver perfeitamente os seus divertimentos. Adquiri até de um tártaro um binóculo em segunda mão e de quando em quando convido alguns amigos a virem se distrair. É muito interessante apreciar as safadezas deles...

    O barbeiro Balasine diz o barbeiro da cidade. Homem alto, delgado, caminha com os ombros levantados, enchendo orgulhosamente o peito. A cabeça dele dá-nos a ideia de uma cobra: pequena, olhos amarelos, a um tempo cariciosos e cheios de desconfiança. A cidade acredita-o homem inteligente e dá preferência a tratar-se com ele do que com o médico do zémstvo {1}.

    — Nós somos gente simples; os doutores são bons para as pessoas que têm instrução — afirmam os moradores da cidade.

    O barbeiro faz aplicações de ventosas e de sangrias; não faz muito tempo cortou o calo de um freguês, que faleceu de gangrena. Alguém gracejou:

    — Isto é que se chama zelo: pedem para cortar o calo, e rapa logo o homem inteiro...

    Balasine vive tomado pela ideia da fragilidade da vida humana.

    — Julgo que os sábios mentem — afirma ele. — Não conhecem o caminho exato do sol. Quanto a mim, olho as vezes o sol no poente, e falo aos meus botões: e se ele não se levantasse amanhã? Não se levantava, e fim! Podia esbarrar em alguma coisa, um cometa, suponhamos; e vê lá se podes viver imerso na noite! Ou mesmo, muito simplesmente, detinha-se do outro lado da terra, e então nós estaríamos mergulhados nas trevas eternas. É provável que também o sol tenha o seu caráter. Então, para continuarmos a viver, seríamos forçados a queimar as florestas, a acender fogueiras...

    Dando umas risadinhas casquinadas e franzindo os olhos, prossegue:

    — Haveríamos de ter, então, um céu engraçado; cheio de estrelas, porém sem sol nem lua. Em lugar da lua, estaria pendurada uma bolinha escura, se é certo que a lua recebe a sua luz do sol. Ora, vê se vives sem nada veres! Era muito a propósito para os ladrões; porém, para todo o resto das pessoas era muito aborrecido, não é mesmo?

    Certa vez me disse, enquanto cortava o meu cabelo:

    — As pessoas daqui estão habituadas a todas as coisas; não há nada que as assuste; nem incêndios, nem nada... Em outros lugares existem inundações, terremotos; aqui nada acontece nunca! Nem mesmo houve cólera aqui; entretanto, havia cólera em todas as terras a volta. Ora, o homem necessita de alguma coisa que fuja ao rotineiro, algo terrível. O medo está para a alma como o banho de vapor para o corpo. É muito saudável...

    Construtor do estabelecimento de banhos municipais do rio, além de fabricante de bonés — fabrica os bonés de calças velhas — este homem, com apenas um olho, não é benquisto pela cidade, que tem medo dele. Quando o encontram na rua os moradores se afastam com receio e o acompanham com o olhar, como lobos; porém existem alguns que vão diretamente para ele, como se fossem para lhe bater. Então, ele os deixa passar, para, por sua vez, fixar a nuca do audaz, entrefechando o olho e sorrindo.

    — Por que motivo não gostam de você?

    — Porque eu sou implacável — retruca ele, empertigando-se. — É que eu tenho este princípio: não se procedeu como é direito, atiro com o culpado diante do juiz de paz.

    Têm inflamado o branco do olho, estriado de uma rede de pequenas veias sanguinolentas, onde cheia de orgulho brilha uma íris redonda e amarelada. Seu dorso é gordo, os braços são compridos e as pernas em arco. Dá ideia de uma aranha.

    — É certo que não sou benquisto, porque conheço os meus direitos — prossegue ele, enrolando um cigarro de fumo ordinário. — Um pardal estranho que voeje sobre a minha horta, e eis-me direto ao juiz de paz. Certa feita, demandei durante quatro meses por causa de um galo. O juiz mesmo terminou por me dizer:

    — Não devias ter nascido, homem; tens caráter de moscardo.

    Já até me bateram devido a minha implacabilidade. Mas dando-me pancadas ninguém lucra nada. Baterem-me é o mesmo que malharem em ferro quente: o que acontece é que queimam as mãos. Quando me espancam, ponho-me a fazer tais coisas!...

    E soltou um assobio estridente.

    É realmente um homem questionador: inunda o juiz da cidade com as suas queixas e demandas. Vive bem relacionado com a polícia; há quem afirme que ele gosta de escrever denúncias e que possui um registro onde tem marcadas todas as faltas dos habitantes.

    — Por que razão procede assim?

    Respondeu-me:

    — Pelo respeito aos meus direitos.

    Puchkárev, um serralheiro e caldeireiro obeso e calvo, é um livre-pensador, um ateu. Franzindo os lábios flácidos, esquisitamente sinuosos, cor de minhoca, declara com sua voz de baixo, rouquenha:

    — Deus é uma invenção. Sobre todos nós apenas existe o ar azul. E tudo quanto pensamos vem desse ar azul. Vivemos do azul, pensamos azul; todo o mistério reside nisso. O resumo de qualquer vida, tanto a minha como a sua, é muito simples: existe-se e apodrece-se.

    Sabe ler, leu inúmeros romances e lembra-se especialmente de um, intitulado A Mão Sangrenta.

    — Nele existe um bispo que, tendo-se revoltado, investiu contra a cidade de La Rochelle. Seu adversário era o capitão Lecouzon. O que não fez ele, esse filho de uma cadela! Apenas com a leitura, sobe-nos água na boca! Usava a espada sem que nunca lhe falhasse um só golpe! Atirava um bote — e pronto, era logo um que morria! Um estupendo guerreiro, isso é que ele era!...

    Aqui está o que Puchkárev me contou:

    — Em uma noite de festa, eu estava sentado, como agora, lendo. De súbito, vejo chegar um calculador de zemstvo{2}, pessoa que faz estatística, como eles dizem. —Queria conversar com você. — Pois bem, falo eu, diga! — E permaneço sentado, de costas um tantas viradas para ele. Diz-me uma coisa e outra, faço-me de tolo, dou um mugido e prossigo olhando de lado, a parede. — Quer-me parecer, diz-me ele, que não crê em Deus. — Nesse ponto, caí em cima. — Como é isso? digo eu. Pode ser uma coisa dessas? Que utilidade têm então as igrejas, os padres, os monges? E se eu fosse denunciar a polícia que o senhor prega a impiedade? — Assustou-se. — Queira desculpar-me, disse-me ele. Eu julgava... — Está bem, retruquei. O senhor pensa em coisas sobre as quais não se deve pensar. Eu é que não preciso de tais pensamentos. — Fugiu de perto de mim como uma bala. Passado algum tempo, suicidou-se. Não aprecio essa gente do zemstvo; é uma grande balela. Sugam os camponeses e é disso que eles vivem. Ignorava-se o que fazer com todos esses sábios e então foram criados para eles os zemstvos. Vamos lá, coloquem isso em números. E eles colocam. Aos homens, pouco se lhes dá o trabalho que empreendem, contanto que lhes paguem bem...

    O relojoeiro Kortsov, homenzinho cabeludo, braços compridos, a quem apelidaram de "piolho dorminhoco’’, é um patriota e um admirador da natureza.

    — Em nenhum outro lugar existem estrelas tão lindas como as nossas estrelas russas! — afirma ele, mirando o céu com os seus olhos redondos e achatados como botões. — Também a batata russa, no mundo não existe outra que a supere em sabor. Ou, por exemplo, os acordeões: não existem outros melhores que os russos! E os cadeados! E quantas outras coisas, a que podíamos assuar todas as Américas.

    É autor de cançonetas e, quando ingere um pouco de pinga, ele mesmo as canta. Os versos que compõe são propositadamente, voluntariamente absurdos. A canção que ele canta com mais frequência é esta:

    O abelharuco, pássaro azul,

    Sob a janela, canta-me.

    Depois de amanhã,

    Porá um ovinho.

    Roubarei este ovinho

    Para o pôr no ninho de um mocho!

    Que vai acontecer

    A minha cabeça indomável?

    Ah, por que terei sonhado

    Que bicava o meu crânio

    Esse mocho, essa ave da noite,

    Que na floresta vive só?

    Kortsov entoa essa canção com música saltitante e endiabrada. O seu crânio é regularmente arredondado, inteiramente calvo, exceto uma franja avermelhada de cabelos aparados que lhe pende de orelha a orelha sobre a nuca.

    Aprecia contemplar as belezas da natureza, ainda que os arredores da cidade sejam despidos, elevações de colinas estéreis, rasgados por ravinas, miseravelmente feios. O relojoeiro, entretanto, de pé a margem de um regato turvo, fétido, envenenado pelas fábricas de feltro, exclama, numa sincera explosão de entusiasmo lírico:

    — Que maravilha! Que extensão! Quanta paz! Vai para onde quiseres! No que me diz respeito, amo com muita paixão está beleza de nossa terra!

    O pátio de sua casa é sujo, tomado pelas urtigas e pelos espinhos, cheio de toros de madeira e de ferro; em meio ao pátio encontra-se um enorme canapé as vésperas de apodrecer, de cujo assento espirram tufos de crina. Nos quartos, tudo está pleno de poeira, tudo é inconfortável, não há nada em seu lugar certo; à guisa de peso, um pedaço de tubo de chumbo está pendurado a corrente do relógio. Em uma extremidade, a mulher geme e resmunga; no pátio, a irmã, uma solteirona amarela e esquálida, dentuças a mostra, caminha daqui para lá, silenciosamente; está calçando botas, cujos canos foram cortados, e a saia, erguida até a altura dos joelhos, deixa ver a barriga de suas pernas recobertas de nódulos de veias azuladas.

    Kortsov é o inventor de um cadeado que pode ser carregado com três cartuchos de espingarda e que dispara quando se lhe enfia a chave. O cadeado pesa cerca de dez libras e sua forma é a de uma caixa alongada. Na minha opinião, acho que ele devia atirar para o ar e não em cima daquele que tiver a coragem de o abrir.

    — Não! — diz o inventor. — Atira exatamente na cara.

    Apreciam-no na cidade como se aprecia um sujeito original. Contudo, quiçá agrade também aos moradores pela nenhuma sorte que tem no jogo de cartas: com ele todo mundo ganha. Gosta de usar o chicote contra as crianças e afirma-se que matou o filho a vergastada; isso, porém, não obsta a que os conhecidos o contratem, como um especialista, para aplicar o devido corretivo aos rapazes que estragam os pomares e as hortas.

    Sem pressa, com a mão atrás das costas, Jacob Lésnikov, um sujeito grandão e magro, a barba comprida e estreita, narigão triste, percorre a cidade. Mal penteado, sujo, traz como veste um gibão que mais se parece com o hábito de monge e um boné de estudante cobrindo a cabeleira áspera já com tendência para grisalha. Os seus olhos aquosos, esbugalha-os com esforço, como um homem sonolento que fosse proibido de adormecer. Bocejando, olha a distância, por sobre a cabeça das pessoas, e indaga:

    — Então, como vai isso?

    As respostas parecem não lhe interessar, e, aliás, já deve conhecê-las:

    — Vai-se indo! Como sempre! Vive-se!

    Goza a reputação de atrevido com as mulheres e de grande devasso. Falava-me dele Kortsov, não isento de orgulho:

    — Viveu mesmo com uma espanhola! Está claro que, agora, não despreza nem uma horizontal...

    Afirma-se que Lésnikov é filho ilegítimo de uma personagem de importância — um bispo ou um governador de província. Possui alguns pedaços de horta e de prado que ele arrenda aos habitantes dos arredores; no que diz respeito a ele, vive só, na casa de meu vizinho, um funcionário enfermo.

    Uma noite, estando estendido no jardim, sob uma tília, bebendo cerveja, bocejando e rosnando, o senhorio, homenzinho magricela, que usa óculos e é de uma amabilidade agridoce, aproximou-se dele:

    — Então, Jacob?

    — Aborreço-me — retrucou Lésnikov. — Pergunto-me sempre a mim mesmo em que me devo ocupar...

    — É muito tarde para arranjares uma ocupação...

    — Quem sabe!...

    — Já és um bocado velho para isso.

    — Isso é certo.

    Ficaram calados. Depois Lésnikov disse indolentemente:

    — Estou muito aborrecido. Que tal se eu me pusesse a crer em Deus?

    O funcionário aprovou:

    — Não é má ideia. Ao menos, podes ir à igreja.

    Lésnikov bocejou espalhafatosamente:

    — Pois aí está!...

    Zimine, comerciante de novidades, homem matreiro, presidente da junta de sua paróquia, afirmou-me certa vez:

    — É devido a inteligência que as pessoas sofrem. Ela é a principal culpada de toda esta nossa mixórdia. O que nos falta é a simplicidade, nós perdemos a simplicidade. O nosso coração é honrado, porém a nossa inteligência é uma canalha!...

    E ali fico eu, aspirando o ar sufocante e recordando as palavras, os gestos e as fisionomias desta gente toda; contemplo a cidade, que uma bruma espessa recobre. Que falta fazem esta cidade e os indivíduos que nela residem!

    Foi aqui que Leon Tolstoi sentiu pela vez primeira o horror da existência — um horror mórbido, arrasador. É crível, porém, que esta cidade tenha vivido e continue vivendo, desde a época de Ivã, o Terrível, somente para isto?

    Julgo que não existe nenhum outro país onde as pessoas conversem e pensem de modo tão desencontrado, tão embrulhado, como na Rússia provinciana.

    Os pensamentos arzamacianos são inesperados e parecem-se com essas aves meio depenadas, atormentadas pelos infantes, e que, às vezes, de terror, tentam entrar em quartos escuros, para se destruírem contra a burla inescrutável dos vidros transparentes como o ar. Estéreis pensamentos azuis.

    Observo esta gente e parece-me que, antes de tudo, vive infortunadamente, e depois que é apenas por esse motivo que é aborrecida, perversa e criminosa. Seres dotados, porém, personagens anedóticas.

    Do rio vêm-me rumor e um marulho de água: são alguns moleques que se foram banhar. Na cidade, porém, não restam muitos, porque a maior parte deles foi para a floresta, para os campos e para as ravinas, onde está mais fresco. Dos jardins ascende um ligeiro fumo azulado: as donas de casa despeitaram e fazem aquecer os samovares para o chá da noite.

    Uma voz fina e estridente de mocinha corta o ar:

    — Ó, mãezinha, não me batas na barriguinha!

    E como se esse grito mergulhasse na terra.

    O calor vai-se fazendo sempre mais opressivo. O sol parece estacionário. A terra respira um ardor seco e poeirento. Parece que o céu se tornou ainda mais impenetrável — e essa baça impenetrabilidade do céu é muito desagradável e até mesmo angustiante. Dir-se-ia que o céu não fosse idêntico aos de outros lugares, porém um céu a parte, um céu daqui chato, duro, criado pelo hálito pesado dos moradores da estranha cidade. A distância azulada adquire as tonalidades de vidro descorado pelo sol e, como se se fizesse mais compacto, adianta-se para a cidade sob o aspecto de muro translúcido, porém impenetrável.

    Como pontos escuros, as moscas passam e tornam a passar, de modo estúpido; e outra vez se tem o pensamento da impenetrabilidade do vidro.

    E o silêncio pesado e quente é sempre mais espesso, sempre mais opressivo.

    E em meio desta calma ressoa como um canto uma voz cheia de sono e fraca de mulher:

    — Taíssa, tu estás a te vestir?

    E outra voz idêntica, porém mais baixa, respondeu de modo langoroso:

    — Estou, sim. Estou me vestindo.

    Silêncio. Depois, novamente:

    — Taíssa, estás pondo o vestido azul?

    — Sim, visto o azul...

    INCÊNDIOS

    Em uma noite escura de fevereiro, eu saíra e estava na praça, vi passar na trapeira de uma casa uma língua de fogo, do tamanho da cauda de uma raposa, movendo-se no ar mosqueado de uma quantidade de grossos flocos de neve — que tombavam lentamente no chão, como a contragosto.

    O fogo era de uma beleza que fascinava. Parecia um animal vermelho que, emergindo de um salto das trevas quentes e úmidas, tivesse ficado agachado no postigo e aí roesse alguma coisa. Escutavam-se secos estalidos: do mesmo modo estalam entre os dentes os ossos das aves.

    Eu contemplava esses ardis de raposa do fogo e dizia a mim mesmo:

    — É necessário bater as janelas, acordar a gente, gritar: fogo! — Não sentia, porém, vontade de gritar, nem de me mover; e ali permanecia eu a observar, parecendo enfeitiçado, o rápido desenvolvimento das chamas; já nos altos moviam-se penas de galo, no jardim os galhos superiores das árvores tomavam-se de um vermelho dourado, e na praça enxergava-se mais claramente.

    — É necessário despertar a gente — tentava eu convencer-me, e prosseguia olhando em silêncio, até que em meio a praça vi o vulto de um homem: apertava-se contra a absurda coluna de ferro da fonte, quase ao ponto de se confundir com ela. Aproximei-me dele. Era o guarda-noturno, um velho bonachão.

    — O que estás esperando? Apita! Desperta as pessoas!

    Sem desfitar os olhos do fogo, retrucou-me com voz de sono ou de bêbedo:

    — Já apito...

    Eu sabia que ele não era dado a bebida, porém via nos olhos um sorriso ébrio de prazer e não fiquei surpreendido quando ele começou a dizer num sussurro, sufocando-se com as palavras:

    — Veja aquela velhacaria! Veja o que ele faz! E olha que eu te devoro, olha que te devoro! Que força! E, entretanto, ainda não decorreu muito tempo que da chaminé subiu somente uma chamazinha pequena, não maior do que um buril, e pôs-se a burilar, a saltitar... Senhor! Como é interessante um incêndio!...

    Colocou o apito entre os lábios e, balançando-se nas pernas, fez ressoar na praça deserta um silvo agudo; após isso, agitou a mão e uma matraca começou a ranger furiosamente. Os olhos dele, porém, continuavam a olhar para cima, sem conseguirem se despregar do local em que, sob o telhado, se revolviam os flocos brancos e vermelhos, sobre os quais se amontoava um toucado de fumo denso e escuro.

    O velho rosnava, sorrindo por entre a barba:

    — Ah, o safado! Bem! Vamos então despertar a gente!... Vamos lá!...

    E fomos correndo pela praça e a bater nas janelas, gritando:

    — Fogo!

    ...Grande encanto possui o poder feérico do fogo. Diversas vezes observei como as pessoas se deixam dominar pela beleza da atividade dessa força do mal, e eu mesmo não estou livre de sua influência. Fazer arder uma fogueira é sempre para mim um prazer e posso bem estar um dia todo a fitar insaciavelmente um fogo, assim

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