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O preso da fronteira: análise da situação prisional de imigrantes bolivianos sob a ótica da criminologia crítica
O preso da fronteira: análise da situação prisional de imigrantes bolivianos sob a ótica da criminologia crítica
O preso da fronteira: análise da situação prisional de imigrantes bolivianos sob a ótica da criminologia crítica
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O preso da fronteira: análise da situação prisional de imigrantes bolivianos sob a ótica da criminologia crítica

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Nessa obra, a autora, a partir do reconhecimento de categorias intereseccionalizadas indicativas de vulnerabilidade acentuada, estuda a situação prisional de imigrantes bolivianos que cumprem pena privativa de liberdade em município fronteiriço (Corumbá/MS); analisa, sob o olhar da criminologia crítica de negativa do processo ressocializante da prisão, as condições jurídicas da execução penal demonstrativas de violações ao princípio isonômico na perspectiva dessas pessoas reclusas.
LanguagePortuguês
Release dateOct 27, 2020
ISBN9786558771005
O preso da fronteira: análise da situação prisional de imigrantes bolivianos sob a ótica da criminologia crítica

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    O preso da fronteira - Camila Maués dos Santos Flausino

    2015.

    1.CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A PENA DE PRISÃO

    1.1 - As teorias sobre a pena

    Uma breve incursão na teoria da pena será imprescindível para se contextualizar, dentro de um cenário teórico, a base em que se sedimentou a pesquisa acerca da situação prisional do boliviano encarcerado em Corumbá que cumpre pena privativa de liberdade. Diversas teorias espraiam-se ao pretenderem explicar as finalidades e as funções da pena, dentre elas, as teorias retribucionista, utilitarista e conciliatória.

    O Direito Penal, através das frestas que permitem influências criminológicas, admite, expressamente, a adoção da teoria mista ou conciliatória como aquela que satisfaz as finalidades da pena. Nessa senda, o artigo 59, caput, do Código Penal, prevê que:

    O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime [...].

    Para o Direito Penal, dogmático por natureza, composto por normas de dever-ser, a pena corresponde à resposta estatal da conformidade de uma conduta com a definição legal do crime. Com a reforma da parte geral do Código Penal, em 1984, introduzida pela Lei nº 7.209/84, restou evidente que o legislador passou a tratar a pena não somente do ponto de vista estático, formal ou como uma mera manifestação estéril do jus puniendi (direito de punir) do Estado, como se a pena não exerce qualquer funcionalidade, mas a adotou com certo grau de funcionalidade (censura e prevenção) dentro da sociedade.

    Na exposição de motivos da novel parte geral, em comentário à opção legislativa, consta dos itens 26-28, já se reconhecendo que o cárcere traz malefícios à vida do condenado e possui seus custos financeiros e sociais:

    Uma política criminal orientada no sentido de proteger a sociedade terá de restringir a pena privativa da liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ação criminógena de cada vez maior do cárcere. Esta, filosofia importa obviamente na busca de sanções outras para delinquentes sem periculosidade ou crimes menos graves. Não se trata de combater ou condenar a pena privativa da liberdade como resposta penal básica ao delito. Tal como no Brasil, a pena de prisão se encontra no âmago dos sistemas penais de todo o mundo. O que por ora se discute é a sua limitação aos casos de reconhecida necessidade.

    As críticas que em todos os países se têm feito à pena privativa da liberdade fundamentam-se em fatos de crescente importância social, tais como o tipo de tratamento penal frequentemente inadequado e quase pernicioso, a inutilidade dos métodos até agora empregados no tratamento de delinquentes habituais e multi-reincidentes, os elevados custos da construção e manutenção dos estabelecimentos penais, as consequências maléficas para os infratores primários, ocasionais ou responsáveis por delitos de pequena significação, sujeitos, na intimidade do cárcere, a sevícias, corrupção e perda paulista da aptidão para o trabalho.

    Esse questionamento da privação da liberdade tem levado penalistas de numerosos países e a própria Organização das Nações Unidas a uma procura mundial de soluções alternativas para os infratores que não ponham em risco a paz e a segurança da sociedade.

    Pois bem. Sob a advertência de Bitencourt (2012), tem-se que pena e Estado estão imbricados e sofrem recíproca influência. É o modelo socioeconômico e a forma de Estado que dão o tom da pena e esta, à concepção de culpabilidade.

    Em apertada síntese, a teoria retributiva ou absoluta apregoa que a pena somente tem uma única finalidade, qual seja, retribuir ao agente o mal que praticara com o delito. A teoria preventiva ou relativa, a seu turno, advoga que a pena somente cumpre o fim de prevenir a prática de delitos. A conciliatória ou mista, por fim, objetiva conciliar as conclusões das anteriores, ao asseverar que a pena cumpre simultaneamente uma dupla finalidade: retribuir e prevenir (BITENCOURT, 2012).

    O retribucionismo, tal como concebido, é alvo de severas críticas, por afrontar a ética e a racionalidade, ao se aproximar da razão divina e ao considerar a pena como pura e simplesmente a compensação e a expiação por um delito cometido, carente, pois, de uma função social transcendente. Como perspicazmente adverte Bitencourt (2012, p. 94), não se pode confundir o conceito de pena com sua finalidade. Este considera pena [...] um mal que se impõe por causa da prática de um delito: conceitualmente, a pena é um castigo [...]. Já a função ou as funções da pena – a depender da teoria adotada (se conciliatória ou mista, ou não), trata-se de fenômeno extrínseco a ela, que se relaciona com o papel que esta desempenha na comunidade politicamente organizada e qual contribuição confere ao indivíduo infrator singularmente considerado.

    Bruno (1967, p. 30) adverte que as discussões a respeito da finalidade da pena adentram a órbita da Filosofia do Direito, conquanto o Direito, por si, não busca mecanismos de validade, [...] pois toma o sistema jurídico e suas implicações como uma realidade que existe e que exerce a sua função normativa prescindindo de qualquer indagação de legitimidade [...], como o faz, ao revés, a Filosofia. Mas essa compreensão não é unânime ao encontrar em Mir Puig (2003), citando Callies (1974), a análise da estrutura comunicativa da norma penal para o fim de solucionar a questão da função da pena.

    A norma penal incriminadora possui duas secções: o preceito primário, que descreve a conduta típica penalmente relevante, e o preceito secundário, cujo teor corresponde à sanção penal atribuída ao infrator da norma transparecida no preceito primário, ou seja, é a consequência penal da prática delitiva. Nessa conjuntura teórica, Mir Puig (2003) defende que a função da pena solve-se sobre a base da estrutura do direito penal positivo (formalmente considerado), ao invés de apriorismos metafísicos. Assim, com a interação de sujeitos previstos no desenho insculpido na norma penal, através da disposição dos preceitos compreendidos em seu âmago, a função da pena é estabelecida, amparada em ensinamentos fornecidos pela moderna sociologia, a qual vem conferir à teoria geral do direito notas sobre a teoria dos sistemas sociais, a exemplo de Bauman (1999), Garland (1995; 2001), Wacquant (2001) e Wieviorka (1997).

    Mas a que sujeitos, conexos entre si, são estes implicitamente aludidos por toda e qualquer norma jurídico-penal que evidenciam a função da pena a que Mir Puig se refere? O mestre, novamente citando Calliess (1974), compreende que, com a interação e a comunicação entre o sujeito (ego), a vítima (alter) e o Estado (terceiro sujeito), há a reprodução pela norma jurídica das relações sociais comezinhas, em que naturalmente os membros interagem entre si, como o complexo de expectativas recíprocas. Assim, manifesta-se Mir Puig (2003, p. 27, tradução livre):

    Essa conexão entre os sujeitos pode ser descrita como um complexo de expectativas recíprocas, como uma rede comunicativa na qual cada sujeito espera não apenas o comportamento, mas também as expectativas dos demais. Assim, o ego tem que esperar não só por determinado comportamento do terceiro como uma resposta às suas ações, mas também pelo terceiro e alterar para esperar que ele seja determinado em favor da conduta de acordo com a lei. Essa conexão de expectativas ocorre, segundo os crimes, em diferentes áreas ou sistemas sociais: a economia, o Estado ou o trânsito viário, p. ex.

    Segundo Mir Puig, para Calliess, a função (ressocializadora) da pena é extraída da análise da estrutura normativa, vista como uma ação comunicativa através da compreensão de regulação (Regelung). Para ele, tradicionalmente, a norma penal corresponde à condução (Steuerung), a relação que se dá entre o fato e a consequência jurídica (pena) é automatizada e condicional-hipotético, sendo bastante a realização do fato para que se acionar a penalização cominada previamente no mundo das ideias (CALLIESS, 1974 apud MIR PUIG, 2003, p. 28). Assim, a norma penal configura uma condução, voltada a uma única direção, sem que haja um controle dos resultados e sem que estes se voltem ao fato e a seu agente com possibilidade de modificação da direção. Mir Puig (2003, p. 28, tradução livre) ainda acentua que o esquema tradicional da norma é compreendida por Calliess (1974) como condução, [...] porque a penalidade é previamente indicada, cegamente antes dos efeitos da penalidade [...]

    Conclui Calliess, ainda citado por Mir Puig, que a regulação, a seu turno, correspondendo a uma nova leitura da estrutura normativa, leva em consideração os resultados dessa direção e se adapta aos resultados obtidos. Abandona a estrutura da proposição jurídico-penal tradicional (modelo condicional-hipotético), para compreendê-lo como uma relação comunicativa de três sujeitos, a saber, o ego (sujeito ativo), o alter (sujeito passivo) e o terceiro (Estado) (CALLIESS 1974 apud MIR PUIG, 2003, p. 28).

    Sintetiza Mir Puig (2003, p. 28, tradução livre) a dinâmica da regulação normativo-penal idealizada por Calliess:

    Por outro lado, regulação significa levar em conta continuamente os resultados da gestão, que recaem na direção em si, que, por sua vez, se adapta aos resultados que está alcançando (Rückkoppelung). Isso pode acontecer - pensa Calliess - se a estrutura da proposta legal falhar em responder ao modelo condicional-hipotético (se for assumido de fato, então consequência legal), ser concebida como uma relação comunicativa interdependente dos três sujeitos (ego, alter e terceira = sujeito ativo, contribuinte e Estado), porque tal relação comunicativa é baseada nas expectativas de cada um em relação a outros e essas expectativas terão que variar de acordo com o comportamento dos sujeitos: assim, a penalidade que o terceiro (Estado) a ser aplicada dependerá dos efeitos que se espera que tenham o mesmo no assunto a ele submetido, bem como os resultados que comprovadamente ocorrem durante sua execução.

    Dessa simbiose, Calliess chega à conclusão que a norma jurídico-penal propicia a função de ressocialização, [...] o que só pode ser conseguido adaptando-se a penalidade aos resultados produzidos ao condenado. (CALLIESS 1974 apud MIR PUIG, 2003, p. 28, tradução livre). Por fim, Mir Puig (2003, p. 28, tradução livre) faz um paralelo entre a estrutura hipotético-condicional da norma penal, chamada de tradicional, e a estrutura funcional-dialogal de Calliess:

    No entanto, o diferente terreno em que as formulações tradicionais se movem e o proposto por Calliess impede que elas sejam literalmente incompatíveis. Pode-se considerar que, do ponto de vista estático, a norma penal-legal consiste em uma consequência factual e legal, e admitir, ao mesmo tempo, que numa perspectiva funcional, essa norma expressa uma relação comunicativa entre sujeitos. Mas, é claro, o segundo pressupõe que a mesma função seja atribuída ao direito penal como Calliess, que deve ser decidida ao examinar o assunto da função de nosso ramo de direito. De qualquer forma, já se viu que a estrutura da norma não é uma questão puramente construtiva, de análise formal, mas está intimamente relacionada com o fundamento último do direito penal. Colocar esse aspecto da problemática da estrutura da norma jurídico-penal em primeiro plano constitui, sem dúvida, uma contribuição de Calliess que não pode ser renunciada.

    Sob essa perspectiva apresentada por Calliess (1974), apresentaremos as funções da pena, propaladas pelas principais teorias formuladas a respeito, a absoluta, a relativa e a mista ou conciliatória, como antecipamos acima.

    Para a teoria absoluta, cujos expoentes são Kant e Hegel, a pena não tem qualquer outra finalidade que não o castigo como retribuição pelo mal praticado, isto é, o crime. A pena é um fim em si mesma e nela se exaure a justiça ao ser aplicada como decorrência do delito cometido. Dessa forma, contraria a regulação normativo-penal idealizada por Calliess e coaduna-se com a ideia de condução (HEGEL, 2010; KANT, 1993). Para Bitencourt (2011, p. 1952):

    O fundamento ideológico das teorias absolutas da pena baseia-se no reconhecimento do Estado como guardião da justiça terrena e como conjunto de ideias morais, na fé, na capacidade do homem para se autodeterminar e na ideia de que a missão do Estado frente aos cidadãos deve limitar-se à proteção da liberdade individual. Nas teorias absolutas coexistem, portanto, ideias liberais, individualistas e idealistas. Em verdade, nessa proposição retribucionista da pena está subentendido um fundo filosófico, sobretudo de ordem ética, que transcende as fronteiras terrenas, pretendendo aproximar-se do divino.

    Hegel e Kant, como predito, foram os maiores expoentes e defensores do retribucionismo, o primeiro atribuindo a fundamentação do retribucionismo na moral e o segundo, no Direito. Para Kant (2013, p. 96), na obra A Fundamentação da Metafísica dos Costumes, a lei consistia em um imperativo categórico, ou seja, [...] seria aquele que representa uma ação como necessária por si mesma, sem relação com nenhum outro escopo, como objetivamente necessária [...], ao revés do imperativo hipotético, que representa a necessidade de uma ação possível, como meio para alcançar alguma coisa que se pretende (ou que, pelo menos, é possível que se pretenda). Ainda em Kant (2013), o princípio da moralidade inevitavelmente consiste em um imperativo categórico, que não permite qualquer relativização em termos de adesão, destarte, a observância da norma jurídica, antes de ser um mandamento jurídico, configura em

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